Na infância, fui um curioso e inocente malandro. Talvez,
pela sensação de desconforto, como se me considerasse inoportuno. Com o tempo,
fui descobrindo um trabalho comum que, de certa forma, me incomodava.
Gradualmente, percebi a necessidade de entender o buraco em que me encontrava
e, então, comecei a tentar livrar-me dele. Principalmente quando compreendi que
muitos dos passos amedrontados que dei eram guiados por um conceito superficial
e isolado de sua significação cultural.
Com o passar do tempo e das minhas progressivas ondas
críticas — tendencialmente irónicas ou até cínicas — comecei a desvelar algumas
das diversas facetas da sociedade, da cultura e das relações de poder. Embora
disfarçadas, essas estruturas criam a figura do “malandro” como um boémio
indolente e vadio, que sobrevive sem trabalhar, explorando a confiança alheia.
Diversos autores, entretanto, contribuíram para situar e
aprofundar o conceito do “malandro”, inserindo-o no contexto cultural. José
Saramago, com sua ironia crítica, conduz-nos aos domínios do poder, da
moralidade e da condição humana. As suas personagens, frequentemente,
personificam os "malandros" que transgridem normas sociais e
religiosas, posicionando-se à margem de um sistema que tenta controlá-los. A
ironia em sua escrita oferece uma crítica contundente à hipocrisia de certas
instituições.
Machado de Assis, por sua vez, é um mestre da ironia e do cinismo literário. Em obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, seus personagens, com ações e pensamentos impregnados de cinismo, podem ser vistos como exemplares do "malandro". Brás Cubas, narrador de sua própria vida e morte, simboliza a arte do malandro, enfrentando as adversidades com um humor irônico.
O dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues trouxe à tona a
figura do "malandro" como um símbolo da luta pela sobrevivência em um
ambiente hostil. Em peças como O Malandro, ele explora a moralidade
ambígua, a falsidade social e o comportamento cínico de personagens que
manipulam as normas da sociedade para alcançar seus próprios interesses.
Fernando Pessoa, especialmente por meio do heterônimo
Bernardo Soares, apresenta uma visão irónica da vida e da sociedade. O
“malandro” pessoano pode ser interpretado como alguém que vive à margem, muitas
vezes desiludido, mas ainda assim afirmando sua própria dignidade por meio de
um olhar cínico sobre o mundo. Sua reflexão sobre a "fuga da
realidade" e o confronto com as convenções sociais proporciona um campo
fértil para explorar o malandro em termos filosóficos e culturais.
A filosofia existencialista de Sartre também é útil para
pensar sobre a figura do malandro. Em A Náusea, o protagonista Roquentin
lida com a alienação, o absurdo e a libertação ao desconstruir normas sociais.
O malandro, sob essa ótica, é alguém que, ao invés de se submeter às
convenções, questiona-as e as utiliza como forma de afirmar sua liberdade e autenticidade.
Zygmunt Bauman, na sua análise da modernidade líquida,
reflete sobre como os indivíduos, numa sociedade pós-moderna, lidam com as
incertezas e as normas flexíveis. O malandro, nesse contexto, pode ser visto
como alguém que manobra nas incertezas da vida moderna, criando uma estratégia
de sobrevivência que envolve cinismo e uma ironia sutil.
Mikhail Bakhtin, com sua leitura do "carnavalesco"
e da inversão das normas sociais, oferece uma chave importante para compreender
a figura do malandro. O malandro, nesse sentido, subverte as convenções sociais
com uma atitude irreverente e cínica, mas também carrega uma crítica subversiva
às hierarquias estabelecidas.
Ortega y Gasset examina as transformações nas dinâmicas
sociais e culturais, com ênfase na ascensão das "massas". O malandro,
nesse contexto, pode ser visto como um produto da sociedade de massas, que,
embora se adapte à conformidade social, manipula as regras para subverter o
sistema e afirmar sua individualidade.
Charles Baudelaire, com sua visão da vida urbana e da
moralidade decadente, propõe uma crítica à sociedade através de uma ironia
amarga. O “malandro”, sob essa ótica literária, é alguém que, com uma visão
cínica da sociedade, questiona e ironiza as convenções morais e sociais de seu
tempo.
Pierre Bourdieu, por sua vez, analisa as estruturas sociais
e culturais que regulam as práticas e os gostos. O malandro, nesse sentido,
pode ser visto como alguém que transgride essas regras de distinção,
manipulando os códigos de classe e poder para conquistar seu espaço e desafiar
a hierarquia social de maneira crítica e irônica.
A figura do “malandro”, enquanto conceito intelectual e
cultural, pode ser explorada sob várias óticas, desde a subversão social até a
ironia cínica frente às estruturas de poder e moralidade. Esses autores
oferecem diferentes perspetivas para analisar esse fenômeno, seja na
literatura, na filosofia ou na sociologia, constituindo uma base sólida para
aprofundar o conceito de malandro num contexto de crítica e dignidade
afirmativa.
Esta é a ideia central que norteia o meu propósito pessoal. A ironia cínica, em sua essência, é uma forma de comunicação que questiona e subverte as normas estabelecidas, especialmente no que se refere às estruturas de poder e moralidade. Ao contrário da ironia tradicional, muitas vezes mais subtil, a ironia cínica é direta e desafiadora, frequentemente apontando para a hipocrisia ou contradição nas normas sociais e políticas. Sua relevância no contexto dessas estruturas pode ser compreendida através de algumas perspetivas-chave que, a seguir, explorarei com mais profundidade.
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