segunda-feira, março 31, 2025

CÍNICO E MALANDRO, A IRONIA COMO ESTRATÉGIA DE RESISTÊNCIA CULTURAL

Na infância, fui um curioso e inocente malandro. Talvez, pela sensação de desconforto, como se me considerasse inoportuno. Com o tempo, fui descobrindo um trabalho comum que, de certa forma, me incomodava. Gradualmente, percebi a necessidade de entender o buraco em que me encontrava e, então, comecei a tentar livrar-me dele. Principalmente quando compreendi que muitos dos passos amedrontados que dei eram guiados por um conceito superficial e isolado de sua significação cultural.

Com o passar do tempo e das minhas progressivas ondas críticas — tendencialmente irónicas ou até cínicas — comecei a desvelar algumas das diversas facetas da sociedade, da cultura e das relações de poder. Embora disfarçadas, essas estruturas criam a figura do “malandro” como um boémio indolente e vadio, que sobrevive sem trabalhar, explorando a confiança alheia.

Diversos autores, entretanto, contribuíram para situar e aprofundar o conceito do “malandro”, inserindo-o no contexto cultural. José Saramago, com sua ironia crítica, conduz-nos aos domínios do poder, da moralidade e da condição humana. As suas personagens, frequentemente, personificam os "malandros" que transgridem normas sociais e religiosas, posicionando-se à margem de um sistema que tenta controlá-los. A ironia em sua escrita oferece uma crítica contundente à hipocrisia de certas instituições.

Machado de Assis, por sua vez, é um mestre da ironia e do cinismo literário. Em obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, seus personagens, com ações e pensamentos impregnados de cinismo, podem ser vistos como exemplares do "malandro". Brás Cubas, narrador de sua própria vida e morte, simboliza a arte do malandro, enfrentando as adversidades com um humor irônico.

O dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues trouxe à tona a figura do "malandro" como um símbolo da luta pela sobrevivência em um ambiente hostil. Em peças como O Malandro, ele explora a moralidade ambígua, a falsidade social e o comportamento cínico de personagens que manipulam as normas da sociedade para alcançar seus próprios interesses.

Fernando Pessoa, especialmente por meio do heterônimo Bernardo Soares, apresenta uma visão irónica da vida e da sociedade. O “malandro” pessoano pode ser interpretado como alguém que vive à margem, muitas vezes desiludido, mas ainda assim afirmando sua própria dignidade por meio de um olhar cínico sobre o mundo. Sua reflexão sobre a "fuga da realidade" e o confronto com as convenções sociais proporciona um campo fértil para explorar o malandro em termos filosóficos e culturais.

A filosofia existencialista de Sartre também é útil para pensar sobre a figura do malandro. Em A Náusea, o protagonista Roquentin lida com a alienação, o absurdo e a libertação ao desconstruir normas sociais. O malandro, sob essa ótica, é alguém que, ao invés de se submeter às convenções, questiona-as e as utiliza como forma de afirmar sua liberdade e autenticidade.

Zygmunt Bauman, na sua análise da modernidade líquida, reflete sobre como os indivíduos, numa sociedade pós-moderna, lidam com as incertezas e as normas flexíveis. O malandro, nesse contexto, pode ser visto como alguém que manobra nas incertezas da vida moderna, criando uma estratégia de sobrevivência que envolve cinismo e uma ironia sutil.

Mikhail Bakhtin, com sua leitura do "carnavalesco" e da inversão das normas sociais, oferece uma chave importante para compreender a figura do malandro. O malandro, nesse sentido, subverte as convenções sociais com uma atitude irreverente e cínica, mas também carrega uma crítica subversiva às hierarquias estabelecidas.

Ortega y Gasset examina as transformações nas dinâmicas sociais e culturais, com ênfase na ascensão das "massas". O malandro, nesse contexto, pode ser visto como um produto da sociedade de massas, que, embora se adapte à conformidade social, manipula as regras para subverter o sistema e afirmar sua individualidade.

Charles Baudelaire, com sua visão da vida urbana e da moralidade decadente, propõe uma crítica à sociedade através de uma ironia amarga. O “malandro”, sob essa ótica literária, é alguém que, com uma visão cínica da sociedade, questiona e ironiza as convenções morais e sociais de seu tempo.

Pierre Bourdieu, por sua vez, analisa as estruturas sociais e culturais que regulam as práticas e os gostos. O malandro, nesse sentido, pode ser visto como alguém que transgride essas regras de distinção, manipulando os códigos de classe e poder para conquistar seu espaço e desafiar a hierarquia social de maneira crítica e irônica.

A figura do “malandro”, enquanto conceito intelectual e cultural, pode ser explorada sob várias óticas, desde a subversão social até a ironia cínica frente às estruturas de poder e moralidade. Esses autores oferecem diferentes perspetivas para analisar esse fenômeno, seja na literatura, na filosofia ou na sociologia, constituindo uma base sólida para aprofundar o conceito de malandro num contexto de crítica e dignidade afirmativa.

Esta é a ideia central que norteia o meu propósito pessoal. A ironia cínica, em sua essência, é uma forma de comunicação que questiona e subverte as normas estabelecidas, especialmente no que se refere às estruturas de poder e moralidade. Ao contrário da ironia tradicional, muitas vezes mais subtil, a ironia cínica é direta e desafiadora, frequentemente apontando para a hipocrisia ou contradição nas normas sociais e políticas. Sua relevância no contexto dessas estruturas pode ser compreendida através de algumas perspetivas-chave que, a seguir, explorarei com mais profundidade. 

Sem comentários:

Enviar um comentário