domingo, maio 12, 2013

O OUTRO, NÃO É APENAS UM NÚMERO. É UM OUTRO EU.

images (6)O realizador do filme Z, a Orgia do Poder (1969), Constantin Costa-Gavras, acabou de produzir O Capital, um filme crítico sobre o poder do dinheiro e o sistema bancário mundial. Autor de vários filmes de registo político, Costa-Gravas deu uma entrevista ao Público[1] tendo à pergunta – Quando decidiu abordar o tema dos bancos? – respondido que o seu propósito era fazer um filme sobre o dinheiro, evidenciando como ele nos corrompe, afeta as nossas vidas, muda as relações entre as pessoas e as próprias ideias, procurando assim explicar como o sistema funciona e como ele está longe da democracia e dos problemas sociais. Mais à frente e sem rodeios, reconhece que a democracia é hoje, por vezes, uma anedota, acrescentando que atualmente já não há grandes ditaduras pois a ditadura, agora, é o dinheiro.

Entretanto, e circunstancialmente, ao vagabundear pelos blogues que no meu se movimentam, o Vias de Facto atraiu a minha curiosidade com uma postagem titulada Os mercados financeiros são os novos deuses. Nele se escreve que na passada sexta-feira teve lugar o ritual de sacrifício, de modo a que os deuses, satisfeitos pela subjugação demonstrada, fossem hoje condescendentes. A prática do ritual confina-se, como se pode certificar[2], a Passos Coelho e à sua oferta sacrificial de cortes aos deuses do dinheiro e à orgânica satisfação destes, naturalmente prenha de generosa benignidade ante a obediência comprovada. A emissão de dívida pública a 10 anos, diz-se, virou brilharete nesta circunstância perante a axiomática e supina procura com a taxa de juro a rimar.

Se Costa-Gavras nos alerta para a monocracia do dinheiro, o Vias de Facto testemunha a sua tirania neste terreno pátrio, porventura mais ameaçado que outros, tendo presente a acutilante acusação[3] de Miguel Real, no seu livro Nova Teoria do Mal. Não sendo o mal necessariamente português, Miguel Real traz à colação as chagas morais que definem […] o consulado da geração política que se apossou de Portugal desde finais da década de 80, apresentando três dos preceitos nacionais que agravam a nossa sombria tragédia. São eles, como a vida nos confirma, as comezinhas úlceras do oportunismo de quem tem unhas, toca guitarra, do espertismo de quem tem olho em terra de cegos se julga rei e do indiferentismo de quem vier a seguir, que feche a porta. Diga-se, em abono da verdade, que o progressivo envilecimento político radica, também e de um modo tristemente percetível, na estimada admissibilidade do supracitado preceituário, igualmente tóxico, no ambiente cultural mais geral, com reflexos inexpiáveis na aprimorada harmonia da sua acomodação às fidalguias dos apodrecidos ambientes ideológicos e políticos hoje dominantes.

Neste tempo de apuros, dito de inevitabilidade, em que as raposas do dinheiro vagueiam livre e insolentemente pelas democracias convertidas em galinheiros, a animalidade entontecida pela sua mesquinha mas presunçosa superioridade faz soçobrar, sem qualquer contrição, o humanismo da alteridade proposto por Corine Pelluchon[4]. Afeta os outros sem que, em momento algum, se perturbe e se deixe pelos outros afetar. No âmago da sua perversidade, não é apenas o reino corrompido da liberdade que renega as fronteiras da responsabilidade humana e social mas a pura devassidão de uma aética surda às invocações (ou mesmo insensíveis aos sinais) pungentes de dor e de sofrimento atualmente bem vivas na sociedade portuguesa. É mais do que tempo de nos indignarmos, sem medos, dessa crueldade de que todos nós acabamos por ser responsáveis, designadamente pela estranha renúncia do nosso dever de insurgência perante esse poder do dinheiro, ilegítimo, arrogante e perigosamente expansivo. Não basta arengar cidadania. Importa sim, fazermo-nos humanos enxergando e escutando o mundo com humanidade e (re)agir em concordância. Enquanto é tempo…


[1] Edição Lisboa de 06.05.2013

[2]Postagem retirada do blogue Vias de Facto

[3] Texto introdutório (pág.22).

[4] Noção proposta por Corine Pelluchon e citada por Adalberto Dias de Carvalho em Antropologia da Exclusão ou Exílio da Condição Humana.

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