domingo, junho 08, 2014

O QUE TÊM ELES PARA NOS GARANTIR?

No LE MONDE DIPLOMATIQUE de Junho (2014), Maria Clara Murteira (MCM)[1] escreve um esclarecedor artigo sobre a subversão da repartição, enquanto dimensão relevante no domínio das estratégias de desmantelamento dos sistemas públicos de pensões. A articulista começa por elucidar que a ofensiva inicia-se em meados dos anos 70, a pretexto do empecilho que esses sistemas criam à acumulação de capital e ao crescimento económico, para além dos seus execrandos efeitos redistributivos em desfavor dos mais pobres.

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Após algumas das experiências de privatização das pensões, designadamente no Chile de Pinochet (1981) e no Reino Unido de Thatcher (1986), o relatório “Averting the Old Age Crisis” do Banco Mundial, publicado em 1994, apresenta-se nesse tempo como uma espécie de bíblia para os seus ascéticos prelados. Os preceitos da sua dogmática enraízam-se, no essencial, nos elevados encargos orçamentais que os sistemas de repartição iriam causar, tendo em conta o fatal envelhecimento demográfico. Prontamente, recomenda-se então a contenção da despesa dos esquemas públicos e, como contrapeso capaz e desejável, o desenvolvimento dos esquemas de privatização e da provisão voluntária. À liderança do Banco Mundial junta-se o FMI e a OCDE nessa imperiosa cruzada de envolvência política.

Em finais dos anos noventa, a partir do interior do próprio Banco Mundial, desperta um certo esmorecimento da apologética sobre a privatização das pensões, intensificada por alguns eventos históricos marcantes, tais como a tentativa fracassada de Bush de privatizar a Segurança Social (2005), a reforma do suposto modelo exemplar chileno (2006) e a eclosão da crise financeira de 2008. Com a queda drástica no valor dos ativos acumulados nos fundos de pensões, a ambiência favorável à teologia da privatização esfria e os chamados “custos de transição”[2] tornam-se um atravanco à ofensiva monetarista pelas suas implicações nos orçamentos públicos e consequentes aumentos na dívida pública a curto prazo.

Assim, neste contexto adverso emergem imaginativas ideias e modelos que favorecem o desenvolvimento da provisão privada, aguardando por melhores e mais auspiciosos tempos para a ambicionada privatização. Duas estratégias assim despontam; (1) a estratégia das reformas paramétricas[3], destinadas a conter a despesa pública e, (2) uma outra, que se consubstancia na conversão do sistema público de repartição num modelo de contas individuais virtuais. A primeira tem como consequência a redução progressiva das pensões e a natural procura de fontes adicionais de rendimento, favorecendo o desenvolvimento da provisão privada. A segunda, evitando os custos de transição, embora continuando a receita das contribuições a ser utilizada para financiar as pensões dos reformados, altera radicalmente a lógica da repartição criando-se a ilusão de [se] contribuir para si mesmo.

Neste entremeio, socializa-se o povo engodando-o com flores de uma retórica própria da esfera do mercado, na esperança de naturalizar a transformação do modelo de repartição, configurando-o à imagem e semelhança dos planos privados de poupança-reforma, declinando a salvaguarda dos níveis de vida na reforma e do seu equilíbrio face aos níveis de vida dos ativos. Sorrateiramente, com pezinhos de lã, é o que vai ocorrendo a pretexto da crise, afastando as pensões dos salários através da redução das taxas de substituição, de novos métodos de indexação e do descartar das pensões mínimas ao valor do salário mínimo nacional. MCM garante, no quadro das políticas neoliberais na União Europeia, que o futuro não será esperançoso pois, assegura a articulista, não é assim possível salvar a Segurança Social.

Sabendo-se que o Partido Socialista assinou o Pacto Orçamental, aceitando acomodar em lei o princípio doutrinário das finanças sãs (o limite de 0,5% do PIB para o chamado défice estrutural), afastando qualquer possibilidade de intervenção do nosso parlamento nacional, ao mesmo tempo que concorda acatar obedientemente a aplicação de sanções pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, poder-se-á perguntar, aproveitando as circunstâncias do confronto interno entre José Seguro e António Costa, como pensam eles combater eficazmente o desemprego e promover o crescimento económico, de modo a aumentar as receitas do sistema e reduzir o peso da despesa em pensões em relação ao produto interno bruto (PIB). Reconhecendo as dependências e as turbulências externas, designadamente no âmbito europeu, não será de bom-tom, agora, reclamar por soluções “irrevogáveis” mas não se pode deixar de exigir, desde já, uma resposta política clara e fundamentada sobre a matéria em apreço. Os pensionistas e reformados, como parte interessada, estarão naturalmente receosos/curiosos e, sobretudo, atentos. Mais, criticamente vigilantes.


[1] Economista, professora da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

[2] Substituição total ou parcial de sistemas públicos de pensões de repartição por esquemas privados de capitalização.

[3] A redução das pensões concretizar-se á de diversas formas, tais como, aumentando a idade de reforma, alterando os parâmetros da fórmula de cálculo, os métodos de indexação, etc.

quarta-feira, junho 04, 2014

PRÓS E CONTRAS – UM BREVE DESABAFO

Doc1Sempre se viveram tempos marcados por veladas perplexidades que, de modo continuado e evolutivo, atraem buscas impacientes de normalidades tranquilizadoras. Nestes encadeamentos de premência, apressam-se as esfaimadas ideologias normativas na salivante busca de cientificidades ordenadoras de convincentes e mitigantes conversões. A singularidade imaginada como anomalia e a natural espontaneidade observada como um desvio, ambas, acalentam o fantasmático que assim preenche e se apodera da caprichosa realidade inevidente.

Isto dito, até o gesto simples e genuíno facilmente se afunda no pecado moral ou na inteligibilidade da patologia. Em última instância, sobra a má educação como atribuição. O humano vê-se, deste jeito, cercado pela soberba do próprio homem e da norma que o poder deste fixa. Através das religiões ou do uso ideológico da ciência em detrimento do sujeito, da sua historicidade, da sua dinâmica pulsional e, sobretudo, das veredas identificativas de cada um.

O desamparo mental do que se admite desconhecer torna-se, por essa razão, em objeto acessível ao despudorado desprezo por essa indeclinável necessidade humana de compreender e de se entender. Por mim, recuso toda e qualquer teoria que não assente no otimismo cognitivo, na liberdade responsável e libertadora e no respeito pela dignidade da pessoa humana. O outro, assim o exige. Não o outro que é apenas um outro. Refiro-me a um Outro que é, tão-somente, um Outro-Eu. Se assim nos conduzíssemos, o essencial reluzente daí proveniente ofuscaria, estou certo, a serventia do acidental na trama interesseira das disputas.

IMPERTINÊNCIAS CONVENIENTES

 

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