sábado, junho 28, 2025

O LOBO CAPITALISTA MANIPULA A DIALÉTICA DA INCLUSÃO

Vivemos uma época deploravelmente original, ou seja, quanto mais as empresas falam de igualdade, diversidade e causas sociais, mais crescem os seus proveitos e reconcentram a sua figura no utópico fim do comum. Não, não nos deixemos embalar por cartazes coloridos e suas obscenas campanhas que, sem desonra, exaltam a presunção, a inclusão ou o reforço do poder. A doutrina, porém, preserva-se fria e imperturbável, como sempre tem animado o capitalismo, tudo metamorfoseado em produto, sem esquecer, vejam bem, as nossas sublimidades mais íntimas.

É essa a provocação feita por estudiosos que ousam estudar e falar, quiçá no deserto, deste atual “capitalismo woke”. Todavia, longe de ser um erro de percurso ou uma moda estranha, o fenómeno não é mais do que a evolução consonante do próprio capitalismo, depois de décadas de adaptação aos ventos culturais e políticos do tempo desbravado. Contudo, o que mudou não foi o plano, mas sim as roupas que ele traja.

Durante o século XX, o trabalhador deixou de ser apenas um mero corpo que produz, para se tornar também um sujeito que sente, se identifica, protesta e se impõe como condição. Presenciámos, então, a empresa incluir-se numa sociedade que não vende apenas produtos, mas que também inscreve valores, ética e antevisões. Logo, nesse decurso, o próprio capitalismo teve de reconfigurar-se: já não bastava explorar, tornou-se necessário aliciar, logo, seduzir. Assim sendo, já não basta apenas vender, é preciso impressionar e emocionar. É aí que o arrazoado woke entra em cena, não como resistência, mas como utensílio da sua arte dramática.

domingo, junho 22, 2025

A ARQUITETURA EMOCIONAL DA DOMINAÇÃO CULTURAL

Este texto, que sinteticamente apresento, inscreve-se numa orientação teórica que rasga com a separação tradicional entre a razão, a emoção e a ética numa breve exposição, reanimando a ideia de que não há maneira de falar sem afeto, nem afeto sem fala. Longe de ser um mero utensílio de comunicação racional de ideias, o fraseado é apresentado como uma prática social e histórica que abraça sentidos, sujeitos e afetos e, portanto, logo intervém, e de modo enérgico, na concertação das subjetividades e das paixões sociais.

Neste tempo de irrefutável dominação capitalista, este modo de encarar torna-se particularmente relevante, dado que revela que os afetos são convocados, encaminhados e até mesmo provocados de modo dedutivo, em concertação com interesses dominantes. A linguagem não apenas conduz ideologias, forjando concordâncias emocionais, ajustando sensibilidades e fantasiando imaginários afetivos que sustentam, ou não, a conveniência social vigente. Isso representa que os discursos dominantes não apenas convencem, mas afetam através de densos vínculos que adotam a mercantilização da vida, o consumo como forma de identidade e a obediência tola à ideia arrogante de produtividade.

A SEMENTE E O GRITO

Ninguém vem ao mundo com direitos bordados na pele. Eles não caem do céu, nem brilham ao acaso. São colhidos com dor, lavrados na terra da memória por mãos cansadas de lutar. Cada direito é a semente de uma perda que não se calou, uma lágrima que se ergueu em palavra. Os deveres sustentam o mundo como raízes, mas há direitos ainda por desabrochar, esperando o batismo de um nome certo e justo.


quarta-feira, junho 18, 2025

A SUBJETIVIDADE EM CONFUSA INQUIETAÇÃO (2)

Continuando o tema do texto anterior, importa reafirmar que vivemos sob o domínio de uma lógica capitalista que, mais do que à sua articulação com a economia e modos de produção, adentra no mais íntimo do sujeito e da sua subjetividade. A ideologia, para além das ideias políticas ou arrazoados de poder explícito, age enquanto habilidade silenciosa no que à colonização interior do humano diz respeito. Libertando o encorpado das ideias e relações económicas e sociais, a presença capitalista mostra-se como neutra, inevitável e natural, embutindo no campo cultural um sedimento de identificações cujo valor central situa-se no fetiche da mercadoria.

Nesse processo, os elementos culturais oferecidos como referenciais identificatórios já não têm por base laços comunitários, éticos ou históricos, mas sim a promessa de uma certa figura social nos objetos de consumo. A obra subjetiva passa, então, a realizar-se em torno de ausências encobertas por presenças ilusórias, dissonância essa que provoca trapaceira tristeza. Um alienado sofrimento sutil, embora persistente, que decorre de uma discordância entre o que se deseja e o que é apresentado como desejável. Trata-se de uma inquietação contínua que não encontra descanso, porque a compra nunca satisfaz plenamente o desejo que ela mesma produz.

Esse mal-estar estimula o sujeito na busca por suavização imediata, ainda que passageira. E é precisamente essa urgência que as doutrinas capitalistas estudam, exibindo saídas imediatas para angústias que, na verdade, são estruturais. O ruído ideológico, nesse sentido, atua como uma invocação sedutora: consome-se para pertencer, consome-se para ser, consome-se para não sentir a dor do vazio. A adesão ao consumo, portanto, não é um ato puramente racional, mas uma resposta emocional, quase compulsiva, ao sofrimento psíquico que a própria lógica capitalista ocasiona.

terça-feira, junho 17, 2025

A SUBJETIVIDADE EM CONFUSA INQUIETAÇÃO

A subjetividade humana, longe de ser um núcleo soberano e autêntico, encontra-se cada vez mais colonizada por formas de poder simbólico que operam através da ideologia. No contexto da sociedade capitalista, tal colonização revela-se não apenas como um fenômeno exterior, imposto de fora para dentro, mas como uma internalização silenciosa, persistente e estrutural, que molda o sujeito desde o interior de seus próprios afetos, desejos e formas de pensar.

A ideologia, aqui, não pode mais ser compreendida como uma mera falsificação da realidade, como nas abordagens clássicas da crítica marxista. É preciso pensá-la como uma engrenagem que articula saber, desejo e gozo. Nesse sentido, a intersecção entre o materialismo histórico e a lógica do inconsciente torna-se não apenas fecunda, mas necessária. O sujeito do inconsciente, tal como formulado pela psicanálise "Freud lacaniana", já não se reduz a um agente racional que se alinha ou se opõe às estruturas materiais. Ele é atravessado por fantasmas, pulsões e identificações imaginárias que estão, elas próprias, contaminadas pela lógica da produção capitalista.

A racionalidade aqui invocada não é cartesiana. É a racionalidade do inconsciente, isto é, uma lógica que, embora não obedeça aos princípios da razão instrumental, possui uma estrutura, uma repetição, uma causalidade própria. Assim como a ideologia opera, não apenas no campo da consciência, mas sobretudo no da inconsciência, a produção subjetiva está enredada em imagens e narrativas que sustentam o capital como forma de vida. Como já denunciava Guy Debord, o espetáculo não é apenas o mundo visível, mas a própria forma como o mundo se torna visível.

O CONFORTO DA APATIA

No seu texto “GIRO DO HORIZONTE – ISRAEL”, Pedro de Pezarat Correia, em “A Viagem dos Argonautas”, assim começa; “Israel é uma fortaleza militar, pilar do poderio dos Estados Unidos da América (EUA) numa das áreas geoestratégicas mais sensíveis da Terra, a bacia do Mediterrâneo euro-afro-asiático”, e assim termina; “Nós, europeus, todos, temos pesos nas consciências pelas perseguições a que, durante séculos, condenámos os judeus. Que atingiu as raias do inimaginável na Alemanha nazi e nos países por ela ocupados. Agora estamos a procurar sanar as nossas culpas e aliviar as nossas consciências, solidarizando-nos com os judeus à custa dos palestinianos. Só que não foram os palestinianos os agentes das perseguições seculares aos judeus. FOMOS NÓS". Acrescentaria eu, que num gesto irrefletido de contrição, imaginamos mitigar os nossos pecados prosseguindo indiferentes ao sofrimento de quem, hoje, paga a fatura do nosso esquecimento histórico, pois a nossa solidariedade é um conforto “por baixo preço”, sempre que não exige verdadeiramente nada mudar.

domingo, junho 15, 2025

TRAPOS DE VERDADE

O extremismo de direita do nosso tempo manobra através de um palavreado engenhosamente envenenado, socorrendo-se de vocábulos historicamente articulados à democracia, à liberdade e à justiça, despejando-os dos seus interiores originais, de modo a esculpi-los num horizonte de ideias e princípios autocráticos. O que observamos, neste campo palrador, é o uso e abuso acasmurrado de eloquentes alienados que, deslocados da sua genuína semântica, perdem a ancoração histórica e experiencial que os tornava significantes, colocando-os a ondular ao sabor das agitações populistas e dos seus comoventes alvoroços.

Essa transação não é meramente verbosa, pois constitui o íntimo de uma ideologia, no sentido de travar uma luta pela fixação dos significados no campo simbólico. Assim, imagens como liberdade, povo, soberania ou verdade deixam de ser meios de libertação que a todos procuram servir, tornando-se ideias de animosidade, discriminação e desconfiança desmedida. Logo, em nome da liberdade, recusam-se os direitos humanos; em nome do povo, sustenta-se o ódio às minorias; em nome da verdade, dispersa-se a falsidade.

sábado, junho 14, 2025

O FANTASMA QUE RESPIRA POR NÓS

Se o dinheiro é a alma do nosso tempo, então vivemos sob o império de um fantasma que consome tudo e não sente mais nada. Logo, não estranho o tamanho sufoco, pois o ar que respiro foi penhorado. A cultura vulgarizada, afinal, apenas adora cifrões e renuncia, sem piedade, a quaisquer rumos mais humanos. O capital, o seu bicho, é aquele seu deus que alinha doutrinas e sustenta o delírio provindo da fingida e patológica crença. Eu, o anormal blasfemo, sofro merecidamente de castigo com os pulmões entulhados de náusea. O capital, por sua vez, de alma febril, vai dançando sobre as ruínas do humano.

Talvez por isso o ar se revele repetidamente denso, imundo de ambição e desespero. O capital é isso, um sopro vital do presente deste mundo que respira morte em atuações suaves. Todavia, a minha náusea vai escapando apenas como sintoma de relutante lucidez. A civilização que ergue a sua alma em números não consegue afundar o meu coração nos escombros. Vou, todavia, embora impaciente, respirando o pó da empatia desaparecida.

quarta-feira, junho 11, 2025

PENSAR AINDA É PRECISO

A NECESSIDADE DE PENSAR O IMPENSÁVEL”, texto de Boaventura de Sousa Santos (BSS), chama-nos a atenção para a presente cultura da mediocridade, não apenas como consequência do modelo capitalista contemporâneo, mas, sobretudo, como um dos seus alicerces mais eficientes. BSS mostra de forma convincente que, no sistema educacional, o pensamento crítico tem sido progressivamente substituído por conteúdos utilitários e facilmente assimiláveis, em geral digeridos nas redes sociais sob o disfarce imbecil de informação.

A escola e a universidade parecem deixar de ser espaços de questionamento para se tornarem fábricas obstinadas de obediência. Os estudantes deixam de ser incentivados a duvidar, passando a repetir, deixam de pensar para simplesmente seguir orientações reguladas. Essa lógica, marcada pela fetichização da objetividade e pelo culto da eficiência, transforma o saber em mercadoria e o aluno num cliente passivo.

Em vez de formar cidadãos críticos, forma-se mão de obra submissa e desprovida de consciência política. Como afirmaria Paulo Freire, educar é um ato político: ou se forma para a liberdade ou para a sujeição. Nos tempos que correm, promovidos pelo capitalismo globalizado, tudo indica que nos deixamos, parvamente, distrair pela segunda via. A educação não pode cair na pobreza, cingindo-se ao espelho do capitalismo.

terça-feira, junho 10, 2025

UM IMPULSO DIALÉTICO DO MEU “FILOSOFAR”

Sinto-me afetado por uma perceção severamente pessimista de uma razão que acompanha este evoluir civilizacional. Pressinto, pois, que uma vontade cega domina o mundo farolizado por uma racionalidade sem humanidade. Tudo me aparece como um hábil subterfúgio sem doutrina e disciplina filosófica.

Referenciar, para mim, não implica endossar sancionando toda uma filosofia. Opera, pois, de constituintes que tornam possível aclarar as aporias do ruído moderno, sobretudo aqueles que legitimam e transfiguram em sujeição. O gesto crítico não procura figuras de opressão ou humilhação, mas sim o valor instrumental que alimenta e incentiva a cultura de massas.

A teoria crítica não pode exaurir-se no silêncio do dogma nem se acomodar em seus próprios pressupostos. O campo crítico exige disponibilidade autocrítica, no sentido de atualizar continuamente a própria teoria que o anima. Não há retornos nostálgicos, mas futuros vivos que, em sínteses dialéticas permanentes, mantêm a razão em estado de “recomposição”.

A cultura política não deve ser entendida apenas como filiação, mas sim como inscrição transitória num campo de tensões. Ou seja, uma atitude crítica viva que se incentiva de contrastes e contradições tendo como presente o progresso da humanidade. Diria que a filosofia, neste campo, não é um sistema fechado de verdades, mas um movimento perpetuamente em confronto constante com os seus próprios limites. 

domingo, junho 08, 2025

O SUJEITO E A ARMADILHA DA LIBERDADE

Somos catequizados a pensarmo-nos como livres. Desde cedo, aprendemos a nos ver como propulsores de nossas escolhas, senhores da nossa vontade, arquitetos do nosso destino. Mas essa ideia de liberdade, tão sedutora quanto confortável, disfarça um enredo mais profundo que opera silenciosamente sob a superfície da consciência, ou seja, a conspiração da ideologia.

A ideologia não é apenas informação política manipulada, nem um conjunto de ideias que se escolhe ou rejeita. Ela é o campo simbólico onde o sujeito se constitui. É o que nos chama, nos nomeia, nos oferece um lugar no mundo. E é ao responder a esse apelo que nos tornamos sujeitos, sujeitos intimados a responder, como diria Althusser. O paradoxo é evidente: só nos tornamos sujeitos ao nos submetermos. É nessa curvatura, entre liberdade e sujeição, que a ideologia age com mais impulso.

Mas essa sujeição não se dá apenas no plano da consciência. Como sublinha Leila Longo, há uma ordem inconsciente que nos força a ordenar. Desejamos o que, talvez, nem saibamos, e ainda assim perseguimos o que nunca se estabiliza. Nosso desejo é deslizante, insatisfeito, sempre orientado para um “outro” que nunca se entrega por completo. E é justamente esse desejo, instável, insubmisso, inexplicável, que a ideologia captura e se ajusta em práticas materiais, em atos que acreditamos nossos, mas que respondem a lógicas alheias.

domingo, maio 25, 2025

A ESTÉTICA DA MANIPULAÇÃO

O que “parece verdade” torna-se mais perigoso do que a própria mentira. Clipes curtos, citações mutiladas e palavras de impacto sem contexto arrastam a emoção, ofuscam a razão e mascaram o próprio disfarce. Contra a nova arrogância antidemocrática, pede-se pensamento crítico e memória histórica. Vamos a isso…

sábado, maio 24, 2025

A INVERDADE POLÍTICA FRAGMENTADA

Vive-se um tempo em que se está na moda de usar pedaços de verdade para esconder indesejáveis mentiras. Técnicas retóricas que são usadas com habilidade para distorcer a informação, manipulando-a com meias-verdades e omissões estratégicas. O objetivo é claro, ou seja, enganar e influenciar os resultados a favor de certos interesses.

Essas estratégias usam disfarces bem pensados. A verdade, apresentada de forma fragmentada, serve para dar um ar de legitimidade a argumentos muitas vezes falsos ou enviesados. Mesmo quando os dados são reais, são retirados do seu contexto para evitar o desconforto que poderiam causar.

As generalizações enganosas são frequentes e baseiam-se em casos isolados, apresentados como se fossem representativos do todo. Assim, em vez de mentir abertamente, molda-se a perceção da realidade, guiando o pensamento do público numa direção que lhes é conveniente.

Esses retalhos de verdade funcionam como selos de autenticidade. Mas escondem, na verdade, a complexidade de situações que incomodam ou desafiam certas narrativas. Por serem difíceis de desmontar, já que exigem atenção, tempo e argumentação cuidadosa, estas verdades parciais tornam-se armas eficazes na manipulação ideológica e cultural.

Este é, pois, um cenário que devemos saber reconhecer. É uma ameaça silenciosa à democracia e aos seus valores fundamentais. O futuro está em jogo…

quarta-feira, maio 21, 2025

CAMINHOS PARA RESISTIR AO NEOFASCISMO

Nos últimos anos, temos assistido ao crescimento de movimentos neofascistas em várias partes do mundo. Trata-se de um fenômeno complexo e multifacetado, com várias causas interligadas, que têm permitido que essas ideologias ganhem força, especialmente em tempos de crise.

A crise económica global, que teve o seu auge em 2008 e que se prolongou com os efeitos da pandemia de COVID-19, deixou muitos países numa situação de profunda desigualdade social. O desemprego e a precariedade aumentaram, e as classes mais baixas passaram a sentir-se excluídas do sistema. Essa frustração alimenta o ressentimento e a busca por soluções fáceis, como as oferecidas pelos movimentos neofascistas, que prometem recuperar uma suposta "ordem" e restabelecer a "dignidade" de um passado idealizado.

A globalização e as grandes ondas migratórias geraram, por sua vez, um sentimento de insegurança em muitas comunidades. As pessoas têm receio de perder as suas identidades culturais, especialmente quando percebem que as suas tradições estão sendo desafiadas por outras culturas. Esse medo é muitas vezes exacerbado pelos discursos populistas, que culpabilizam os imigrantes pela crise social e económica, exaltando sentimentos xenófobos e nacionalistas.

A crescente polarização política tem gerado, por sua vez, um ambiente de desconfiança em relação às instituições tradicionais. Muitos sentem que os partidos políticos, tanto à esquerda quanto à direita, já não representam os seus interesses. Nesse vazio, os movimentos neofascistas oferecem uma alternativa, apresentando-se como forças contra o sistema político estabelecido e utilizando uma retórica antissistema para atrair eleitores desiludidos.

segunda-feira, maio 19, 2025

O TRUMPISMO EM PORTUGAL

O trumpismo não se apresenta como uma doutrina política com princípios coerentes. Trata-se de um modo de atuar, onde a comunicação se torna um engenho provocador e emocional. Em vez de argumentos racionais e fundados, a retórica é coloquial, direta e descomprometida com a verdade factual. A pós-verdade ganha espaço, e a narrativa, mais poderosa que a realidade, estabelece o tom do debate público. Nesse terreno, a verdade não é mais um princípio absoluto, é antes lamentavelmente manipulada para servir a um propósito emocional e polarizante.

Neste cenário, os inimigos simbólicos tornam-se protagonistas da narrativa. A democracia, em seu funcionamento pluralista, é gradualmente enfraquecida e o 25 de Abril, símbolo maior da liberdade e da conquista democrática, é progressivamente rebaixado e descartado sem qualquer pudor. A provocação, então, não é apenas uma tática, mas um registo político, onde o choque é valorizado e o conflito se torna incessável. O poder, por sua vez, não se constrói sobre instituições ou sobre processos democráticos, mas sobre a figura do líder, que se apresenta como o libertador de um povo supostamente oprimido pelas ditas elites.

O populismo nacionalista, tal como o trumpismo, alimenta-se da desilusão social e do ressentimento. Ele usa o descontentamento das massas para minar a política democrática e afastar o cidadão do debate pluralista. Ao escavar as desigualdades e fantasiar inseguranças económicas, cria-se um clima de instabilidade onde a representação política parece falhar, dando espaço para um discurso simplista de "nós contra eles". O populismo explora, assim, o mal-estar identitário, apontando como vilões aqueles que são, ou aparentam ser, diferentes, sejam imigrantes, minorias ou as memórias democráticas que incomodam uma visão mais reacionária do país, como o próprio 25 de Abril.

Simplificando as questões e criando uma dicotomia entre o povo "autêntico" e as elites corruptas, o populismo encontra terreno fértil. A polarização é sua maior aliada. O “nós contra eles” transforma-se numa narrativa mobilizadora, onde qualquer nuance ou complexidade desaparece em nome de uma falsa pureza nacional. Os imitadores do trumpismo sabem que, no mundo contemporâneo, a atenção mediática é poder. E para garantir que dominam o espaço político, nada melhor do que alimentar a polémica constante. Criam-se disputas épicas e dramáticas, onde a verdade é substituída pela “verdade revelada”, e a narrativa política é desenhada não para refletir a realidade, mas para manipular emoções e dividir posições. O choque e a provocação servem como uma forma de aprisionar a atenção e manter o conflito turbulento.

A INVASÃO POPULISTA

O "trumpismo" é mais do que um estilo ou uma ideologia, é uma forma de fazer política que atua no terreno das emoções, da imagem e do conflito. A sua entrada aparatosa e excêntrica na cena global desafia não só as práticas da democracia, mas também os nossos próprios critérios de análise política. É o espetáculo do poder em registo de pós-verdade, onde a realidade importa menos do que a narrativa que a molda. A invasão tornou-se ontem mais do que evidente. E o já confirmado “nós contra eles” vai, assim, construindo a sua fértil mitologia populista. Por isso, o 25 de Abril é para eles uma simbologia incómoda. 

sexta-feira, maio 16, 2025

A INSÓNIA DO HUMANO

Vivemos um tempo em que a indiferença humana não conhece cansaço — repete-se, reproduz-se, instala-se como costume. Onde falta o gesto atento, esculpido pela diferença, pela escuta e pela diversidade do saber, cresce a sombra da incivilidade: rápida, rude, rasa.

Pensar o outro com sensibilidade é um caminho para a verdade do humano.
É aí que o conhecer se expande, não como posse, mas como partilha. A liberdade de fazer pontes entre o que se sente e o que se pensa afina a escuta entre subjetividades, favorece encontros, sustém a dúvida como lugar fértil da colaboração.

Há um retrocesso subtil, ou talvez nem tanto, que se insinua nas formas do desprezo, nos gestos automatizados pelo abuso de uma cultura dominante que já não se interroga. A insensatez social não é obra do acaso, é fruto e semente de narrativas que se esquivam à responsabilidade ética do quotidiano.

Abrir-se ao outro é um gesto inicial. É reinvenção das conversas, das presenças, dos modos de reconhecer e ser reconhecido. O ato criativo, nesse espaço, é rutura - sim - mas também cuidado. Inquieta, remove, desperta a consciência no agir.

Criar e educar - eis duas formas de atenção persistente. Dois modos de interpretar, escutar, dar forma à expressão humana que deseja compreender-se. Através desse movimento, o juízo desperta, o saber se renova e o mundo torna-se novamente habitável.

Mas se a educação for só abstração, explicação, hierarquia, então adormece. E com ela, adormece também a verdade, embalada pela repetição anestesiante da indiferença. A ética da solicitude recusa esse sono. Ela vela. E ao velar, afirma: os direitos da vida e da dignidade não são opção, são origem. 

quinta-feira, maio 15, 2025

CRIAR FORA DA CAIXA

Ao ler Rick Rubin, no livro O Ato Criativo: Um Modo de Ser, encontrei um texto chamado “Regras” que me chamou a atenção. É um texto simples na forma, mas com ideias bem provocadoras que, confesso, me deixou intrigado e com uma curiosidade difícil de explicar. Rubin bebe muito de práticas espirituais, e fala da arte e da criatividade de uma forma muito ligada ao que vem de dentro, ao instinto, deixando de lado a rigidez dos métodos tradicionais. Para ele, as descobertas criativas mais verdadeiras acontecem quando deixamos de seguir regras fixas.

E o mais curioso são as razões que ele dá. A ideia central tem a ver com as regras invisíveis, aquelas que nem nos damos conta de que seguimos. São limites que não estão escritos em lado nenhum, mas que fomos absorvendo ao longo da vida. É um pouco aquilo que Bourdieu chamava de habitus: hábitos e formas de agir automáticas, quase inconscientes. E o problema é que essas regras escondidas acabam por nos limitar, mesmo sem percebermos. A criatividade perde força quando nos deixamos guiar por caminhos já definidos.

A verdade é que o nosso pensamento tem história, pois aprendemos coisas, vivemos experiências e absorvemos cultura desde pequenos. Muitas dessas ideias sobre o que é “certo” ou “errado” foram-nos ensinadas em casa, na escola, ou até de forma informal. Com o tempo, esquecemos onde aprendemos certas coisas, mas continuamos a agir com base nelas. Os valores que herdamos da sociedade, dos media ou da moral dominante tornam-se parte de nós e isso influencia muito mais do que imaginamos. Não são maus por si, mas o problema é quando os seguimos sem questionar, como se fossem naturais ou obrigatórios.

terça-feira, maio 13, 2025

AMIZADE, ESSE TEMPO DE LIBERDADE E COMPREENSÃO

A amizade é sempre uma experiência humana profunda. É o lugar onde se torna indubitável a interseção entre o eu e o outro, entre a subjetividade individual e a alteridade irredutível. Onde a verdade existe, a amizade não se constitui por afinidades triviais ou simpatias casuais. Ela emerge como exercício ético, como prática existencial enraizada na atenção, na escuta e no acolhimento interior e afetuoso.

O ponto de partida é o sujeito, enquanto ser criador, capaz de se exceder no pensamento, na expressão e na ação. A pessoa, enquanto centro de experiência e consciência, não é um ser fechado sobre si. O seu movimento criador implica uma abertura do seu próprio ser, a si mesmo, ao mundo e ao outro, uma abertura que só se realiza inteiramente através de afinidades sinceras. A amizade verdadeira não se dá sem essa tensão entre interioridade e transcendência. Só quem se conhece e se cuida de si mesmo pode oferecer uma presença não invasiva, não manipuladora, mas libertadora.

Neste horizonte, a empatia deve ser pensada para além do sentimentalismo. Não se trata de projetar sobre o outro as nossas emoções, mas de aceder, na medida do possível, ao modo como ele habita o seu mundo. A empatia é, nesse sentido, um gesto de descentramento, um esforço hermenêutico de compreensão que respeita a opacidade do outro. É nesse gesto que o outro se revela como fim em si mesmo, e não como meio para a nossa afirmação emocional, moral ou presunçosa.

domingo, maio 11, 2025

A ARTE DE TORNAR-SE

A imaginação assopra como um vento interior. Estimula o pensamento. Aclara caminhos. Pensar é sonhar de olhos abertos. É recolher sentidos no silêncio. É fantasiar lendas com as sobras dos dias. É bordar mundo com fios soltos. Sem essa inspiração, o pensamento sujeita-se aos moldes. Acomoda-se ao já feito. Criar é, por sua vez, o gesto vital que nos mantém em movimento. Empatia e devaneio cruzam-se como gestos que se tocam no ar. A empatia escuta o outro. O devaneio atravessa o invisível. Juntas, fazem da representação um ato vivo. Não apenas compreendendo, mas acolhendo. Dar lugar. Reintegrar presenças que tremem por dentro. Interpretar é tornar-se. É dizer com delicadeza, “aqui estás”. Somos obra inacabada. Não nascemos prontos. Vamo-nos fazendo. Tocados pelo que nos espelha. Pelo que nos ressoa. Pelo que nos desconcerta. Há identificações que nos devolvem a imagem. Outras que nos falam a linguagem secreta da alma. E há ainda aquelas, mais raras, que nos removem e nos refazem. É no encontro com a diferença que mais crescemos. A literatura é casa para todas essas formas de ser. Espelho. Murmúrio. Abalo. Nela descobrimos outras vidas. E por elas, estendemos a nossa, pensando, lendo e interpretando. Tudo isso é, no fundo, uma arte de viver. E de continuar a reconsiderar-se, vivendo a Arte de Tornar-se. 

sábado, maio 10, 2025

A ÚLTIMA LIBERDADE

Vou hoje pensando, a experiência de vida vai ajudando, que a liberdade de pensamento é algo bem mais complicado do que ao longo do tempo imaginei. Essa liberdade depende, estou certo, da saúde da nossa mente. Da cabeça que persistentemente duvidamos, desconfiamos, colocamos à prova. Não se trata apenas de desbloquear intenções, resolver conflitos, interpretar impulsos. A liberdade verdadeira, essa que sempre sonhei como criativa e expansiva, exige mais.

Sempre me interroguei sobre o que seria um pensamento livre, pessoal, verdadeiramente independente. Não aquele que apenas reage, mas o que emerge com sentido próprio, alargando o imaginário, abrindo o campo simbólico. Uma cabeça inspirada no afeto do apreço e do conforto, eis o que sempre busquei. Um estado interno capaz de dar energia e confiança à criatividade da personalidade, que sinto como a finalidade, primeira e última, da minha vida pessoal.

Assim, fui-me afastando, sempre que pude, de um mundo silenciosamente patológico, mergulhado em relações doentias, adormecidas por múltiplos cinismos e pelas opiniões geralmente aceites. Sempre procurei “separar águas”, encontrar caminhos outros, mais íntegros, mais humanamente valiosos.

sexta-feira, maio 09, 2025

ENTRE A SOMBRA E A VOZ

Sem saber, inventamos. Como quem apalpa no escuro, tropeçamos em revelações, e por vezes, descobrimos em nós aquilo que nos escapa. Há, quiçá, uma voz desusada que nos habita. O inconsciente murmura por entre gestos e palavras, e é ele, muitas vezes, que sobe ao palco em nosso nome. Ali, expõe-se com veemência, como se encenasse uma verdade que nem sabíamos conter.

Não sabemos repousar. Há em nós uma urgência de explorar o instante, esse lugar onde o tempo se dobra sobre si mesmo. E nesse ímpeto, dramatizamos. O palco torna-se espelho, e de tanto nos voltarmos para dentro, vamo-nos reconhecendo nas máscaras que julgávamos alheias. A consciência dispersa-se, fragmenta-se na circunstância, mas é desse fragmento que nasce a centelha noética, esse fulgor íntimo do ritual da invenção. Sentimo-nos criadores de mundos por vir, artífices de culturas que o espírito sonha e as mãos moldam, sim, entre a matéria e a alegoria.

Pela palavra, esse sopro modelador, damos impulso ao sonho criativo. Transportamos ideias que ainda não foram ditas, mas que já há muito nos habitam em silêncio. São sínteses nascidas do imaginário, formas novas que a razão sozinha não ousaria conceber. As memórias, polidas pela imaginação, brilham como se nunca tivessem sido tocadas. E os sonhos, com sua audácia sem testemunho, recriam realidades que o presente ainda não ousou viver. Assim, enriquecemos, com o que pensamos, com o que inventamos, com aquilo que, sem saber, verdadeiramente fomos e somos.

quarta-feira, maio 07, 2025

AO JOÃO MANUEL NEVES


És um homem reconhecido pelo que merecidamente te distingue. Em suma, reportar-me-ia sobretudo às tuas incomparáveis qualidades humanas, apreciando e reconhecendo a tua história pessoal, profissional e política. No que me diz respeito, acentuo especialmente a tua elevação ao dialogar, o teu modo singular de ouvir e a forma como te aproximas com empatia das ideias que escutas — aprovando-as ou não. A educação está sempre presente, e o valor democrático constantemente respeitado. Tens a rara capacidade de valorizar a diversidade, promovendo a convivência de ideias distintas sem abdicar dos teus princípios. Essa maturidade cívica é, sem dúvida, uma das tuas maiores forças como candidato e como cidadão. Conta comigo.

 

ENTRE O PENSAR E O AGIR...

A formação da identidade não se dá de forma simples nem linear. A identificação, enquanto eixo estruturante, é bom dizê-lo, dispersa-se nas diversas leituras psicanalíticas e psicológicas, perdendo nitidez na multiplicidade das suas inferências. A articulação entre o pensar e o agir assume um carácter singular, arrastando-se por entre zonas de proximidade e diferença, onde se tecem representações que se tocam, mas não se confundem. Os conceitos de identificação, identidade, positividade e negatividade cruzam-se apressadamente, alimentando o diálogo tenso entre o Eu e o Supereu.

A identidade não é um dado inato, mas revela-se como uma construção relacional. As identificações sustentam o desejo de estabilidade, de concordância, de pertença. Outras, porém, nascem em territórios de ambivalência: são igualmente constitutivas, mas dão corpo ao desacordo, à oposição, à instabilidade. É neste entrelaçar de forças que emerge a célebre dialética entre o Eu e o Outro, largamente explorada por filósofos e pensadores.

Há quem veja a identidade como moldada pelas formações inconscientes. Outros a entendem como ficção, efeito de identificações imaginárias e simbólicas. E há ainda quem a encare como uma tarefa contínua, marcada por aprendizagens, crises e reconfigurações. Deste modo, diferentes níveis de identidade se sobrepõem e entrelaçam, nem sempre de forma pacífica ou coerente. Entre o que o Eu deseja, imita e projeta, e o que o Supereu censura, limita e impõe, instala-se uma oscilação constante. A busca de coesão choca-se com o peso das normas e o arbítrio das regras herdadas.

sábado, maio 03, 2025

A ARTE CRIATIVA DE EXISTIR SIMPLESMENTE

Existir é ser, é viver, é estar. É afastar-se da corrida incessante e da rivalidade estereotipada que nos define. É ousar abraçar a simplicidade e, a partir dela, criar uma arte de experimentar a vida, redescobrindo o essencial enquanto resistimos ao desatino e à superficialidade do mundo.

A simplicidade, contudo, não tem um caminho fácil. Ela não segue a rota da competição, nem cede ao egoísmo das aparências. Ela dispensa o espelho, esse reflexo vazio que a vaidade alimenta, e recusa o mundo que se encanta com a superficialidade. Em tempos em que a sociedade valoriza as aparências e se inquieta com a naturalidade, a simplicidade se impõe como resistência à futilidade do que é efêmero.

É necessário lembrar constantemente o vazio que a vaidade nos impõe e o quanto ela nos afasta da busca genuína pelo que é verdadeiramente essencial. Sem as amarras da vaidade, a simplicidade se torna uma força resistente ao sistema competitivo que domina nosso tempo. Ela rejeita o abuso da competição e a presunção vazia que nos distancia da verdade.

Ao fazer essa transição do Ego para o essencial, a simplicidade revela-se como uma chave para a decifração da armadilha da superficialidade. Entre a vaidade e o essencial, a simplicidade nos guia para o terreno da ética, desafiando o egoísmo e as ilusões que a sociedade moderna perpetua. Em um mundo de espelhos e aparências, ela nos lembra das verdades que, mesmo incômodas, não nos abandonam.

Por mais que nos esforcemos em racionalizar, a simplicidade não pode ser dissociada dos campos ético e estético. Portanto, é imperativo afastarmo-nos da artificialidade e abraçarmos uma vida mais autêntica, imersa no que é verdadeiramente essencial. O "Simplesmente", que no título chama atenção, não é apenas uma palavra, mas uma convicção da simplicidade na sua forma mais pura e profunda, que nos desafia a existir sem as camadas do supérfluo, buscando o que é essencial e verdadeiro na nossa experiência de vida.

domingo, abril 27, 2025

A ODIOSA VIOLÊNCIA VERBAL EM DEMOCRACIA

Estamos em período de eleições e uma verdade desponta: a gritante incompatibilidade com a cultura democrática. O jargão adultera-se, servindo-se da truculência da palavra agressiva e da galvanização acalorada. O riso hipócrita tenta disfarçar a falsidade e suavizar a violência das palavras. A desqualificação, por sua vez, enlaça o rival; a desumanização é clara na ressignificação, e a intolerância esforça-se para dissimular o enfurecimento.

As palavras, mais do que pedradas ou petulâncias, alavancam expulsões, desmentem qualidades e, sobretudo, inflamam aversões e rancores. O sentido alegórico torna-se negativo, convertendo-se assim em algo teimoso, persistente e contínuo. A violência verbal mostra-se, no entanto, insuficiente e, como tal, salta para o palco político agredindo honras, dignidades e identidades. Principalmente, desqualificando aqueles que pensam de forma diferente. Discutir e argumentar não serve, interessa sim tornar o outro um inimigo em que a conciliação e o entendimento é irreal.

A competição democrática em nada assim contribui, pois a ideia da pluralidade, do debate livre e do compromisso com a convivência política contrariada, como é óbvio, danifica a meta finalidade. O que parece importar, diga-se, é caminhar teimosamente o itinerário da insensibilidade, através da intimidação verbal, minando os seus princípios e, consequentemente, favorecendo a assimetria do antagonismo.

sábado, abril 19, 2025

OS PARTIDOS E O AGITADO CENÁRIO DIGITAL

Nesta minha idade já avançada, obrigam-me não só a comprometer, mas também a equacionar o risco que os partidos, igualmente mais desgastados, sejam abatidos por agitações populistas mais astutas e adaptadas ao novo panorama digital. A cidadania dos tempos atuais, goste-se ou não, encontra-se mais dispersa e movimentada, o que ameaça os partidos, que precisam urgentemente se acertar e se regenerar.

A política vive hoje mudanças bruscas e desafiadoras, induzidas pela agitação digital e pelos TICs que a cercam. Torna-se, assim, um cenário corrente mais descentralizado e menos vinculado aos alicerces tradicionais que moderavam a comunicação e a mediação política. Daí, as mudanças políticas se tornam outras, diferenciadas e discrepantes das tradicionais.

Reconheço que não é fácil entender a exigência desse movimento digital e, muito menos, deslocarmo-nos da rotina tradicional de modo a entender a relevância dessa metamorfose comunicável. A cidadania por aqui passa e em consequência das redes sociais, do seu poder difuso e descentrado, as pessoas cada vez mais se desviam, nas suas manifestações e mobilizações políticas, dos partidos e da comunicação tradicional.

quarta-feira, abril 16, 2025

O JOGO DAS IDENTIDADES E O ACORDO DA HARMONIA SOCIAL

Ao ler A Armadilha Identitária, de Yascha Mounk, fui-me concentrando no profícuo e artificioso engenho verbal, enquanto serventia do arquétipo para caçar, sobretudo, o inconsciente de gente descuidada e apoderada pelo seu dente canino. Trata-se de pessoas que pensam e forjam identidades de mentiras distintas, acima da paridade individual, dos seus direitos e respeitabilidade humana.

Como sentencio com evidência, um dos grandes contratempos da chamada “armadilha identitária”, como o autor a batiza, é que ela anemie a harmonia social, sobrestime as identidades desconjuntadas e as converta no foco do debate público e político, obstaculizando a inclusividade e conflituando, envenenando a divergência entre elas. O necessitado essencialismo, ao encurtar a complexidade humana, faz-se indesejável, ao sentenciar as pessoas pelas suas pertenças culturais e não como criaturas próximas e semelhantes.

Enfatizar o jogo verbal e social de soma zero — o que um grupo ganha, o outro perde — gera um clima de rivalidade que, em nada, ajuda o diálogo cooperativo necessário a uma aproximação que se torne socialmente mais fecundante do que nos deixarmos arrastar pela tacanha antipatia entre ambas forjada. Há, então, que investir na razão e no universalismo, aos seus princípios, recorrendo à dignidade humana e aos direitos fundamentais, tentando superar, assim, as suas fragmentações sociais e culturais, sem ter em conta as suas justificadas fidelidades.

Como podemos argumentar contra esse estratagema identitário, segundo Mounk? Sinteticamente, impõem-se quatro pilares indispensáveis. O primeiro, ao valorizar, destacando os direitos universais e a dignidade humana, afirma que todos têm direitos iguais, independentemente de raças, géneros ou outros atributos. Em segundo lugar, dar destaque à ideia que se procura e se ambiciona, ou seja, uma sociedade inclusiva e unificada, através de princípios comuns, assim como, e paralelamente, a consolidação da democracia. Em terceiro momento, reconhecer a complexidade da identidade humana, admitindo a individualidade das pessoas e os seus direitos à liberdade. Por último, servir-se da razão e do diálogo, tendo presente a relevância de soluções racionais e justas para as naturais e legítimas dificuldades, evitando a queda na dita armadilha de ver e pressagiar o mundo.

domingo, abril 13, 2025

A AUTENTICIDADE EM TEMPO DE CONFORMIDADE

Essa forma de se supor, sem argumento ou consciência legítima, é uma resposta à exigência social como forma de se acomodar a uma normalidade fixada, ou melhor, a uma regularidade que nos distancia de um autoconhecimento mais rigoroso e profundo. A verdade da autenticidade, de modo contrário, requer uma consciência transparente da própria finitude assim como um compromisso com possibilidades existenciais mais enraizadas. Ser autêntico não é simplesmente seguir um ritual, mas sim confrontar a dúvida, a hesitação e, sem apreensão, caminhar com a sua própria verdade, sem disfarces ou escapatórias. A procura pela perfeição, enquanto busca pela autenticidade, desafia-nos a resistir às rotinas instintivas e insubmissas à verdade que nos acompanha. Não se trata de um apuro acordado ou modo repisado, mas de uma progressividade constante do "eu" à medida que nos revemos mais conscientes e nos sentimos igualmente mais harmonizados connosco mesmos. Não se trata de uma vontade obsessiva de atingir a perfeição abstrata ou idealizada, mas sim um esforço de alcançar uma vida mais autêntica e plena, tudo feito com a íntegra consciência e responsabilidade.

Caminhar no encalço de um propósito de afinamento e apuramento é, neste sentido, um humano exercício de liberdade. A verdadeira liberdade não está em seguir um caminho predefinido ou cumprir um conjunto de preceitos exteriores, mas sim em poder escolher livremente aprendendo a assumir as consequências dessas opções. É bom que se lembre que a autenticidade exige essa liberdade, uma liberdade que não se restringe à ausência de restrições externas, mas que se expressa na responsabilidade de assumir e viver de acordo com as próprias decisões. Assim, a busca pela perfeição não é uma fuga de quem somos, mas um reencontro com o nosso verdadeiro ser.

Em jeito de conclusão, no decidir por essa vida mais sincera, desaprovemos o finalismo que nos aprisiona à repetição sem reflexão. Em vez disso, abracemos o dinamismo existencial que nos permita confrontar a realidade da nossa própria finitude em busca de uma vida mais saudável e humana, não apenas em termos materiais, mas sim procurando o valor humano decorrente da digna verdade interior. Essas deslocações põem em atividade destacar, de um modo mais evidente, o confronto entre o fado espontâneo e a vivacidade reconhecida, em favor do conceito de perfeccionismo, enquanto vontade de atingir o perfeccional como causa evolutiva e existencial. Para a perfeição do Ser há que saber resistir à rotina mecanizada em busca da inevitável luz da nossa verdade. Saibamos dar importância de fazer da filosofia uma prática diária, uma filosofia que transforme o homem e o oriente na busca por uma vida mais autêntica e significativa. 

sexta-feira, abril 11, 2025

AS RAÍZES DO SAUDÁVEL MALANDRO

Peter Sloterdijk, no seu livro Crítica da Razão Cínica, analisa o cinismo moderno, identificando-o como uma forma de falsa consciência que surgiu após a perda das ilusões iluministas. Para contrastar, recupera o conceito de kynismo, da Grécia Antiga, associado a figuras como Diógenes, caracterizado pela irreverência e pela crítica às convenções sociais.

Nesse contexto, o autor sublinha e caracteriza os seus “cinismos cardinais”, entendidos como manifestações principais do cinismo na sociedade moderna:
– O cinismo militar, que se refere à atitude dos militares que, embora cientes da futilidade e crueldade da guerra, continuam a participar nela, muitas vezes justificando-a com discursos patrióticos ou estratégicos;
– O cinismo de Estado, que diz respeito à postura de governos que, apesar de proclamarem ideais elevados, frequentemente agem de forma oportunista ou corrupta, priorizando interesses próprios em detrimento do bem comum;
– O cinismo sexual, orientado para a exploração comercial da sexualidade, em que a intimidade é mercantilizada e as relações humanas são reduzidas a transações superficiais;
– O cinismo médico, que envolve uma prática clínica que, embora baseada no conhecimento científico, é influenciada por interesses corporativos ou financeiros, podendo até negligenciar o bem-estar do paciente;
– O cinismo religioso, que remete para a instrumentalização da religião para fins pessoais ou políticos, distorcendo os seus ensinamentos espirituais em benefício próprio;
– O cinismo do saber, que se relaciona com a utilização do conhecimento e da educação como ferramentas de poder ou status, em vez de instrumentos de busca genuína da verdade e do entendimento.

quinta-feira, abril 10, 2025

A DANÇA DESCOMPASSADA

Como gostamos e nos cansamos de cavaquear sobre o viver, e é difícil concluir esse assunto, comecemos por fantasiar a vida como a imagem de um café. No início, está quente e agradável, depois esfria, amarga e no fim resta apenas a pergunta; será que precisava mesmo de tanto açúcar para o adocicar? Afinal, viver não é só respirar, comer e esperar pelo momento em que a nossa bateria se cansa e o carregador adormece...

Por vezes, não nos damos conta de que a vida é retalhada pelo pormenor. Cada pedaço de tempo é cortado em fatias finas, muitas vezes invisíveis, que nos escapam sem darmos por elas. Esses pequenos detalhes parecem ser a base de tudo, mas talvez sejam apenas as nossas maiores distrações. O valor da simplicidade apresenta-se ausente, como uma promessa vazia que nunca chega a cumprir-se. Estamos sempre ocupados, sempre com pressa, como se o tempo fosse um jogo de cartas que precisamos ganhar, mesmo sem sabermos as regras.

O mar agitado de uma vida aculturada pela matemática do tempo engendra uma existência repleta de atrativos dispersivos e insignificantes. Vivemos bombardeados por mil e uma opções: publicidade, compromissos, prazos e, claro, redes sociais que bem alimentam a nossa disfunção. E é aqui que a mente, em força, se confunde, se cansa e se fadiga. Não está treinada para absorver tanto estímulo e leveza. Não tem tempo para parar e refletir, e por isso cede à superficialidade das distrações aceleradas. Oscilamos entre a miséria e o valor das palavras, embaralhando as emoções, sem tempo para as digerir. Tudo parece urgente e essência, e se apresenta como tal, mas pouco, ou quase nada.

CHAPOUTOT AVISA, CUIDADO COM O CAMINHO PERIGOSO

Le Monde Diplomatique, através de Johann Chapoutot, relembra que “quando o medo ou o ódio à esquerda leva setores da sociedade a apoiarem forças autoritárias, abre-se o caminho para regimes que podem destruir a própria democracia”. Assim, ele nos alerta: “Cuidado. Já vimos isso acontecer. Quando a direita quis destruir a esquerda a todo custo, acabou por entregar o poder a regimes totalitários que destruíram tudo – até a própria direita.”

O que estamos, de facto, a presenciar hoje? Uma retórica agressiva, impositiva e antidemocrática, alimentada por discursos carregados de ódio, xenofobia, racismo e anti-intelectualismo. Há uma tentativa de deslegitimar as instituições democráticas — como a imprensa livre, os tribunais e os parlamentos. Chapoutot, mais uma vez, lança um aviso histórico que, nos dias de hoje, se torna crucial: nada de alianças com forças antidemocráticas. A defesa da democracia deve sempre vir acima das rivalidades ideológicas. Eis, uma opinião prudente para o tempo em que vivemos. 

segunda-feira, abril 07, 2025

LIBERDADE DE EXPRESSÃO OU DISCURSO DE ÓDIO? UM DILEMA DOS TEMPOS

As possibilidades de interação humana expandiram-se com o surgimento da internet. A rede global ofereceu-nos a capacidade de comunicarmos com quase qualquer pessoa, seja ela conhecida ou desconhecida. Em teoria, tornou-se possível que um pensamento ou até um disparate perdido em algum canto do mundo seja rapidamente difundido para muitas outras pessoas. Qualquer um, com acesso à internet, pode-se tornar um autor ou um orador popular.

Essa é uma novidade que poucos desejam ou conseguem reverter, mas não nos devemos surpreender que o universo online, em constante expansão, reflita e seja refletido nas dificuldades históricas que a humanidade enfrentou ao longo do tempo. A intolerância e o ódio são caraterísticas presentes na sociedade humana desde os seus primórdios, embora, nas últimas décadas, esses comportamentos tenham-se intensificado.

O problema surge quando, apesar de uma maior aceitação da diferença e de uma crescente tolerância, as restrições contra a intolerância são negligenciadas. Dessa forma, o discurso de ódio encontra terreno fértil tanto nas ações como nas palavras. A internet, ao abrir novas avenidas para a comunicação, também criou formas mais amplas de contato entre as pessoas. No entanto, as limitações sobre o que pode ser dito online são muito mais brandas do que aquelas aplicadas ao discurso offline. Na internet, muitas vezes, sentimo-nos livres para dizer coisas que jamais ousaríamos dizer pessoalmente, em público.

domingo, abril 06, 2025

A ARTE DE CRIAR, ENTREGANDO-SE AO DESCONHECIDO

Ao ler Rick Rubin, sinto-me sempre alegremente desafiado. Ao falar de criatividade, ele lida com a música como um fluxo espontâneo que, não devendo ser forçado, exige presença e disponibilidade. Para Rubin, a criatividade não é apenas uma habilidade técnica ou uma tarefa a cumprir, mas sim um modo de ser e, como tal, uma maneira de estar atento e sensível às circunstâncias. Ele destaca a importância de se libertar das contingências e dos entraves para dar espaço ao desejo de começar e à criação a alcançar.

O criador não é o mestre que força a sua vontade, mas o ser humano que se revela aberto e vulnerável para o confronto. Estar disponível à criatividade exige uma entrega sem barreiras e, sobretudo, sentir-se um presente não perdido no passado nem apressado com o futuro. A criatividade, para Rubin, é um espaço onde a mente desacelera e o coração se prende a algo mais profundo, para além do entendimento.

O processo criativo exige assim confiança. Ele admite a aceitação da incerteza, quiçá até do caos, enquanto espera pela beleza do momento imprevisto. A criatividade não é uma força, mas sim um oculto a ser abraçado. Na arte de criar, o segredo não está no afinco, mas na entrega. Criar é, assim, uma dança com a incerteza. Ela se afirma quando a mente cede à oportunidade e o coração assume o controle. Sem forçar, sem querer tudo vigiar, é vital admitir que a criatividade se apresente com a virtuosa autenticidade. 

sábado, abril 05, 2025

DO IMPULSO AO TALENTO, DA ESPERTEZA À INTELIGÊNCIA

A esperteza com facilidade desliza no campo do concreto e nele é reconhecida. A inteligência, por sua vez, apresenta-se pronta a abraçar outros limites que ultrapassam o exercício funcional. Todavia, nem sempre os conceitos são reconhecidos nas suas naturezas e dimensões diferentes.

A esperteza afirma-se com facilidade nas agilidades exercitadas, mais pragmáticas e orientadas para resultados imediatos do “saber fazer”. O valor do seu instrumentalismo adentra-se nos meios para atingir fins, cuidando do seu desempenho e proveito. A inteligência, por sua vez, alarga as fronteiras do seu percurso, acolhendo as múltiplas influências da reflexão. Ao envolver a consciência no processo do pensamento crítico, abstrato, teórico, ético e criativo, atinge-se um domínio cognitivo superior, mais exigente, capaz de espelhar adversidades que merecem ser consideradas.

A inteligência não se limita à mera resolução de problemas do cotidiano. Avança para o entendimento baseado em princípios universais, assentes em teorias consolidadas e em conceitos competentes capazes de legitimar e questionar o status quo. Trata-se, sim, de um processo contínuo de autocrítica com a capacidade de adaptação a diferentes contextos e à exploração de diferentes formas de conhecimento, incluindo, sem reticências, o filosófico e o cultural.

O TALENTO ACONTECE

Rick Rubin diz que “o talento é a capacidade de deixar que as ideias se manifestam através de si”. Eu ousaria acrescentar que o talento é como uma janela aberta numa tarde de vento. As ideias entram, rodopiam, e tu, como quem nada quer, de repente te vês a deixar que elas se espalhem pela casa. Não é que as ideias te pertençam, mas, de alguma forma, tu és o palco onde elas dançam. E, no fim, tu ficas a sorrir, meio perdido e maravilhado, e a pensar que não sabias que podias ser tão bom em deixar as coisas acontecerem.

sexta-feira, abril 04, 2025

RETOMAR O PODER, E SEM DEMORA

O livro de Christine Kerdellant, "MAIS PODEROSOS do que OS ESTADOS", fala sobre o acréscimo do poder das grandes empresas no mundo e como elas estão a ultrapassar, e até engolir, o poder dos próprios governos. Imaginemos isto: as corporações agora têm tanta grana, influência política e controle sobre as nossas vidas que estão a fazer sombra até aos Estados-nação. É como se elas tivessem virado ao verdadeiro "governo mundial".

Kerdellant faz um ponto crucial: essas empresas não apenas mexem os pauzinhos nos bastidores, como também fazem o que querem, muitas vezes sem ninguém as controlar. Elas causam dano às leis, mudam políticas públicas e até agilizam normas globais. E o melhor (ou pior, depende de como se vê), elas fazem isso tudo sem respeitar as fronteiras dos países. Basicamente, elas estão a construir um "governo global", só que sem nenhum tipo de responsabilidade, como seria tolerável ou não.

Além do poder económico, essas corporações controlam a informação, a tecnologia e até o dinheiro que circula pelo mundo. Elas não estão só a competir com os governos, pois já vão tomando as rédeas do futuro deste planeta. E, se a gente não tomar cuidado, podem até decidir para onde o mundo vão encaminhar.

quinta-feira, abril 03, 2025

A IRONIA CÍNICA, UMA FERRAMENTA DO MALANDRO

A ironia cínica é uma forma única de comunicação, marcada por uma percepção crítica que problematiza e subverte as normas estabelecidas, especialmente em relação ao campo do poder e da moralidade. Ao abandonar a subtileza e o humor suave, adota um tom mais direto e desafiador, ressaltando a hipocrisia e as discrepâncias nas normas sociais e políticas.

Essa forma de ironia expõe as incoerências e falácias nas pretensões de autoridade e moralidade das instituições. Ela revela a distância entre o discurso oficial (seja político, moral ou religioso) e as práticas reais que acontecem nos bastidores dessas estruturas. Como exemplo, um governo que prega a justiça social, mas mantém um sistema desigual, ou uma religião que promove a caridade, mas tolera a exploração dos mais vulneráveis. A ironia cínica não apenas aponta essas contradições, também questiona a legitimidade dessas instituições de poder.

A ironia cínica utiliza-se da crítica para desvelar as incoerências nos discursos e práticas, especialmente no âmbito político, moral ou religioso. No entanto, ela não se limita a destacar essas falácias. Ao contrário, questiona a própria validade dessas estruturas de poder.

segunda-feira, março 31, 2025

CÍNICO E MALANDRO, A IRONIA COMO ESTRATÉGIA DE RESISTÊNCIA CULTURAL

Na infância, fui um curioso e inocente malandro. Talvez, pela sensação de desconforto, como se me considerasse inoportuno. Com o tempo, fui descobrindo um trabalho comum que, de certa forma, me incomodava. Gradualmente, percebi a necessidade de entender o buraco em que me encontrava e, então, comecei a tentar livrar-me dele. Principalmente quando compreendi que muitos dos passos amedrontados que dei eram guiados por um conceito superficial e isolado de sua significação cultural.

Com o passar do tempo e das minhas progressivas ondas críticas — tendencialmente irónicas ou até cínicas — comecei a desvelar algumas das diversas facetas da sociedade, da cultura e das relações de poder. Embora disfarçadas, essas estruturas criam a figura do “malandro” como um boémio indolente e vadio, que sobrevive sem trabalhar, explorando a confiança alheia.

Diversos autores, entretanto, contribuíram para situar e aprofundar o conceito do “malandro”, inserindo-o no contexto cultural. José Saramago, com sua ironia crítica, conduz-nos aos domínios do poder, da moralidade e da condição humana. As suas personagens, frequentemente, personificam os "malandros" que transgridem normas sociais e religiosas, posicionando-se à margem de um sistema que tenta controlá-los. A ironia em sua escrita oferece uma crítica contundente à hipocrisia de certas instituições.

quarta-feira, março 26, 2025

A LIBERDADE DE SER DIFERENTE

Ontem vi e ouvi Patti Smith (RTP2), a “poetisa do rock”, apresentar uma síntese do seu espírito rebelde, da sua sensibilidade artística e do seu pensamento espiritual. O seu estilo admirável é uma mistura de temas como identidade, liberdade e espiritualidade, na sua busca por um sentido que ressoe com a sua própria existência. Pessoalmente, e dando importância ao valor da diferença e da diversidade, rejeito a intolerância das normas sociais rígidas e, por isso, senti uma profunda simpatia e afeição por Patti. A ideia de normalidade torna-se, para mim, imoral quando se transforma em uma forma de opressão cultural. Diria, então, que a verdadeira liberdade está em abraçar a diferença e desafiar as expectativas da sociedade, afastando o conceito de normalidade, que muitas vezes serve para marginalizar uns e privilegiar poucos.

Pode-se perguntar, então, em que aspetos sustento a minha opinião e atitude? Começo por destacar o valor que dou à verdade, rejeitando as conveniências que mudam conforme a situação e, em contraste, defendendo a virtuosa emocionalidade humana. Sinto, com clareza, que a verdadeira liberdade só pode ser alcançada, às vezes, através da desobediência às normas e da rutura com as estruturas cínicas e habituais de poder. Aprecio Patti quando sua filosofia de vida reflete essa busca constante por autenticidade, liberdade e uma compreensão mais profunda da experiência humana. Além disso, vejo a sua arte como uma expressão de vida, uma busca incessante pela verdade, pela beleza e pela transcendência moral, ou seja, não pelo bem ou pelo dever, mas pela superação de si mesma. 

terça-feira, março 25, 2025

JOSÉ RODRIGUES DOS SANTOS, UMA ENCICLOPÉDIA DA VAIDADE

José Rodrigues dos Santos é um desvairado vaidoso e, não poucas vezes, converte-se num alucinado "cretinoide". Ao ouvi-lo jactancioso, o que já é enfadonho, num instante arrisco desembuchar algumas palavras genuínas e sem estrangeirismos. Reconheço, o que não será mau, que ele tem uma cabeça bem atulhada, profundamente mergulhada e diplomada nesses laboriosos mitos das culturas afamadas por engravatados paroquianos de impacto significativo. Admito, pois então, que JRS tenha sido um aluno de 20, que bem soube assimilar o esqueleto protocolar e daqui inalar as enternecedoras aspirações, devaneios e exaltações da dita "ocidentalidade" cultural. Para conhecer este sublime homem não será muito fatigante. Sabemos que os sonhos, os lapsos de linguagem e os sintomas psíquicos a todos nós acontecem. Ele, o ilustre e arrogante JRS, é que talvez não acolha nem consiga admitir. Que chateza…

domingo, março 23, 2025

ARTE DE ERRAR COM ESTILO

A vida é sempre uma estrada, e quem diz que o fracasso é um desaire claramente nunca teve a alegria de seguir um caminho errado. Não desistir, e aí nem todos sabem, é a chave para o acerto, ou, pelo menos, para não sermos considerados preguiçosos. E se, por acaso, tropeçarmos naquilo que chamamos de fiasco, não é um desastre; é só a oportunidade de explorar umas paisagens que os vencedores nem sonham que existem. Afinal, se eu tenho alguma razão, pergunto: quem precisará de destino quando temos tantas rotas possíveis?

REDES SOCIAIS, A POLÍTICA DA IDENTIDADE E A POLARIZAÇÃO NO SÉCULO XXI

O conceito de “Armadilha Identitária”, abordado por Yascha Mounk, como já anteriormente referi, é central na análise da dinâmica política contemporânea, especialmente no que se refere à cultura digital. O autor argumenta que a forma como as redes sociais e plataformas digitais orientam as interações, as expressões e até mesmo a construção de argumentos políticos tem gerado um impacto profundo nas identidades políticas. Em sua visão, a cultura digital se configura como um terreno fértil para a ampliação e radicalização da política identitária, especialmente através de ações e reações que perpetuam as divisões sociais.

Mounk observa que as plataformas digitais oferecem espaços onde os indivíduos são constantemente desafiados a se posicionar com base em identidades determinadas por categorias sociais específicas. Este ambiente, por um lado, proporciona visibilidade a grupos marginalizados e fortalece o poder de vozes que antes estavam à margem do debate público. Por outro lado, essas mesmas plataformas fomentam a multiplicação de bolhas de filtro culturais e ideológicas, onde a comunicação se restringe a círculos de concordância, intensificando o apoio à desagregação social.

sábado, março 22, 2025

VOZES E SILÊNCIOS CRIATIVOS

Há vozes e vozes. As que vêm de fora e as que ressoam com a humanidade dos sentimentos. As vozes internas, ao contrário do que se supõe, nem sempre ajudam. A inquietação naturalmente incita a impertinência da culpabilidade, atraindo consigo medos que rodopiam entre a insegurança e o insucesso. Entre as críticas internas e as expectativas externas, o reconhecimento busca o seu destino numa dispersão confusa da busca pela verdade.

Assim, como podemos aprender a distinguir essas vozes que se despegam? Como decidir, nesse momento, qual o caminho seguir? O que procuramos? Medrar ou mascarar? Não é fácil, pois não é simples diferenciar a divergência entre as vozes que importam e as falas destrutivas que se opõem à liberdade criadora.

A autenticidade, ao deixar de lado o medo do arbítrio e das críticas internas, entrega-se ao processo criativo de forma mais livre, autêntica e verdadeira, sem o peso de contingências externas ou da busca pela perfeição. A criatividade não deve ser vista como algo validado apenas por críticas externas ou internas. Ao contrário, ela deve ser um espaço de exploração, onde a insegurança e o medo são deixados de lado para permitir que a criação se amarre ao seu verdadeiro eu, obedecendo às suas ideias mais autênticas.

Em resumo, diria que uma ideia realmente criativa precisa de aprender a silenciar as vozes internas e externas que a limitam, dando espaço à convicção criativa e à liberdade.


sexta-feira, março 21, 2025

O MARASMO TORNA-SE DOENÇA

A mesmice não é apenas arrastar-se por monotonias repetitivas e assépticas. É, principalmente, esquivar-se da possibilidade de imaginar, inventar e criar. Essa apatia íntima, ao se arrastar, leva-nos a uma aparência sem verdade, a um simulacro de rotinas e de artifícios cegamente acessíveis. O pensamento e a ação, ao depreciar a inovação, circulam pelos rumos tediosos e perversos de um certo trabalho e de uma vida sempre recordada. Falar de rotas criativas exige-nos um outro estado de espírito, capaz de enfrentar esse sombrio marasmo. Ou seja, é preciso ousar pensar e agir de forma diferente e decidida, livre de preceitos já enfraquecidos. Estar atento ao novo, ao circunstancial e ao impensado, acreditando na possível criatividade de renovados horizontes, abertos a diferentes possibilidades do homem criativo, é fundamental. Dar valor e sentido à criatividade implica um porvir florescido nessa essencial mudança de perspectiva e no seu constante questionamento do que já tenha sido dado e em remanso desgastado. Como alguém diria, não raras vezes, a ciência alcança a arte. Não raras vezes, a arte alcança o espiritual. 

quinta-feira, março 20, 2025

O QUE SERÁ ISSO DA “ARMADILHA IDENTITÁRIA”?

Tudo o que envolve o ser humano, de alguma forma, magnetiza-me. Os valores que me acompanham, por sua vez, alimentam esse severo "íman" que me impõe um cuidado exigente na forma como concebo a noção de identidade. Por isso, a minha constante e atenta reflexão crítica acompanha-me na dureza e prudência do seu minucioso caminhar.

Este tema, então, leva-me ao que se tem apelidado de política identitária, especialmente ao reconhecer categorias como raça, género e etnia. Servindo-me da ideia de Yascha Mounk, que argumenta que a política identitária se tem transformado numa força divisível, é lógico concluir que, ao acentuar a cisão, estaremos a comprometer a possibilidade de construir uma sociedade mais inclusiva e plural.

No contexto atual, especialmente num tempo fortemente marcado pelo digital, as identidades específicas proliferam, e a sociedade exibe-se cada vez mais fragmentada. A dinâmica do “nós contra eles” nada protege os laços democráticos. Mounk, de forma acertada, alerta que essa tendência pode arruinar a coesão social e, ao mesmo tempo, enfraquecer valores mais abrangentes, como a justiça, a igualdade e a liberdade.

Em síntese, subscrevo a ideia de Mounk, quando ele questiona, criticando a política identitária moderna e suas consequências, se ela é, de fato, a melhor forma de alcançar uma sociedade mais justa e unida. Pergunto-me: como podemos resgatar a coesão social e as qualidades de um espaço público comum?

segunda-feira, março 17, 2025

A VERDADE EM NÓS, EIS UM BICHO DE SETE CABEÇAS

A verdade fundamental não é em nós, de forma alguma, aquela que docilizamos para convencer os outros. Na realidade, trata-se daquela verdade que, ao se alimentar das nossas fragilidades humanas, se torna uma ideia convenientemente adaptada à nossa visão do mundo — uma ideia de verdade que, quando mal interpretada, acaba por ser uma defesa ridícula de como gostaríamos que as coisas fossem, mas não como realmente são.

Quando nos inclinamos sobre o inconsciente, como se fosse uma cápsula do tempo, vemos que a verdade não é nada objetiva ou imutável. Ela é, no entanto, excessivamente subjetiva e ajustada ao molde pelos nossos emaranhados internos, desejos sufocados e traumas não resolvidos. A tal "verdade fundamental", segundo os entendidos, é aquela que vem das profundezas do inconsciente — um lugar remoto e desconfortável de nós mesmos, que se recusa a ser alcançado facilmente pela nossa consciência, mas que, com grande insistência, orienta nossa visão do mundo e de nós mesmos.

domingo, março 16, 2025

EU SEREI O MELHOR PRESIDENTE QUE DEUS CRIOU

… assim nos brindou Donald Trump.

Donald Trump tem sido um mestre na arte de transformar a política num espetáculo de incerteza e imprevisibilidade. Sua habilidade em desmantelar convenções diplomáticas e políticas estabelecidas é quase artística. Ele vai desafiando as regras à medida que encontra conveniência, guiado por seus instintos populistas e cínicos. A diplomacia, que antes se via como uma troca de favores entre potências, agora é apenas um jogo – um jogo onde as cartas são jogadas ao sabor de seus caprichos e interesses pessoais, criando sustos e uma constante sensação de apreensão.

Nos Estados Unidos, a política interna torna-se um campo de batalha onde a imigração é atacada, as relações comerciais são perturbadas, e até o clima parece estar sendo 'importunado'. Tradicionalmente uma fortaleza de previsibilidade, a política externa americana hoje se transforma num caldeirão de incertezas. Os acordos estabelecidos pela NATO, por exemplo, são desfeitos com uma facilidade espantosa, e as alianças se tornam peças de um tabuleiro que Trump move sem hesitar. A diplomacia se torna algo líquido, sem forma, onde as ‘amizades’ se reconsideram à velocidade da sua conveniência.

terça-feira, março 11, 2025

LIBERTAR A LIBERDADE - É OBRA

A liberdade é sempre encarada como um valor fundamental, mas a sua compreensão profunda e a maneira como a exercitamos no cotidiano são questões confusas. Dada a nossa tendência de agir apressada e desatentamente, amiúde ignoramos a forma como nossas escolhas – que consideramos livres – são amoldadas por condições externas, nem sempre entendidas, que limitam o nosso verdadeiro exercício da liberdade. Assim sendo, não deixa de ser essencial refletir sobre essas limitações e procurar compreender de forma mais crítica o conceito de liberdade no contexto democrático, onde as condições culturais e políticas desempenham um papel crucial.

Hoje em dia, a liberdade está frequentemente reduzida a um conceito que privilegia a escolha individual, recusando o contexto histórico e as intenções ideológicas que permeiam nossas decisões. A busca pela liberdade no campo político invariavelmente se mistura com a escolha entre diferentes opções superficiais, como se essas opções fossem realmente livres. Na nossa sociedade e tempo, os campos políticos tornaram-se cada vez mais corrompidos por oratórias que se valem diretamente pelas emoções, zanga ou aflição, em desfavor de um pensamento político mais pensante, crítico e significativo. A coerência emotiva e imediatista acaba então por substituir um debate mais racional, logo mais exigente, baseado no exame das estruturas de poder que realmente conformam as nossas vidas.

domingo, março 09, 2025

O MEU ATREVIDO RETRATO DE SLAVOJ ZIZEK

Zizek é um filósofo singular, cujas ideias ousadas, que mesclam psicanálise e filosofia, frequentemente provocam perplexidade e desafiam convenções. Ele não se limita a um campo específico, mas arquiteta um pensamento multifacetado, norteado por uma inquietação insistente com a cultura presente. A sua dialética, exposta na obra “Sexo e o Absoluto Falhado”, é um recurso poderoso que evidencia contradições no interior da própria cultura, afrontando as normas estabelecidas.

Zizek assim propõe que, em vez de buscar a harmonia ou a conciliação, devemos reconhecer as contradições do tempo. A sua dialética, exposta na obra Sexo e o Absoluto Falhado, desmistifica a busca pela perfeição, propondo que a falha é, na verdade, um motor essencial para a transformação social e cultural.

A psicanálise freudiana, por sua vez, desempenha um papel central no pensamento de Zizek. Ele aplica conceitos psicanalíticos para explicar o comportamento coletivo e os processos culturais. A noção de "inconsciente social" é uma das suas ferramentas mais provocadoras. Zizek sugere que a cultura em si mesma é um reflexo das nossas tensões inconscientes, das pulsões reprimidas e dos desejos não realizados, moldando assim as nossas escolhas e comportamentos.

quinta-feira, março 06, 2025

A FILOSOFIA COMO CAMINHO PARA UMA DIGNIDADE DA CULTURA POLÍTICA

Neste tempo em que a perturbação emocional é muitas vezes aproveitada para alimentar raciocínios desalinhados e complexos, torna-se essencial recolocar a emoção no seu campo certo, como uma força de transformação e entendimento. A motivação central do autor, aqui, é justamente inquietar o modo de vida de cada indivíduo, incentivando uma nova afinidade com o que há de mais profundo e genuíno na nossa humanidade. Somos seres de alma e coração, e é por meio do desejo — aquele impulso que nos lança na busca incessante por conhecimento, pela invenção e pela descoberta — que nos relaciona com o mundo. A Filosofia, entendida não apenas como um estudo teórico, mas como um modo de vida, convida-nos a refletir sobre como nossas emoções e pensamentos moldam nossa realidade e nossas escolhas.

O afeto, em sua forma mais pura, tem o poder de nos aproximar do outro, das coisas e de novas ideias. Do silêncio, muitas vezes, surgem novas visões, e é nas relações e na empatia que as convicções e projetos comuns tomam forma. A filosofia como prática não é uma reflexão distante, mas um movimento constante que altera nossa forma de viver e agir no mundo. Se, por um lado, ela nos ensina a refletir sobre nossas emoções, por outro, faz-nos perceber como as nossas ações são a verdadeira expressão de nossa filosofia pessoal. O comportamento humano, muitas vezes negligenciado ou obscurecido pelos interesses externos, é o espelho de nossas crenças mais profundas.

quarta-feira, março 05, 2025

A IMBECIL VAIDADE

A vaidade, com seu perfume de má qualidade, torna-se um dos modelos mais caricatos da boçalidade humana. Não no sentido de uma ausência total de inteligência, mas na inabilidade de percebermos além da superfície petulante do retrato fugidio com que o nosso espelho nos endromina. Somos vulneráveis criaturas de vaidade, amamentadas pelo rastreio infindável da incessante validação, como se o valor procurado fosse atestado pelos olhos alheios, por essa cínica simpatia de uma convivência incerta e efémera.

A vaidade é, porventura, o molde mais leve de tolice que o ser humano não só cultiva, mas também nela resvala. Ela, essa vaidade, sugere-nos que o que somos pode ser veiculado através de indícios de relevância, em corpos cinzelados ou em aparências bem retocadas. Somos vaidosos, talvez até ridículos, acreditando que, ao procurar sermos nós mesmos, somos, na verdade, eternos mascarados, descurando a verdade de que nada do que é superficial perdura. A vaidade é um delírio que nos vicia e afasta da essência do ser, fazendo-nos crer que a exterioridade é, afinal, e de mau fado, tudo o que somos.

REGRESSAR À INTRIGA DO ABSURDO

O absurdo é uma força que nos arrasta para o imediato, onde os sentimentos momentâneos tomam o lugar da razão, e o despropósito substitui o sentido. Num mundo onde o ilógico se disfarça de esclarecimento, perdemos a capacidade de questionar e refletir. O que parece importante agora rapidamente se torna irrelevante, enquanto o essencial é esquecido. O valor dos caminhos percorridos se esvai, e o que era útil, um dia, torna-se obsoleto e sem futuro.

O absurdo corrói a nossa humanidade, ao fazer-nos olhar apenas para o que está ao alcance do imediato. A escala humana perde o todo e concentra-se na ação individual, como se o universo começasse e terminasse no nosso “umbigo”. Criamos uma conveniente teia de justificações que se sustentam na sobrevivência e no efémero, na busca incessante pelo agora, enquanto a verdadeira profundidade da experiência humana se dissolve.

Viver no absurdo é viver como se estivéssemos sempre à margem de nós mesmos, presos num ciclo de inquietação, onde, apesar de tudo, mantemos nossa integridade apenas pela aparência, e não pela sua humana e viva essência. 

terça-feira, março 04, 2025

O ABSURDO EM CENA

A vida humana é, e sempre foi, um palco onde o desatino se apresenta, ora como razão, ora como irracionalidade. Em busca de equilíbrios, a razão tenta alinhar-se com a realidade, mas, simultaneamente, a vida não abandona o vício, a insensatez e o insuportável sofrimento. Este conflito entre razão e instinto resulta numa inquietação constante que, em vez de oferecer a clareza, nos mergulha na incerteza e no desconforto.

A irracionalidade, presente no nosso comportamento, torna-se uma exaltação do que não conseguimos compreender. Desvincula-se da lógica e nos arrasta para uma experiência de vida que parece ausentar-se de qualquer entendimento racional. Em muitas ocasiões, a razão, enquanto faculdade intelectual e qualidade mental, perde-se nas pluralidades da existência humana. Na essência da nossa consciência, a lucidez parece perder-se, como se o que somos fosse algo além da compreensão racional.

domingo, março 02, 2025

RACISMO INSTITUCIONALIZADO E SUAS ESTRUTURAS DE OPRESSÃO

O racismo institucionalizado é um conceito que descreve as formas sistemáticas de discriminação que estão integradas nas instituições e estruturas sociais de uma sociedade. Esse tipo de racismo vai além de atitudes individuais; ele é embutido nas políticas, práticas e normas que regulam o funcionamento das instituições, resultando em desvantagens para determinados grupos, particularmente para pessoas não brancas. A supremacia branca, como uma ideologia central, é sustentada por uma visão do mundo em que os padrões culturais, estéticos e comportamentais associados aos brancos são considerados a norma. A partir disso, tudo o que é diferente dessa norma é classificado como inferior, criando um ciclo de exclusão e marginalização que se perpetua através de gerações.

Essa estrutura de opressão não se limita a indivíduos ou grupos, mas infiltra-se em todos os níveis de poder, desde as políticas educacionais e de saúde até o sistema judicial. A forma como a sociedade se organiza e distribui recursos reflete as desigualdades impostas por esse racismo, tornando difícil para as vítimas de discriminação institucionalizada romperem com o ciclo de desigualdade.

O PODER SISTÉMICO E O FUTURO DAS DEMOCRACIAS

Nos dias atuais, os sistemas de poder que afetam a totalidade de uma sociedade têm se tornado cada vez mais difíceis de alcançar democraticamente. Estes poderes sistémicos, muitas vezes invisíveis à perceção da maioria, escapam ao controle das instituições políticas e sociais, colocando em risco a eficácia da democracia. A grande questão que se impõe é que a verdadeira riqueza não está apenas na clareza intelectual ou na educação, mas nas dinâmicas de poder que a riqueza propicia.

As fortunas, por si mesmas, não conferem poder. No entanto, é o poder que a fortuna proporciona que torna essas fortunas um elemento central no jogo político e social. O dinheiro, nesse sentido, não é apenas um recurso econômico, mas um veículo de influência que fragiliza os Estados. Em vez de se submeterem aos limites impostos pela soberania nacional e pelos princípios democráticos, essas grandes fortunas criam suas próprias regras, muitas vezes se opondo abertamente aos Estados e suas políticas públicas.

SOBRE A "GUERRA E PAZ"

De Manuel Loff, em https://www.odiario.info/guerra-e-paz/

Eis uma crítica contundente, mas interessante, ao discurso belicista e ao crescente apelo ao armamento. A crítica central de Manuel Loff reside na forma como a guerra e o armamento são apresentados como inevitáveis, e como a segurança é frequentemente usada como justificação para políticas autoritárias e repressivas.

Manuel Loff alega que a "securitização", enquanto processo de tratar questões políticas, sociais e econômicas como questões de segurança, é, na verdade, uma estratégia para reforçar regimes autoritários. O insistente discurso militarista, que se alimenta do medo de inimigos externos e internos, propaga uma visão de mundo que justifica a violação de direitos individuais e sociais em nome da segurança, levando a um enfraquecimento da democracia e da justiça social. A crítica vai além da simples corrida armamentista, apontando que essas políticas reforçam uma cultura de vigilância, disciplina e obediência, sem espaço para contestação.

sábado, março 01, 2025

A LIBERDADE, ENTRE O COMUM E O DESCONHECIDO

A liberdade tem o seu tempo, um tempo forçosamente histórico. Depende não de uma transcendência, de um “em si”, mas certamente de uma subjetividade que é sempre consequência de uma cultura, de um tempo. De um bem e de um mal, ou de outras convicções que igualmente conformam a comunidade de sentimentos e as suas faculdades de discernir. O bem torna-se assim o comum dos homens, um comum que se converte em norma, em esquemas que, de forma coerente, vinculam múltiplas e contíguas retóricas. O sentido ético faz-me, neste contexto, companhia, mas não me esclarece as saídas, nem, em tempo algum, me aconselha. A vida torna-se, quem sabe, uma arte de viver, fazendo do homem livre um aguerrido que não esmorece. Parafraseando livremente Deleuze, enfatizo a ideia de que nunca nada é realmente conhecido; muito do que é reconhecido é arrasado, tudo isso em favor de um engenho do desconhecido. 

segunda-feira, fevereiro 17, 2025

TECNOLOGIA, SUBJETIVIDADE E OS DESAFIOS ÉTICOS NA ERA DA INOVAÇÃO

Quando reflito sobre as mudanças que a invenção e a mecanização trazem, não apenas para o campo técnico, mas também para a própria subjetividade humana, sinto-me um pouco perdido entre esse avanço e as transformações nas mentalidades e formas de viver. A invenção não se limita apenas ao progresso do saber técnico; ela provoca também mudanças nos desejos e objetivos das pessoas. Daí a grande dificuldade, apesar das inspirações significativas que surgem. As repercussões dessas transformações abrem novos horizontes e modos diferentes de organização social. A padronização tecnológica, que organiza a sociedade moderna, não se resume apenas à sua evolução, mas representa uma mudança desafiadora e provocante nos modos de ser e de pensar.

A transformação tecnológica não se limita a uma soma de inovações, mas traz também novas formas de organizar a vida, que, por sua vez, impactam as múltiplas subjetividades humanas. Ou seja, afeta as diversas realidades que se inter-relacionam no trabalho, no tempo e até mesmo no âmbito das emoções e perceções do mundo. Surge, então, uma questão fundamental: a relação entre a subjetividade humana e os valores éticos em tempos de inovações tecnológicas poderosas. A subjetividade é moldada por uma combinação de fatores culturais, históricos e sociais, e impulsionada pela experiência individual de cada pessoa. As inovações, especialmente as tecnológicas, têm um impacto direto e imediato sobre essa ordem subjetiva, alterando a forma como nos vemos, nos relacionamos e percebemos o mundo ao nosso redor.

domingo, fevereiro 09, 2025

ESCUTAS E RUÍDOS NA DURA C0NVERSA HUMANA

A cultura contemporânea tende a valorizar excessivamente o prazer imediato, dando destaque ao êxtase momentâneo. Esse prazer, muitas vezes, é vivido de maneira fugaz e sem uma reflexão mais profunda, sendo consumido de forma passiva e acompanhando as circunstâncias distraídas que nos cercam. Nesse cenário, a emoção predominante é uma animação impetuosa, que cria uma fantasia de agitação superficial. A ideia de desordem, vivacidade e tumulto acaba obscurecendo questões fundamentais, como a saúde, o bem-estar coletivo e as dificuldades cotidianas. O foco no prazer efêmero desvia a atenção do compromisso mútuo e das relações profundas, favorecendo respostas desumanas que se espalham pela sociedade atual, marcada pela incerteza.

Diante disso, é urgente prestarmos mais atenção aos sons dispersos e aos ruídos que permeiam nosso pensamento. A escuta atenta de ideias, neste contexto, se aproxima da escuta psicanalítica. Devemos, assim, cuidar de nós mesmos, igualmente.


domingo, janeiro 19, 2025

O TRAMPISMO POR LÁ SE INSPIROU

… numa "sutil" divagação pelos recantos de Martim Moniz e arredores.

Nos últimos dias, quando a gripe se instalou e a minha paciência, já por si entorpecida, decidiu tirar umas férias, resolvi enfrentar os percalços com uma calma de dar inveja. No meio desse delicioso torpor, decidi espiar, ler e tentar decifrar a comédia política que se desenrola por aí. E, claro, como sempre, não me decepcionei. É fascinante observar como, entre o vaivém das palavras, das alegorias e das representações políticas, se cultiva essa farsa imensa e, claro, lucrativa.

Logo de cara, percebe-se, sem muito esforço, as diferenças gritantes no modo como se tenta acicatar e inflamar, sem rodeios, as almas sensíveis que por aí andam. Para que, então, se faz necessário elaborar e orquestrar essas encenações tão cuidadosamente arquitetadas, que seduzem com promessas de causas justas e revolucionárias, tudo isso regado a doses cavalares de indignação e ressentimento? Um espetáculo e tanto. E, ah, que pressa! O tempo não pode ser desperdiçado com raciocínios mais demorados e que desafiem a lógica. O que se quer, na verdade, é agir rápido, sem grandes questionamentos, porque a obra em questão não tem paciência para sutilezas. O que conta é o fervor político, esse que não se arrisca a abandonar o seu jargão de pânico, que materializa, em toda a sua glória, a irracionalidade da crença que o sustenta. 

Como não sou dessas, nem me vou deixar levar por esse embalo, deixo aqui a minha crítica despretensiosa — e, quem sabe, até um pouco irónica. E, sim, assombra-me a capacidade de quem se atreve a construir uma lógica do absurdo e a seguir, com dedicação e fervor, os arrazoados ideológicos que, se não fossem tão trágicos, poderiam ser um bom tema para uma peça de teatro do grotesco.