terça-feira, março 15, 2016

A ALEGRIA PARTILHA-SE, A DOR RARAMENTE

 

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“A obra de Rouault “Rosto de Palhaço” (1948) se encontra atualmente exposta no Museum of Fine Arts, em Boston, Estados Unidos. O retrato do palhaço assume no quadro deste pintor uma projeção épica, mostrando que ao contrário do que o artista que é o palhaço deixa transparecer, ele também sente dor. O pintor concentra sua atenção no rosto do retratado, tentando captar de todas as formas possíveis essa dor, através de suas tintas aquarelas. Os traços expressionistas estão presentes na forma disforme e caricata que o rosto assume, com traços grosseiros e fortes, expressando além da dor, certa raiva e angustia do palhaço.” (http://vanguardaexpressionista.blogspot.pt/)

 

 

José Rentes de Carvalho (JRC), citado por João Céu e Silva[1], sobre o seu livro O Meças, diz:

 

O que conto é o filtrar de uma longa sequência de situações, pois tenho uma boa capacidade de observar e nada mais faço na vida do que estar atento ao que acontece. Vou picando aqui e além tiques das pessoas, maneiras de ser, frases que dizem e atitudes que têm. Podia ter sido polícia porque escapa-me muito pouco. Este Meças é uma construção de situações, sentimentos e acontecimentos vistos ao longo de um determinado período de tempo. É o amalgamar de muitas situações numa única personagem. É a condição humana.

E esclarece:

 

Não conheço ninguém assim, mas sim muitas pessoas que têm uma boa parte dessa violência dentro de si. Tenho-as visto explodir por questões minúsculas e pergunto-me como é que um sujeito estoura daquela maneira se o motivo é tão diminuto. A resposta é: tem muita raiva acumulada desde que nasceu.

Estas duas passagens cativaram-me à leitura, em breve, de O Meças. Deleito-me, tal-qualmente JRC, a espiar trejeitos, a dissecar modos de ser, a sondar o que se diz e a botar acidez, quanto baste, à tartufice da neutra e sensaborona linguagem. Em contrapartida, com a singularidade de ser um tipo emocionalmente reativo, senti-me alfinetado quando o autor alude as feiosas e descompassadas explosões promanadas da raiva acumulada, sobretudo armazenada desde o berço.

Reconhecendo o labirintar do pensamento, umas vezes mais sólido, outras menos vigoroso pelo efeito do humano envolvimento, vejo-me, nessa reversão às raízes, numa série de encruzilhadas onde o caminho da razão se deixou atalhar, em momentos mais que muitos, pelos inúmeros e intensos trilhos dos afetos e das emoções. Para a minha idade, acresce um tempo longo de mais e exageradamente fundo para me procurar, andarilhando pelo O erro de Descartes Ao Encontro de Espinosa.

Porém, quatro enastrados significantes (condição humana, violência dentro de si, questões minúsculas e raiva acumulada) em dois curtos excertos é obra, embora controversa, sempre estimulante para excogitar sobre a mediação emocional, sobretudo quando nos pomos no âmago do achado. No essencial, como sentir, para mim, é estar implicado, é avaliar as aproximações às coisas e às pessoas, é orientar-me nas relações inevitáveis com o todo da vida, é nele – nesse sentir - que o pensamento se me faz movimento e me apega ao mundo dos afetos e das emoções.

Para tal, o dualismo cartesiano da mente e do corpo, do físico e do psíquico, da matéria e do pensamento, não me serve. É uma possibilidade que não me protege nessa vontade de manter irrequieta e entusiasmada a minha capacidade de reagir e de me indignar na busca esgrimida de uma vida mais plena e satisfatória. Com alguma raiva, talvez. Mas certamente entranhada em muita repugnância e tristeza. Uma dor de alma que a reflexão e o tempo não alcançaram civilizar...


[1] Artigo interessante que vale a pena ler (DN de 12 de março de 2016).

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