quinta-feira, fevereiro 26, 2015

UMA INTERROGAÇÃO ÉTICA – DO TRUNFO AO TRIUNFO DA BATOTICE

transferirNão estou acostumado mas também não me sinto (per)seguido pela sombra da perplexidade. Dedicados cristãos e ateus resolvidos, apesar das suas avessas justezas – uns crendo que Deus criou o homem, outros acreditando que foi o Homem que concebeu deus – ambos espelham com agrado, entre o louvor e a conveniência, o revelado rosário das melodiosas e sociais prédicas do Papa Francisco, de acordo com a natureza religiosa ou laica das suas espiritualidades. Donde vem esta sensibilidade comum que convizinha estas contrastantes almas, admissivelmente sobrevindas, do Cristianismo os primeiros e, quiçá, do Ideal marxiano os segundos?

A minha exegética explicação – e aqui vai a sua premissa medular – é que uns e outros são sensíveis ao sofrimento dos homens e das mulheres desterrados do chão da sua dignidade e, por via disso, uns e outros sentem-se irmanados não só na queixa (e natureza) desse desditoso calvário como comungam no concerto das suas causas e, eis a suma notícia, no apontar condenatório dos factótuns cultores, obscuros e inumanos, dessa alienante atmosfera que acorrenta as gentes ao dinheiro mediante despudorados e desalmados encantamentos, preceituando e compulsando, deste jeito, a cruenta lógica de uma realidade social agoniada pela voracidade da renda e pelo ascoso cálculo dos que muito têm e mais querem ainda.

As teologias, cristã e laica, descobrem-se então naquele rizoma ético de germana humanidade enquanto uma outra gente, seguramente mais germânica, bem-apessoada, de jesuítico rosto e semblante altivo, taramela, em chorrilho, razões de mercado papeados em ruidosos e esgarçados números que, adormecente na sua presunção, espertam afinal a penúria e a plebe que dela amarga. Pedro Sampaio Nunes, no Prós e Contras desta segunda-feira[1], foi um indiscutível artista, histrião arquétipo dessa outra gente. Antecipou e regurgitou números sobre os números dos outros, arengou sobre eles empertigado e possuído por um sentido único e forcejou-se por catequizar os incautos chamando à encenação, com tocante contumácia, o uso simples mas espelhante de uma banal folha de Excel. Sempre improporcionado, os desfechos das suas oratórias económicas culminaram, através das suas mensagens epilogadoras, numa patética mas desmascarada exaltação política à lufa-lufa dos coveiros dos nossos cemitérios sociais e humanos. Em jeito de conclusão, configura-se-me, deste modo, como sempre atual a inconciliabilidade entre (os números do) Capital e (a verdade do) Trabalho, reconhecendo que a utilidade das categorizações, por si só, não consubstancia a engenharia reversa desta farsante e ignóbil batotice. Mas a batota, essa, transparece nua e obscena apesar de embrulhada no sorriso emproado e desdenhoso dos trapaceiros.


[1] 23 de Fevereiro de 2015

domingo, fevereiro 08, 2015

APOSENTAÇÃO – UM AMPLO TERREIRO DE LUTA

Intervenção realizada no 5ª Congresso do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa (SPGL)

P1150301Nem sempre se pensa o tempo bastante para soltar o que nos vai na alma. O apontamento escrito que se segue não é mais do que um burilado desabafo ocasionado por outros ressaltados numa aproximação de pares, a que habitualmente se reclama o atributo de reunião de trabalho.

Permitam-me, assim, com alguma ironia, para me proteger de desnecessárias e ociosas nebulosidades, começar por esclarecer que pertenço àquela camada supostamente desqualificada de aposentados à qual, por ordem desse poderoso e calculado quadro binário mercatório onde a juventude irrompe exaltada, se fixa e cola uma outra atávica e paternalista categoria; a categoria social da velhice. Aclaro (todavia) que, para aconchego do meu ego e sossego dos meus pares igualmente enrugados, enquanto o rumor do fim não despontar no meu (e julgo que no vosso) corpo, os meus e os vossos olhos não deixarem de reconhecer criticamente o que observam, a doença não nos atraiçoar e o medo não nos aprisionar, o poder da insolência da norma instalada não sonegará (ou não nos deve sonegar) o pleno direito à vida e à liberdade de a coabitar.

Não obstante a historicidade diversa que a todos nós, aqui presentes, nos faz diferentes, a pluralidade das nossas díspares idades, das nossas experiências e dos nossos olhares, pensamentos e juízos sobre a realidade que nos atinge e o Real que socialmente nos arruma, estou certo da exigência comum que nos aproxima neste quadro atual – chocante e dramático, moldado de indignas desigualdades, trágicas exclusões e violências de toda a ordem – que, apesar das aparências civilizacionais, não consegue mascarar a manifesta e crescente esclerose desta combalida e capturada democracia. A promovida e decretada austeridade em que vivemos, dessubstanciada enquanto conceito económico, entulha-se – assim e por conveniência – de cínicos moralismos para valer e se legitimar na sua função instrumental de extorsão a caminho de uma ávida e vantajosa redefinição, autoritária e assimétrica, das relações essenciais de organização da nossa sociedade.

Evitando alongar-me em demasia, socorro-me à sinopse da minha perspetiva, atrevendo-me a identificar e a apresentar os três planos – que priorizo – de análise e ponderação que sobre esta compósita temática da aposentação que, sendo já de si compósita, se complexifica quando a urgência de hoje se tempera com um futuro por vir.

1. O plano da luta imediata, tendo em atenção a centralidade do papel que importa atribuir à função social dos sistemas de pensões no que à formulação de políticas neste domínio diz respeito.

Em termos mais amplos e abrangentes, diria que neste campo importa, aliás como se tem sindicalmente empreendido, salvaguardar os níveis de vida no período de reforma e rejeitar, a pretexto do equilíbrio do sistema, a sarcástica e bondosa referência estrutural daquele despudorado limite ideológico da premunição e premonição da pobreza, assim como as tentativas de imposição, por analogia, de esquemas contributivos próximos dos mecanismos seguradores privados e combater o decréscimo dos rendimentos através de expedientes técnicos similares ao fator de sustentabilidade ou às novas fórmulas de cálculo, entre outros.

A moção aprovada na semana passada, no âmbito da Tribuna Pública realizada no dia 29 de Janeiro, em frente do Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, em defesa de uma aposentação digna, é (neste capítulo) esclarecedora. Nela, são enunciados algumas das medidas que têm agravado seriamente as condições de vida dos professores e dos educadores aposentados, como (naturalmente) são contrapostas as exigências daí resultantes, constituindo estas o fundamento da luta premente pelos nossos direitos e dignidade.

2. O plano da longevidade crescente e das suas implicações humanas, sociais e económicas, tendo em conta a definição de políticas que, de modo eficiente e notoriamente, se concentre na função social que o sistema público de pensões deve acolher.

No que respeita ao presente, e sobretudo ao futuro das pensões de reforma, importa que todo e qualquer ajustamento face à progressiva longevidade não se estabeleça pela redução dos rendimentos dos aposentados, colocando o encargo da suposta correção sobre estes, arquitetando cálculos que afetam negativamente a chamada taxa de substituição e/ou moldando trajetos de rendimento na reforma que se afastam da evolução geral de rendimentos na sociedade.

Se a questão dos rendimentos é determinante na qualidade de vida dos aposentados, para uma aposentação bem-sucedida não é, no entanto, bastante. Aposentei-me no dia 1 de Junho de 2008 e no dia seguinte, felizmente, não me senti mais velho. Concluí, então, para espanto meu, que a aposentação, por si, não me fez envelhecer. Este traço irónico, caros congressistas, tem apenas como propósito alertar para a necessidade de constituir a condição de aposentado como objeto de preocupação, estudo e reflexão sindicais e, sobretudo, para a necessidade de olhar, sem paternalismos doentios, para todos aqueles que se encontram nesta fase de vida adulta mais avançada.

A idade não tem, por si só, um estatuto explicativo no que respeita às capacidades psicológicas, sociais e cognitivas. Ela (a idade) é apenas uma variável bruta cujo significado, nesta complexa sociedade moderna, merece ser esclarecido em referência, não só à igual complexidade dos processos que constituem o desenvolvimento humano, como às condições que o modelam. A longevidade crescente alarga o universo dos aposentados e uma parte destes, é bom lembrar, conservam a sua autonomia (física, psicológica e social), mantêm a capacidade de decisão e controlo sobre a sua vida e mostram-se ativos (e de voz ativa) no exercício da sua cidadania. Inscrevem-se, neste campo, aspetos de trajetórias e projetos de vida, de sociabilidades e de identidade que fundam mudanças que convém acompanhar. Para bem de todos, estejam estes no ativo ou na aposentação.

3. O plano da organização sindical dos aposentados sindicalizados, tendo em vista a sua representatividade quantitativa (nº de associados) e qualitativa (natureza dos problemas que se suscitam no âmbito do direito a uma digna e bem-sucedida aposentação).

Neste campo, enuncio três tópicos que considero relevantes para o estudo, análise e deliberação no domínio da jurisdição sindical. São eles:

- A participação dos professores e educadores aposentados na vida sindical, seu âmbito e representatividade nas estruturas de formação e decisão sindicais.

- A exigência imanente de renovação de quadros na sua correlação com o significado e valor do relacionamento e comunicação intergeracional, designadamente com os aposentados sindicalistas que manifestem disponibilidade e interesse no domínio deste tipo de cooperação.

- Aprofundamento e descentralização das atividades formativas e culturais, tendo em linha de conta os contributos teóricos hoje apresentados no domínio da investigação acerca do desenvolvimento humano, nomeadamente no que respeita aos adultos de idade avançada enquanto seres em formação.

Relembrando Saramago, numa passagem do seu livro Evangelho Segundo Jesus Cristo, aquando da morte de Jesus onde diz que ele foi morrendo no meio de um sonho, contrastando diria que não aceito, não devemos aceitar, morrer num kafkiano estado de pesadelo. Não só por nós mas, igualmente, por todos aqueles que incontornavelmente passarão por este tempo grisalho da vida.