quarta-feira, maio 14, 2014

CUMPRIR O DEVER HOJE, PARA GARANTIR O DIREITO AMANHÃ

Eis o princípio original de um sistema de repartição socialmente solidário

8828336990_73b63522b3_0Em bom rigor, pensar e desdobrar uma problemática obriga a um talhar conveniente pelas articulações certas. Sem doutas presunções, apenas com a elementar prudência intelectual, apresentarei aqui, como ponto de partida, uma parte pertinente de um argumentário, que suponho basilar, para aclarar o modo como as políticas que adotam extensamente a austeridade têm como efeito, entre outros, pela ideologia e pela ação, desacreditar e desmantelar os sistemas públicos de pensões.

Neste brevíssimo escrito, pretendo apenas chamar a atenção para a importância do sentido que se abraça quando se representa o esquema de repartição – e não de capitalização, entenda-se – que apoia a visão da natureza da instituição-repartição. Deste modo, interessa esclarecer sobre o que institui ela? A transferência, por cada geração e numa perspetiva individual, do rendimento no tempo (modelo 1) ou, a partilha solidária do rendimento corrente entre gerações, ou seja, entre os trabalhadores no ativo e os trabalhadores reformados (modelo 2)?

A clarificação desta posição de partida não é de modo algum indiferente, quer no desenvolvimento lógico e argumentativo, quer nas implicações e consequências do modelo adotado. Bem pelo contrário. O modelo 1, ao assemelhar-se a um esquema de poupança-reforma, de implicação individual, oportuniza a emergência de uma semântica harmonizável com as ideias de poupança e de segurança e, em consequência, ativa um tipo de subjetividade que a legitima e, sobretudo, a naturaliza. O modelo 2, por sua vez, coloca-se na orbe da solidariedade entre gerações e da natural e necessária responsabilidade social que a escora, tendo presente que um trabalhador quando contribui, não o faz para financiar a sua pensão futura mas sim concorre para a sustentabilidade das pensões de reforma dos seus contemporâneos.

Pois bem! O modelo 1, hoje tendencialmente apadrinhado pelas políticas liberalizantes, tem vindo a impor-se progressivamente como referência dominante na análise e definição das pensões, enfatizando-se a ideia de que cada geração, no período de atividade, deve contribuir de modo a alcançar, aquando da reforma, uma prestação futura, em termos de valor, equivalente. Como se pode facilmente apreender, esta visão avizinha-se da lógica dos esquemas de capitalização que, de modo desinibido, hoje se vai acomodando na mesa das negociações. Subjacente a este artifício persegue-se, importa sublinhar, uma validação com base no isco ideológico de que o trabalhador deve acumular recursos para financiar a sua própria pensão.

Por sua vez, o modelo 2 situando-se no campo da solidariedade geracional, assenta no dever de contribuir previamente para financiar as pensões dos reformados das gerações precedentes, justificando e legitimando deste modo o direito de receber uma pensão no futuro. Trata-se pois de um contrato social/geracional que ao Estado cumpre regular, criando as condições que garantam e assegurem o seu financiamento, nomeadamente pelos trabalhadores e os seus empregadores, não desrespeitando ele próprio as suas obrigações no que concerne aos trabalhadores da administração pública, de modo a proporcionar ao reformado uma taxa de substituição humanamente condigna, tendo como referência o seu anterior rendimento salarial.

Em síntese, a lógica solidária da repartição tem por base a riqueza criada, o rendimento do trabalho e a sua redistribuição sob a forma de prestações sociais, de acordo com regras claras a que se deve submeter a distribuição e partilha no todo social. Pelo que foi dito, e em jeito de conclusão, é assim óbvio inferir que o financiamento das pensões não está dissociado da produção e, naturalmente, da distribuição de riqueza e das respectivas circunstâncias económicas, sociais e políticas. A destruição atual em matéria de criação de riqueza, de emprego e de capacidade produtiva, aliada à transferência de rendimento nacional para o estrangeiro, através da irrevogável dívida, mostra à exaustão que o tema das pensões é, acima de tudo, um problema mais vasto de natureza política que importa alterar, designadamente nos campos económico e social. Através da ação crítica, não desdenhando da pertinência discursiva que a conduz e a fundamenta.

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