sábado, agosto 30, 2014

POLITIZAR (OU NÃO) OS FAMIGERADOS “MEETS”?

550Tomando aqui de empréstimo o excelente artigo de opinião de Elísio Estanque Performances de irreverência[1] – e embora ousando utilizar deliberadamente uma expressiva mas pessoal e intencional liberdade de escrita – procurarei não abastardar, no essencial, os lineamentos interpretativos do autor sobre as recentes e emergentes ocorrências designadas por meets, enquanto lugares de encontro (sobretudo) de jovens, em determinados espaços públicos, propagandeados através das redes sociais.

O sociólogo começa por convocar a nossa atenção para as temáticas da concentração urbana e da sua lesta evolução, aventado determinadas causas e consabidas consequências (para e) do fenómeno. A persistente revalorização do território, num quadro de planeamento ausente e de políticas de inclusão ineptas, constitui assim, do ponto de vista do sociólogo, um inegável fator responsável pela instalação desproporcionada de periferias degradadas, convertidas em acavalados albergues de gente socialmente desfavorecida e carenciada.

A esta marginalização assim configurada fisicamente, e assim certamente vivenciada, acrescem os mimos preconceituosos e altaneiros da sociedade que se autorreconhece estimável, acicatada – essa indisfarçável discriminação – pelos agastados sentimentos humanos de exclusão, quer do usufruto de infraestruturas, quer do acesso a padrões de vida com a marca da classe média, num contexto de massificação dos consumos e de crescente individualização das relações sociais.

Por outro lado, e em articulação com os sentimentos de desencantamento decorrentes de uma marginalização sofrida como arbitrária e indigna, o consumismo exabundante, para não o considerar de impiedoso neste clima de provações, e a vulgarização da parafernália eletrónica, arquitetam o pastoreio relacional e comunicativo pelas redes sociais, em especial junto dos jovens, que a estes proporciona um sentido, diria de natureza operante, ao conceito de comunidade virtual que, verdade seja dita, se torna compensativa (porque sentida) do deslaçamento tendencial da sociedade.

Todavia, a exulceração desse tipo de racismo (sobretudo reativa à afirmação sobranceira de superioridade social), coligado ao vazio da virtualidade comunitária, diligentemente espicaça a vivacidade inventiva desse sentido, destinando-lhe uma fisionomia materializada através do deslocamento, desse corpo social, da esfera privada para a ocupação das ruas, praças e outros espaços públicos.

Posto isto, poder-se-á presumir que se assiste a uma modalidade supostamente astuciosa de protestação ao uso livre do espaço público, alardeando a sua condição social como arma de arremesso aos acomodados e instalados do status quo, tendo como propósito a condenação ressentida da hipocrisia dos valores burgueses e da injustiça de uma riqueza ostentadora perante a miséria dos pobres.

Neste enredo caldeado de performance e insubmissão, busca-se (decerto) uma identidade coletiva ameaçada que se metamorfoseia numa simbiótica luta geracional e de classe em que o cinzentismo do bairro sobe ao palco público (mediático) da picardia exibindo, de modo vivaz, o fulgor do anonimato decursivo da sua deserdada realidade. Apesar de se situar no plano da interpretação de sinais, Elísio Estanque contraria, e bem, neste seu (con)texto, a presente despolitização da sua ciência, esboçando causas e aflorando, sem subterfúgios, o incontornável e necessário questionamento político. Estou com ele.


[1] Público, 26.08.2014

segunda-feira, agosto 25, 2014

A VIRTUDE DESALMADA DO MEDO

diaborealNão é forçoso ser-se uma sumidade para caucionar que o homem, como ser pensante que é, se desdobrou ao longo dos tempos através do pensamento. Por conseguinte, se o pensamento teceu a sua exercitação, a liberdade de pensar faz-se seguramente exigência da humanização do seu ser. Adversar essa liberdade é inegavelmente impedir assim o aperfeiçoamento humano. Deste modo, os medos irracionais, que intencionalmente se instilam no homem, inscrevem-se nessa adversão. O medo dos deuses faz parte dessa irracionalidade onde se firmam as raízes psicológicas das religiões e dos seus arcaísmos filogenéticos. Deste jeito, libertar a humanidade desses medos passa por harmonizar a sua razão com a ciência abandonando o cativeiro das sombrias crenças desse divinizado temor. Eis a insuperável contenda entre a religião e a ciência. As aclarações naturalistas das ocorrências da vida impacientam, deste modo, manifestamente as religiões. A ciência, através da sua investigação e evolução, abala teimosamente a arrumação das suas essências cognitivas e éticas. Exaltar a liberdade de pensamento é, acima de tudo, enaltecer a virtude da dúvida em prejuízo da inflada virtude da fé. A verdadeira liberdade não é possível enquanto os homens sofrerem desse intrigante medo. Das divindades e de outros espíritos confrades que por aí borboleteiam.

 

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terça-feira, agosto 12, 2014

O MM E AS SUAS VERDADES ANTECIPADAS

No dia em que o Tribunal de Contas exibiu os custos da nacionalização do BPN (2203 milhões, paga o ZÉ, e para já, muito por baixo)

 

pequeno marques mendesO termo começo por dizer tem, no plano argumentativo, um sentido lógico mas é intrinsecamente duvidoso que esse pragmático começo ao falante pertença. Somos feitos de história e esta de encontros divididos, uns circunstanciais, outros procurados, outros ainda cultivados. Não obstante a história que nos marca, ela abriga a possibilidade da experiência e mostra-se, apesar da robustez da sua medida, incapaz de aniquilar o nosso desejo de descoberta.

Referida que está a historicidade, especificamente a das palavras e das ideias, e a sua benfazeja permeabilidade, começo então por dizer que o perentório e o decisivo, se por um lado atormentam, por outro, saudavelmente geram insubordinação. Repercutindo Foucault, eu gostaria que o discurso existisse em meu redor com uma transparência calma, profunda, indefinidamente aberta, onde os outros respondessem à minha expectativa, e de onde, uma a uma, as verdades se erguessem. Como seríamos nós e o mundo diferentes se as verdades se instaurassem na imanência deste discurso verdadeiro e na possibilidade de o viver e partilhar?

Porém, claramente outra é a realidade. Convivemos com a tartufice da encenação aprimorada na excessiva e educada arte da adaptação, e como bem nos lembra Nietzsche, capaz de virar o casaco segundo qualquer vento. Trata-se aliás de uma faculdade que, no campo da política dependente, submetida e emparelhada, se desenvolve nos picadeiros do disciplinamento partidário, se cinzela nos púlpitos ritualizados das televisões e se afina na escorregadia ambição pessoal.

Engolfado nesse engajado prélio de luzes e saberes, MM é um figurino impagável no jogo da manipulação procurando, através da simulação e da encenação do discurso verdadeiro, catequizar, aliciar e parasitar certos territórios de almas desprevenidas em benefício próprio ou da sua família partidária. Enredado alegremente na praça pública da hipocrisia política, o comentador MM esforça-se, talvez atraiçoado pela sua pequenez física, por se oferecer homérico enquanto apetrecho extremado (e não menos altivo) de um certo controlo ideológico e social dos (e nos) tempos que correm.

MM reverencia, neste particular, o comportamento do Governador do Banco de Portugal mas toca, com o dedo mindinho, no seu pequeno desacerto. Diz ele que Vitor Bento devia ter assumido as rédeas de BES logo que a decisão da sua designação foi sentenciada. Ter-se-ia driblado a traficância de milhões e atalhado a imensidade da desdita. Contudo, MM não deixa de enaltecer Carlos Costa pois, moralizando o escorregão, compreende a sua boa-fé e indulta, deste jeito e com desembaraço, a sua inépcia. MM embrulha, na sinuosidade do método, a verdade do discurso no seu discurso da verdade, acreditando na força mágica do ato da ritualização mediática e na radiância do palco para a abrilhantar. Se o Governador escorregou, MM obviamente tropeçou. A disformidade entre o intimamente pensado e o externamente dito é inegável pela transparente incongruência subjetiva, ao qual se combinam as reais consequências do hiato. Felizmente, muito povo parece ter dado conta da topada!

 

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sábado, agosto 09, 2014

IMPERTINÊNCIAS CONVENIENTES







Mario-Vieira-de-Carvalho

“Portugal competitivo”. “Aliança Portugal”. “Governo de Portugal”. De bandeira nacional na lapela, enchem a boca com “Portugal”. Mas não governam Portugal. Jogam à cabra-cega. De olhos vendados pelo monetarismo, precipitam-se a cada passo, aos tombos, nos buracos que eles próprios escavaram: o da dívida; o da emigração, sobretudo a jovem e qualificada; o do desemprego, da pobreza e da desertificação; o da estagnação e do atraso, inclusive na economia, acelerado pela destruição em curso na ciência, na educação, na saúde, na justiça, etc.; enfim, o da crise demográfica, um poço sem fundo provocado pelo desmantelamento do Estado social.
Portugal na lapela, Portugal na forca.

Mário-Vieira de Carvalho (Público – 09.08.2014)