quarta-feira, agosto 19, 2020

LABIRINTOS MAIS OU MENOS ARCAICOS

Mesmo que enlaçados, ler e escrever requerem disposições discrepantes. Quanto a mim, é mais imediato, porventura mais mobilizador, cultivar o pensamento através do diálogo com a leitura. Não obstante, a escrita proporciona-me, e vai impondo ao meu pensar, o deleite da disciplina, da coerência e da profundidade. Imposições às quais vai acrescendo a escrupulosa exigência de agradar ao intento de dispor de um pensamento sentido como livre e verdadeiro. Tornando-me, quem sabe, mais transparente, mais sujeito da minha subjetividade, neste tempo abstruso, denso de sucessivas e bastardas incitações. Na verdade, situamo-nos num tempo sombrio, de silenciosa serventia aos aguilhões do exterior, que causando a dispersão do interior humano, imergem o homem no lodaçal primário das entranhas emocionais. Forçado à presença teimosa desta cultura perversa, o sujeito desliga-se de si, dissolve-se e enfraquece-se. Já absorto e distraído, deixa-se então “encaixotar” – é o termo – no recetáculo regrado de uma anestesiante e simplista subjetividade. Ademais, gerando e tramando, através dela, cínicas e novas condições à expansão das vulnerabilidades individuais, tecendo, e é disso que se trata, decorrentes e talhadas conjunções de conformidade irrefletida. Afinal, obediências de que os múltiplos populismos se valem, e buscam, da economia à política, frutescendo o disfarce das determinações que, na deslisura, os possam justificar e validar. Assim acreditando, finalizo este breve texto parafraseando Francisco Louçã[1], admitindo que o sonambulismo não nos irá proteger, em tempo algum, desse e doutros vírus ubuescos. Bem pelo contrário.


[1] Em “A estratégia do bufão” (A Revista do Expresso, de 15 de agosto de 2020).

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