quarta-feira, março 30, 2016

PELOS CAMINHOS SOMBRIOS DA DEMOCRACIA

 

goya_negrasA Democracia anuncia-se uma permanente e incansável sintaxe social e humana, ainda que, a todo o momento, inacabada e desafiada. Diferentemente, a vida do comum dos seus artífices – que a Ela destinam princípios, regras e organização – irrompe, não obstante, com atributos que lhes facultam assombrosas e congénitas reações ao seu viver primordial. Protegidos, nascem presenteados com a inestimável e inerente salvaguarda das suas preservações sem que as suas consciências delas se ocupem.

Todavia, esses naturais e provindos recursos, afrentados com vontades conscientes discrepantes, exibem a sua dificuldade, ou mesmo inépcia, na obra comunitária de acerto dos privados desejos e sentimentos. O instintivo dá espaço ao intencional (próprio e comum) e este assim se torna desígnio da obra humana e moral do convencional. À sobrevivência básica segue-se a inevitabilidade natural do ajuste da vida futura. Os problemas singulares, ao fazerem-se sociais, com eles se entrelaçam na sua multiplicidade diversa. Bem mais tarde, concomitantemente bestificados e maravilhados, apercebemo-nos circundados pela improvável e contrastante regência do comportamento social. Desejando certamente, embora confusos, a desejável homeostasia de um mandato que realize o humano. Desejando, enfim, uma Democracia que oportunize a Vida das pessoas.

Mas as convenções chamadas mercados, ao longo dos tempos, converteram-se numa ideia abarcante de suposta dignidade e, sobretudo por isso, desordenadamente aventureira. A negação pertinaz de outras possibilidades e ideações de diferentes modos de vida consolidou a sua ilusória e insondável primazia. O neoliberalismo de que se fala distanciou-se da sua exiguidade explicativa económica e fez-se ao caminho das hegemonias. Tramou pressupostos, arquitetou valores e tornou-se sentido civilizador único. Sem alternativas, autoritário e colonizador. Em suma, fascistoide servindo-se de sombrios caminhos de uma improfícua democracia onde o humano se desperdiça e a humanidade se aniquila.

sábado, março 19, 2016

NÓS, PENSANDO E AGINDO COMPROMETIDOS

 

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Parafraseando HEGEL…

 

 

 

 

Temos de não acreditar que as perguntas da nossa consciência, sobre os problemas do mundo atual, se encontram respondidos pelos Antigos. 

Em conformidade, pergunto eu, quem deve responder?

terça-feira, março 15, 2016

A ALEGRIA PARTILHA-SE, A DOR RARAMENTE

 

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“A obra de Rouault “Rosto de Palhaço” (1948) se encontra atualmente exposta no Museum of Fine Arts, em Boston, Estados Unidos. O retrato do palhaço assume no quadro deste pintor uma projeção épica, mostrando que ao contrário do que o artista que é o palhaço deixa transparecer, ele também sente dor. O pintor concentra sua atenção no rosto do retratado, tentando captar de todas as formas possíveis essa dor, através de suas tintas aquarelas. Os traços expressionistas estão presentes na forma disforme e caricata que o rosto assume, com traços grosseiros e fortes, expressando além da dor, certa raiva e angustia do palhaço.” (http://vanguardaexpressionista.blogspot.pt/)

 

 

José Rentes de Carvalho (JRC), citado por João Céu e Silva[1], sobre o seu livro O Meças, diz:

 

O que conto é o filtrar de uma longa sequência de situações, pois tenho uma boa capacidade de observar e nada mais faço na vida do que estar atento ao que acontece. Vou picando aqui e além tiques das pessoas, maneiras de ser, frases que dizem e atitudes que têm. Podia ter sido polícia porque escapa-me muito pouco. Este Meças é uma construção de situações, sentimentos e acontecimentos vistos ao longo de um determinado período de tempo. É o amalgamar de muitas situações numa única personagem. É a condição humana.

E esclarece:

 

Não conheço ninguém assim, mas sim muitas pessoas que têm uma boa parte dessa violência dentro de si. Tenho-as visto explodir por questões minúsculas e pergunto-me como é que um sujeito estoura daquela maneira se o motivo é tão diminuto. A resposta é: tem muita raiva acumulada desde que nasceu.

Estas duas passagens cativaram-me à leitura, em breve, de O Meças. Deleito-me, tal-qualmente JRC, a espiar trejeitos, a dissecar modos de ser, a sondar o que se diz e a botar acidez, quanto baste, à tartufice da neutra e sensaborona linguagem. Em contrapartida, com a singularidade de ser um tipo emocionalmente reativo, senti-me alfinetado quando o autor alude as feiosas e descompassadas explosões promanadas da raiva acumulada, sobretudo armazenada desde o berço.

Reconhecendo o labirintar do pensamento, umas vezes mais sólido, outras menos vigoroso pelo efeito do humano envolvimento, vejo-me, nessa reversão às raízes, numa série de encruzilhadas onde o caminho da razão se deixou atalhar, em momentos mais que muitos, pelos inúmeros e intensos trilhos dos afetos e das emoções. Para a minha idade, acresce um tempo longo de mais e exageradamente fundo para me procurar, andarilhando pelo O erro de Descartes Ao Encontro de Espinosa.

Porém, quatro enastrados significantes (condição humana, violência dentro de si, questões minúsculas e raiva acumulada) em dois curtos excertos é obra, embora controversa, sempre estimulante para excogitar sobre a mediação emocional, sobretudo quando nos pomos no âmago do achado. No essencial, como sentir, para mim, é estar implicado, é avaliar as aproximações às coisas e às pessoas, é orientar-me nas relações inevitáveis com o todo da vida, é nele – nesse sentir - que o pensamento se me faz movimento e me apega ao mundo dos afetos e das emoções.

Para tal, o dualismo cartesiano da mente e do corpo, do físico e do psíquico, da matéria e do pensamento, não me serve. É uma possibilidade que não me protege nessa vontade de manter irrequieta e entusiasmada a minha capacidade de reagir e de me indignar na busca esgrimida de uma vida mais plena e satisfatória. Com alguma raiva, talvez. Mas certamente entranhada em muita repugnância e tristeza. Uma dor de alma que a reflexão e o tempo não alcançaram civilizar...


[1] Artigo interessante que vale a pena ler (DN de 12 de março de 2016).

domingo, março 13, 2016

ACONTECE ENTREVISTA

 

De PEDRO PAIXÃO com HELENA SACADURA CABRAL

Um momento introdutório com FANCISCO JOSÉ VIEGAS, entrevista publicada em agosto de 2013. Um homem singular, inteligente, culto e desarmante. Aqui deixo o registo.

“Talvez por causa da doença, não tive uma vida muito fácil mas não a trocava por mais nenhuma. Apesar de ter sofrido tanto, tenho muito a agradecer à minha doença, porque foi por causa da minha doença que me doutorei, que escrevi os livros que escrevi, tive as paixões que tive. Há um elemento espiritual muito forte. É possível que Jesus Cristo tenha sido bipolar. Uma pessoa vai ver no Novo Testamento, as mudanças de humor dele são imensas e muito fortes. Isto eu nunca ouvi em lado nenhum, isto é uma tese nova.”
(Pedro Paixão, 2009, Grande Reportagem SIC: Mentes Inquietas)

Nota – testemunhe apenas se estiver disponível para ser inquietado.

 

quinta-feira, março 10, 2016

O DIFÍCIL PARA CADA PORTUGUÊS NÃO É SÊ-LO; É COMPREENDER-SE

Citação de Miguel Torga (Diário XV, 1987), retirado do DN de hoje.

transferirSéculo XX. Parte dele, por obra da herança que recebemos, prestou-se à catarse do intelectualícidio amargado. Estado, Igreja e Universidade, em celestial enredo com a PIDE/PVDE, tiranizou a crítica política e escarmentou os exegetas desataviados. Comparável, em matéria de acossamento, só o Tribunal do Santo Ofício, no século XVI.

Hoje, no século XXI, às instituições incriminadas, embora num frágil quadro democrático, reuniu-se uma outra vigorosa, de contornos mais indefiníveis, mas não menos eficiente. Os media, que outrora ajudaram à fundação da democracia, exibem-se hoje como um dos seu principais fatores de degradação. Os interesses gerais descobriram-se trocados por outros, criados pelos mercados e seus apensos publicitários e políticos.

A função crítica desvaneceu-se e a perversa influência acomodou-se no lugar desocupado. De cidadãos resta-nos a condição de alorpados consumidores, eleitores e clientes. Chega Marcelo com um sedutor discurso de consenso. À volta da Constituição e sem aparentes indecisões sobre o Governo “à esquerda”. De opinante galga à suma instância do político. O tempo dirá como ele, Presidente, jogará neste campo minado de convergência entre a opinião e a política.

terça-feira, março 08, 2016

ULTIMATOS, HOSTILIDADES E POUCAS-VERGONHAS

 

susanna_e_os_ancic3b5esPedro Tadeu listou as mentiras e à Maria Luís Albuquerque acusou-a de mentirosa[1]. Das duas uma; ou a Maria Luís mentiu e é, com efeito, uma despudorada aldrabona, ou Pedro Tadeu, ofendendo a ex-ministra, incorre em conduta criminosa por calúnia. Não obstante, no plano da obviedade moral e cívica, aprovo a ideia do jornalista Tadeu de que a incompatibilidade de Maria Luís não é com a vida entre os abutres da finança, mas, sim, com a vida política sã. Mas como a Lei e a Moral, nos tempos que correm, não dialogam politicamente, tudo é possível.

Dizem os historiadores que o Ultimato inglês (1890) representou um sinal vexatório e humilhante para povo português, com consequências políticas e culturais consideráveis. O que pode esta referência histórica tem a ver com a trapalhada das presumíveis mentiras e das eventuais calúnias? É que as linhagens hoje são outras, de um outro universo, não baseadas na tradição histórica da pretérita e paroquial aristocracia, dando o caciquismo rural lugar à caciquia financeira da qual Maria Luís é uma ultramontana, certa e teologicamente submissa. Para mim, o que ela vai ganhar ou não, pouco ou nada significa. O que me importa significar é esse nó simbólico à entronização histórica de um outro aviltante Ultimato, aquele que igualmente nos apequena, o Ultimato continuado dos dissolutos delírios do eufemístico Mercado. E aí, Maria Luísa já há muito se definiu.


[1] No seu artigo de opinião no DN de hoje.

Imagem retirada DAQUI

segunda-feira, março 07, 2016

NÃO SE CONSEGUE CONVENCER UM RATO DE QUE UM GATO PODE TRAZER BOA SORTE

 

08aPersiste em mim aquela inocência infantil que me leva a esperar que toda a gente tenha um natural sentido do certo e do errado. A esta candura improvável não se acerca, estou certo, o sublime das morais absolutas. Para mim, tudo é (ou parece ser) simples e cândido. O bem, aperfeiçoa as vidas; o mal, perturba as suas existências. De certeza certa estou que os deuses teimam em tecer a urdidura das nossas histórias e a desnaturar o genuíno das nossas disposições. Ao ingénito cerzem eles, apesar da bondade dos gestos, sempre uma outra ordem sem a arte da justiça e o engenho da compreensão. Perante o reiterado revés, rompe de ora em diante a inquietude das minhas determinações, impelida por uma vontade de renascer, na busca das fontes originárias, ao que parece, esquecidas ou mesmo perdidas. Sem messianismos redentores nem sebastianismos proféticos e promissores. Sem deuses. Apenas intentando encontrar a liberdade e as sociabilidades que me fazem sorrir na intimidade que entrelaça e abraça o humano e que nesse meu estar com os outros, me faz sentir verdadeiramente gente e, seguramente, um tipo mais feliz.

 

NOTA – O título do post é da autoria de Picasso assim como o quadro. Ambos retirados DAQUI.

domingo, março 06, 2016

ESGRAVATA-SE UM PONTO DE FUGA

 

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Quando é que a Política funda uma racionalidade no ventre desta desordem de igrejinhas? Uma Política capaz de se livrar  desse angustiante e imorredouro paliativo que, deixando intacta a ideia do mal e da trapaça, nele inscreve e perpetua o artifício que a sanciona?

quarta-feira, março 02, 2016

AO SALTAR MUROS, PODE-SE SEMPRE CAIR

 

João Pedro Marques escreve no DN[1]:


Conta-se que certo dia uma jovem mãe muito preocupada com eventuais erros que pudesse vir a cometer na educação do seu filho teria perguntado ao pai da psicanálise como deveria proceder para não traumatizar a criança. Freud ter-lhe-á respondido: “Não quer traumatizar o seu filho? Não o eduque.”

Ao ler este excerto, de imediato, pensei na afamada expressão lacaniana estádio do espelho. Mais do que explorar este significante como uma natural fase de desenvolvimento, interessante é considerar a metáfora que com ela segue junto. Ou seja, o estádio como um campo onde se joga o jogo de ver e ser visto e do qual o resultado é a imagem própria (aqui, da criança) que se vai estruturando. O surpreendente deste jogo é que para se ganhar tem de se perder. A constituição do eu, ao exigir a perda da indistinção entre dentro (o eu) e fora (o mundo), ganha um corpo que limita o interior do exterior. É óbvio que tudo isto acontece num lugar onde o Outro se envolve também nesse jogo de olhares e assim oportuniza o movimento das identificações, deixando para trás o tempo das imitações. Sendo assim, penso que educar passa por estar sempre presente neste outro tempo compósito em que a criança, ou mesmo o jovem, se abalança na objetivação das identificações e, através da linguagem, vai crescendo na sua função de sujeito. Não obstante, com a condição de não distorcer, com dramatismos escusados, a já de si dura experiência da existência educativa.

[1] No seu artigo de opinião “Freud e o rei Paipai”, de 1 de março de 2016.

terça-feira, março 01, 2016

A AMIZADE, AFINIDADES E SUPERFICIALIDADES

 

carlseilerNa amizade não busco a mansidão. A amizade é vida, é experiência, é existência. Não é uma mera categoria nem propriedade ou qualidade de alguém. A amizade é relação, é proximidade genuína e livre. Não procuro com a amizade reciprocidades para a confirmar. Não idealizo, também, solubilidades que encobertem e desvaneçam equívocos entre a amizade que se aviva e o eu consciente que a deseja. Decerto postulo um toque de intimidade sem que a intimidade inquiete a verdade que me desperta. Aclimada às artes da existência, a um cuidado de si, sinto que a amizade não se pode enlear em pastoralismos ou em outras quaisquer servidões. Não destino, através da amizade, a plenitude ou uma outra ilusória verdade a não ser aquela que se vai dialogicamente revelando e alçando. Espero sempre muito da amizade, mas dela não aguardo tudo. A amizade resiste ao equívoco e ao distanciamento quando (e enquanto) a mendacidade não a permeia e contamina. Na amizade, as falhas e as fraquezas são acolhidas com singeleza quando vividas na presença sentida de uma liberdade e autenticidade reconhecidas. O espaço da verdadeira amizade é, e será sempre, dominado pelo desejo de estimar e não pelo mando da necessidade (in)certa. A amizade é, no essencial, um lugar de (des)construção, um lugar de liberdade, de autenticidade, de criatividade, de entusiasmo e de (trans)formação . A amizade, esta amizade, de resto, faz-me falta.