A ideia de humanidade não se revela no ruído excessivo das
identidades, onde o diálogo se cala e a cultura se dispersa no caos.
gritoeargumento
sábado, julho 19, 2025
NOTAS SOBRE O CAOS
quinta-feira, julho 17, 2025
DESANIMADO COM A RAZÃO, ENSAIO A IDEIA
O pensamento, quando forçado pela violência do vazio, inclina-se à entrega ao desânimo, ou ao devaneio de uma construção que o defenda. Neste entremeio, a passagem do estado bruto da inquietação à formulação de um trio de perguntas, “Qual é a medida de um homem? Que objetivos pode propor-se? Que esperanças lhe são permitidas?”, exprime com precisão essa especulação da consciência: dar uma geometria ao caos ou fantasiar a partir do destroço. Não se trata apenas de racionalizar o mal-estar, mas de reinscrever a existência num campo de possibilidades. A filosofia, enquanto ânimo de aclaração e de rumo, surge aqui como causa primordial, ou seja, como um enérgico gesto de resistência, quiçá, contra coisa nenhuma.
quarta-feira, julho 16, 2025
PENSAR SEM “EU”
Meditar não é apenas sossegar a razão, é, sobretudo,
desativar o ego. Esse ego impaciente que se supõe o âmago da realidade.
Absoluto, necessitado de reconhecimento, arreigado ao medo da perda e à sua
ânsia de ter. Se a ignorância é, como tantas tradições espirituais e
filosóficas sustentam, uma raiz do sofrimento humano, então a meditação
torna-se um caminho de reflexão que busca clarificar essa ignorância, não com a
crédula facilidade da informação, mas sim com o brilho trabalhoso da lucidez.
O ego sempre se nutriu de ilusão, acreditando na imediata
separação entre o "eu" e o "outro", entre o
"interior" e o "exterior", entre o "meu" e o
"teu". Nesse jogo de dualidades, o medo emerge como um aliado fiel - daí
o receio de perder, o pânico de sofrer, o fantasma de não ser suficiente. A
ignorância, neste painel, não é apenas ausência de saber, mas um modelo de
cegueira atuante, recusando-se a ver que o “eu” é uma obra, uma imaginária
criação útil, mas finita e frequentemente repressiva.
É através desta condição que a adesão ao material se torna
prenúncio - algo que não se compreende no absoluto, mas que traz vantagens com
os haveres, com os quais se tenta controlar a segurança. O mundo assim se vai
tornando uma dimensão do ego, um espelho que se obriga a confirmar a sua
relevância, a sua diferença e o seu poder.
terça-feira, julho 15, 2025
CONTRA O PASPALHO DO WOKE
Acabei de ler o texto de Patrícia Fernandes no livro “WOKE FIZEMOS?”. Suportei um fruto teórico e representativo de um sufocante conservadorismo intelectivo. Confrontei-me com um "wokismo" disforme, reduzido à arte e ao cuidado das universidades norte-americanas que, ignorando as complexidades efetivas dos conflitos sociais, se tornou um artificioso embuste. Em vez de se dirigir a relacionar as ideias de forma lógica, coerente e crítica das evoluções culturais, optou por satirizá-las como quem questiona uma tempestade sem agitação temporal. Confunde-se disputa com doutrinação, crítica com ameaça, mudança com declínio. A universidade é tratada como foco de perversão intelectual, quando na verdade é, ou deve ser, um palco de disputas legítimas pelo sentido humano e do comum. Este tipo de texto, incomodado com a dialética dos tempos, não pensa o presente; logo, resta a renegação. Assim, não examina, espelha em caricatura. É um abrigo através do statu quo mascarado de fulgor crítico, onde tudo o que não cabe na matriz tradicional é mostrado como desvario. Mas o mundo renova-se, e o pensamento se quer mostrar-se vivo não pode ficar pela lamúria retrógrada. Muito menos pela caturrice reacionária.
domingo, julho 13, 2025
A IGNORÂNCIA, UMA CAVERNA DOS NOSSOS DIAS
A ignorância já não é falha, tornou-se uma cultura da
habilidade política dos tempos de hoje. Não saber, ou fingir não saber, serve a
quem detém ou procura poder. Como nos alerta Manuel Sans Segarra, a ignorância
é um produto de construções que, sem ruído, nos alienam da razão comum.
Entender o manejo económico, o vocabulário jurídico ou o
teatro do juízo político é hoje um requinte e uma intimação. Por isso, o que
não se explica não é erro, mas, quiçá, um método. E quem habita, perturbado, o
tempo de hoje não se queixa, pois, dos danos, não enxerga as causas. Assim,
tudo persiste misterioso, embora de modo apropriado e indolente.
A cultura política não rompe do acaso; requer plantio,
pensamento e diversidade. Mas o que nos sobra é unicamente ruído. A escola
destaca competições, a comunicação estonteia e o debate engraça-se num teatro
de agitáveis opiniões. A ignorância encena-se, silenciando o saber que
interessa.
Assim sendo, a ignorância facilmente se acomoda, debilitando a democracia ao convertê-la num ritual sem alma - cenário, aliás, ideal para quem não quer ser julgado. Pensar é resistir, saber mais para impedir o projeto da indiferença que nos quer apáticos e inativos. Combater a ignorância torna-se um gesto político essencial e, hoje em especial, talvez o mais urgente e profícuo valor da Liberdade.
sexta-feira, julho 11, 2025
CURA OU CURIOSIDADE
Navegar entre a cura terapêutica e o ato de dizer mal, o humano apressado já optou, e mostra-se radioso, arraigando que não quer olhar a verdade no espelho, pois adora distrair-se com a vida, de outrem se possível. Tales de Mileto procurou alertar a peripécia, mas não deve ter tido tempo e circunstância, porque a arraia-miúda, sempre ocupada com as habilidades do vizinho, não tinham tempo livre de se verem ao espelho. A intriga, e o ato de mexericar, sendo piedoso, não só cansa muito como absorve muitas horas. Não é só fácil, também cansa…
domingo, julho 06, 2025
DO LADO DE DENTRO DA LIBERDADE
Vivemos tempos receosos. Tempos em que a liberdade se tornou tema de conversas domesticadas, domesticadas por um moralismo institucional que a reduz a uma simples retórica funcional. Os grandes poderes, cansados, repetitivos, e enfadados de si próprios, continuam a resistir, em nome do bem, do dever, da ordem. Mas esquecem-se da liberdade.
Não falo daquela liberdade que apregoam. Falo da outra, da
que ocultam. Daquela que mantêm acantonada, silenciada, sob a forma de uma
moral cuidadosamente calibrada. Uma moral que se veste de virtude, mas que não liberta.
Sejamos claros: o problema não está na moral. Está no uso
que dela se faz, como expediente, como instrumento. Quando o dever é imposto,
quando o juízo é substituído pela obediência, quando o certo e o errado são
ditados por quem detém o poder, não estamos perante uma exigência ética, mas
diante de uma sujeição disfarçada.
A moral dominante não emancipa: disciplina. E uma liberdade
obediente, por mais bem-intencionada que pareça, é uma liberdade que se trai a
si mesma. A liberdade verdadeira, a que resiste, a que nos transforma, não é
aquela que o poder nos concede. É a que conquistamos ao reagir à sua sujeição. Uma
liberdade exigente, enraizada na nossa história e, sobretudo, na nossa
responsabilidade.
sábado, julho 05, 2025
O RETROVISOR DO MORALISMO
Há escritos que expelem, pela palavra, as ideias com que se
enjoam. Cavam, com a sachola do passado, os escombros de um passado poetizado,
fabulizando que ali se encontra a verdade, a ordem e o lugar modelar. O
capítulo 5 do livro em questão (Workismo e sexualidade: identidade,
polaridade e conjugalidade) é precisamente um desses burlescos escritos.
Não se trata de um tino reflexivo, mas sim de uma exercitação clericalista,
simulada de uma humana reanálise cultural. E o que mais assombra não é tanto o
sentimento melancólico do preceito, mas o seu propósito de se transformar, de
novo, em obrigação.
Sob a aparência de uma cantiga sobre identidade e
conjugalidade, o que se exibe é um claro conservadorismo que busca reacomodar,
como se fossem eternas, hierarquias de género que a dignidade humana já não
consente. Confere-se ao homem e à mulher atribuições invariáveis, naturais e
estruturais, como se a história, a luta feminista, a investigação científica e
o pensamento crítico não tivessem existido. É um texto que inspira piedade ao
recusar reconhecer que as atribuições de género não são intimidações da natureza,
mas construções históricas, sociais, económicas e simbólicas.
O conceito de "polaridade sexual", fundamental no
texto, ressoa, talvez, à ciência do século XIX, seduzida pelas vozes eloquentes
das pregações do moralismo conservador. A diferença entre o homem e a mulher é
metamorfoseada num contraste utilitário: o homem gere, a mulher recolhe; o
homem abriga, a mulher toma conta; o homem determina, a mulher advinha. Esta
dualidade reducionista não só empobrece a prova humana, como ratifica
desigualdades e abusos estruturais. Não há liberdade possível quando os corpos
nascem com uma sequência descrita.
terça-feira, julho 01, 2025
ENTRE SILÊNCIOS
O silêncio também fala. Transmite no olhar que pousa, no sorriso que acontece, na presença que basta. Como o recém-nascido que ama antes de o saber dizer, nós também tocamos a alma de um outro quando escutamos com o coração. Partilhar o dia, o tempo, o ser, é fazer da vida um encontro. E, no fundo, estimar é isso, revelar-se mesmo quando tudo se silencia.
sábado, junho 28, 2025
O LOBO CAPITALISTA MANIPULA A DIALÉTICA DA INCLUSÃO
Vivemos uma época deploravelmente original, ou seja, quanto mais as empresas falam de igualdade, diversidade e causas sociais, mais crescem os seus proveitos e reconcentram a sua figura no utópico fim do comum. Não, não nos deixemos embalar por cartazes coloridos e suas obscenas campanhas que, sem desonra, exaltam a presunção, a inclusão ou o reforço do poder. A doutrina, porém, preserva-se fria e imperturbável, como sempre tem animado o capitalismo, tudo metamorfoseado em produto, sem esquecer, vejam bem, as nossas sublimidades mais íntimas.
É essa a provocação feita por estudiosos que ousam estudar e
falar, quiçá no deserto, deste atual “capitalismo woke”. Todavia, longe de ser
um erro de percurso ou uma moda estranha, o fenómeno não é mais do que a
evolução consonante do próprio capitalismo, depois de décadas de adaptação aos
ventos culturais e políticos do tempo desbravado. Contudo, o que mudou não foi
o plano, mas sim as roupas que ele traja.
Durante o século XX, o trabalhador deixou de ser apenas um
mero corpo que produz, para se tornar também um sujeito que sente, se
identifica, protesta e se impõe como condição. Presenciámos, então, a empresa
incluir-se numa sociedade que não vende apenas produtos, mas que também
inscreve valores, ética e antevisões. Logo, nesse decurso, o próprio
capitalismo teve de reconfigurar-se: já não bastava explorar, tornou-se
necessário aliciar, logo, seduzir. Assim sendo, já não basta apenas vender, é
preciso impressionar e emocionar. É aí que o arrazoado woke entra em cena, não
como resistência, mas como utensílio da sua arte dramática.
domingo, junho 22, 2025
A ARQUITETURA EMOCIONAL DA DOMINAÇÃO CULTURAL
Este texto, que sinteticamente apresento, inscreve-se numa orientação teórica que rasga com a separação tradicional entre a razão, a emoção e a ética numa breve exposição, reanimando a ideia de que não há maneira de falar sem afeto, nem afeto sem fala. Longe de ser um mero utensílio de comunicação racional de ideias, o fraseado é apresentado como uma prática social e histórica que abraça sentidos, sujeitos e afetos e, portanto, logo intervém, e de modo enérgico, na concertação das subjetividades e das paixões sociais.
Neste tempo de irrefutável dominação capitalista, este modo
de encarar torna-se particularmente relevante, dado que revela que os afetos
são convocados, encaminhados e até mesmo provocados de modo dedutivo, em
concertação com interesses dominantes. A linguagem não apenas conduz ideologias,
forjando concordâncias emocionais, ajustando sensibilidades e fantasiando
imaginários afetivos que sustentam, ou não, a conveniência social vigente. Isso
representa que os discursos dominantes não apenas convencem, mas afetam através
de densos vínculos que adotam a mercantilização da vida, o consumo como forma
de identidade e a obediência tola à ideia arrogante de produtividade.
A SEMENTE E O GRITO
Ninguém vem ao mundo com direitos bordados na pele. Eles não
caem do céu, nem brilham ao acaso. São colhidos com dor, lavrados na terra da
memória por mãos cansadas de lutar. Cada direito é a semente de uma perda que
não se calou, uma lágrima que se ergueu em palavra. Os deveres sustentam o
mundo como raízes, mas há direitos ainda por desabrochar, esperando o batismo
de um nome certo e justo.
quarta-feira, junho 18, 2025
A SUBJETIVIDADE EM CONFUSA INQUIETAÇÃO (2)
Continuando o tema do texto anterior, importa reafirmar que vivemos sob o domínio de uma lógica capitalista que, mais do que à sua articulação com a economia e modos de produção, adentra no mais íntimo do sujeito e da sua subjetividade. A ideologia, para além das ideias políticas ou arrazoados de poder explícito, age enquanto habilidade silenciosa no que à colonização interior do humano diz respeito. Libertando o encorpado das ideias e relações económicas e sociais, a presença capitalista mostra-se como neutra, inevitável e natural, embutindo no campo cultural um sedimento de identificações cujo valor central situa-se no fetiche da mercadoria.
Nesse processo, os elementos culturais oferecidos como
referenciais identificatórios já não têm por base laços comunitários, éticos ou
históricos, mas sim a promessa de uma certa figura social nos objetos de
consumo. A obra subjetiva passa, então, a realizar-se em torno de ausências
encobertas por presenças ilusórias, dissonância essa que provoca trapaceira
tristeza. Um alienado sofrimento sutil, embora persistente, que decorre de uma
discordância entre o que se deseja e o que é apresentado como desejável. Trata-se
de uma inquietação contínua que não encontra descanso, porque a compra nunca
satisfaz plenamente o desejo que ela mesma produz.
Esse mal-estar estimula o sujeito na busca por suavização
imediata, ainda que passageira. E é precisamente essa urgência que as doutrinas
capitalistas estudam, exibindo saídas imediatas para angústias que, na verdade,
são estruturais. O ruído ideológico, nesse sentido, atua como uma invocação
sedutora: consome-se para pertencer, consome-se para ser, consome-se para não
sentir a dor do vazio. A adesão ao consumo, portanto, não é um ato puramente
racional, mas uma resposta emocional, quase compulsiva, ao sofrimento psíquico
que a própria lógica capitalista ocasiona.
terça-feira, junho 17, 2025
A SUBJETIVIDADE EM CONFUSA INQUIETAÇÃO
A subjetividade humana, longe de ser um núcleo soberano e autêntico, encontra-se cada vez mais colonizada por formas de poder simbólico que operam através da ideologia. No contexto da sociedade capitalista, tal colonização revela-se não apenas como um fenômeno exterior, imposto de fora para dentro, mas como uma internalização silenciosa, persistente e estrutural, que molda o sujeito desde o interior de seus próprios afetos, desejos e formas de pensar.
A ideologia, aqui, não pode mais ser compreendida como uma
mera falsificação da realidade, como nas abordagens clássicas da crítica
marxista. É preciso pensá-la como uma engrenagem que articula saber, desejo e
gozo. Nesse sentido, a intersecção entre o materialismo histórico e a lógica do
inconsciente torna-se não apenas fecunda, mas necessária. O sujeito do
inconsciente, tal como formulado pela psicanálise "Freud lacaniana", já não se
reduz a um agente racional que se alinha ou se opõe às estruturas materiais. Ele
é atravessado por fantasmas, pulsões e identificações imaginárias que estão,
elas próprias, contaminadas pela lógica da produção capitalista.
A racionalidade aqui invocada não é cartesiana. É a
racionalidade do inconsciente, isto é, uma lógica que, embora não obedeça aos
princípios da razão instrumental, possui uma estrutura, uma repetição, uma
causalidade própria. Assim como a ideologia opera, não apenas no campo da
consciência, mas sobretudo no da inconsciência, a produção subjetiva está
enredada em imagens e narrativas que sustentam o capital como forma de vida.
Como já denunciava Guy Debord, o espetáculo não é apenas o mundo visível, mas a
própria forma como o mundo se torna visível.
O CONFORTO DA APATIA
No seu texto “GIRO DO HORIZONTE – ISRAEL”, Pedro de Pezarat Correia, em “A Viagem dos Argonautas”, assim começa; “Israel é uma fortaleza militar, pilar do poderio dos Estados Unidos da América (EUA) numa das áreas geoestratégicas mais sensíveis da Terra, a bacia do Mediterrâneo euro-afro-asiático”, e assim termina; “Nós, europeus, todos, temos pesos nas consciências pelas perseguições a que, durante séculos, condenámos os judeus. Que atingiu as raias do inimaginável na Alemanha nazi e nos países por ela ocupados. Agora estamos a procurar sanar as nossas culpas e aliviar as nossas consciências, solidarizando-nos com os judeus à custa dos palestinianos. Só que não foram os palestinianos os agentes das perseguições seculares aos judeus. FOMOS NÓS". Acrescentaria eu, que num gesto irrefletido de contrição, imaginamos mitigar os nossos pecados prosseguindo indiferentes ao sofrimento de quem, hoje, paga a fatura do nosso esquecimento histórico, pois a nossa solidariedade é um conforto “por baixo preço”, sempre que não exige verdadeiramente nada mudar.
domingo, junho 15, 2025
TRAPOS DE VERDADE
O extremismo de direita do nosso tempo manobra através de um palavreado engenhosamente envenenado, socorrendo-se de vocábulos historicamente articulados à democracia, à liberdade e à justiça, despejando-os dos seus interiores originais, de modo a esculpi-los num horizonte de ideias e princípios autocráticos. O que observamos, neste campo palrador, é o uso e abuso acasmurrado de eloquentes alienados que, deslocados da sua genuína semântica, perdem a ancoração histórica e experiencial que os tornava significantes, colocando-os a ondular ao sabor das agitações populistas e dos seus comoventes alvoroços.
Essa transação não é meramente verbosa, pois constitui o
íntimo de uma ideologia, no sentido de travar uma luta pela fixação dos
significados no campo simbólico. Assim, imagens como liberdade, povo, soberania
ou verdade deixam de ser meios de libertação que a todos procuram servir,
tornando-se ideias de animosidade, discriminação e desconfiança desmedida.
Logo, em nome da liberdade, recusam-se os direitos humanos; em nome do povo,
sustenta-se o ódio às minorias; em nome da verdade, dispersa-se a falsidade.
sábado, junho 14, 2025
O FANTASMA QUE RESPIRA POR NÓS
Se o dinheiro é a alma do nosso tempo, então vivemos sob o império de um fantasma que consome tudo e não sente mais nada. Logo, não estranho o tamanho sufoco, pois o ar que respiro foi penhorado. A cultura vulgarizada, afinal, apenas adora cifrões e renuncia, sem piedade, a quaisquer rumos mais humanos. O capital, o seu bicho, é aquele seu deus que alinha doutrinas e sustenta o delírio provindo da fingida e patológica crença. Eu, o anormal blasfemo, sofro merecidamente de castigo com os pulmões entulhados de náusea. O capital, por sua vez, de alma febril, vai dançando sobre as ruínas do humano.
Talvez por isso o ar se revele repetidamente denso, imundo de ambição e
desespero. O capital é isso, um sopro vital do presente deste mundo que respira morte em atuações
suaves. Todavia, a minha náusea vai escapando apenas como sintoma de relutante
lucidez. A civilização que ergue a sua alma em números não consegue afundar o meu
coração nos escombros. Vou, todavia, embora impaciente, respirando o pó da
empatia desaparecida.
quarta-feira, junho 11, 2025
PENSAR AINDA É PRECISO
“A NECESSIDADE DE PENSAR O IMPENSÁVEL”, texto de Boaventura de Sousa Santos (BSS), chama-nos a atenção para a presente cultura da mediocridade, não apenas como consequência do modelo capitalista contemporâneo, mas, sobretudo, como um dos seus alicerces mais eficientes. BSS mostra de forma convincente que, no sistema educacional, o pensamento crítico tem sido progressivamente substituído por conteúdos utilitários e facilmente assimiláveis, em geral digeridos nas redes sociais sob o disfarce imbecil de informação.
A escola e a universidade parecem deixar de ser espaços de
questionamento para se tornarem fábricas obstinadas de obediência. Os
estudantes deixam de ser incentivados a duvidar, passando a repetir, deixam de
pensar para simplesmente seguir orientações reguladas. Essa lógica, marcada
pela fetichização da objetividade e pelo culto da eficiência, transforma o
saber em mercadoria e o aluno num cliente passivo.
Em vez de formar cidadãos críticos, forma-se mão de obra
submissa e desprovida de consciência política. Como afirmaria Paulo Freire,
educar é um ato político: ou se forma para a liberdade ou para a sujeição. Nos
tempos que correm, promovidos pelo capitalismo globalizado, tudo indica que nos
deixamos, parvamente, distrair pela segunda via. A educação não pode cair na
pobreza, cingindo-se ao espelho do capitalismo.
terça-feira, junho 10, 2025
UM IMPULSO DIALÉTICO DO MEU “FILOSOFAR”
Sinto-me afetado por uma perceção severamente pessimista de uma razão que acompanha este evoluir civilizacional. Pressinto, pois, que uma vontade cega domina o mundo farolizado por uma racionalidade sem humanidade. Tudo me aparece como um hábil subterfúgio sem doutrina e disciplina filosófica.
Referenciar, para mim, não implica endossar sancionando
toda uma filosofia. Opera, pois, de constituintes que tornam possível aclarar
as aporias do ruído moderno, sobretudo aqueles que legitimam e transfiguram em
sujeição. O gesto crítico não procura figuras de opressão ou humilhação, mas sim
o valor instrumental que alimenta e incentiva a cultura de massas.
A teoria crítica não pode exaurir-se no silêncio do dogma
nem se acomodar em seus próprios pressupostos. O campo crítico exige disponibilidade
autocrítica, no sentido de atualizar continuamente a própria teoria que o anima.
Não há retornos nostálgicos, mas futuros vivos que, em sínteses dialéticas
permanentes, mantêm a razão em estado de “recomposição”.
A cultura política não deve ser entendida apenas como filiação, mas sim como inscrição transitória num campo de tensões. Ou seja, uma atitude crítica viva que se incentiva de contrastes e contradições tendo como presente o progresso da humanidade. Diria que a filosofia, neste campo, não é um sistema fechado de verdades, mas um movimento perpetuamente em confronto constante com os seus próprios limites.
domingo, junho 08, 2025
O SUJEITO E A ARMADILHA DA LIBERDADE
Somos catequizados a pensarmo-nos como livres. Desde cedo, aprendemos a nos ver como propulsores de nossas escolhas, senhores da nossa vontade, arquitetos do nosso destino. Mas essa ideia de liberdade, tão sedutora quanto confortável, disfarça um enredo mais profundo que opera silenciosamente sob a superfície da consciência, ou seja, a conspiração da ideologia.
A ideologia não é apenas informação política manipulada, nem
um conjunto de ideias que se escolhe ou rejeita. Ela é o campo simbólico onde o
sujeito se constitui. É o que nos chama, nos nomeia, nos oferece um lugar no
mundo. E é ao responder a esse apelo que nos tornamos sujeitos, sujeitos
intimados a responder, como diria Althusser. O paradoxo é evidente: só nos
tornamos sujeitos ao nos submetermos. É nessa curvatura, entre liberdade e
sujeição, que a ideologia age com mais impulso.
Mas essa sujeição não se dá apenas no plano da consciência.
Como sublinha Leila Longo, há uma ordem inconsciente que nos força a ordenar.
Desejamos o que, talvez, nem saibamos, e ainda assim perseguimos o que nunca se
estabiliza. Nosso desejo é deslizante, insatisfeito, sempre orientado para um
“outro” que nunca se entrega por completo. E é justamente esse desejo,
instável, insubmisso, inexplicável, que a ideologia captura e se ajusta em
práticas materiais, em atos que acreditamos nossos, mas que respondem a lógicas
alheias.
domingo, maio 25, 2025
A ESTÉTICA DA MANIPULAÇÃO
O que “parece verdade” torna-se mais perigoso do que a própria mentira. Clipes curtos, citações mutiladas e palavras de impacto sem contexto arrastam a emoção, ofuscam a razão e mascaram o próprio disfarce. Contra a nova arrogância antidemocrática, pede-se pensamento crítico e memória histórica. Vamos a isso…
sábado, maio 24, 2025
A INVERDADE POLÍTICA FRAGMENTADA
Vive-se um tempo em que se está na moda de usar pedaços de verdade para esconder indesejáveis mentiras. Técnicas retóricas que são usadas com habilidade para distorcer a informação, manipulando-a com meias-verdades e omissões estratégicas. O objetivo é claro, ou seja, enganar e influenciar os resultados a favor de certos interesses.
Essas estratégias usam disfarces bem pensados. A verdade,
apresentada de forma fragmentada, serve para dar um ar de legitimidade a
argumentos muitas vezes falsos ou enviesados. Mesmo quando os dados são reais,
são retirados do seu contexto para evitar o desconforto que poderiam causar.
As generalizações enganosas são frequentes e baseiam-se em
casos isolados, apresentados como se fossem representativos do todo. Assim, em
vez de mentir abertamente, molda-se a perceção da realidade, guiando o
pensamento do público numa direção que lhes é conveniente.
Esses retalhos de verdade funcionam como selos de
autenticidade. Mas escondem, na verdade, a complexidade de situações que
incomodam ou desafiam certas narrativas. Por serem difíceis de desmontar, já
que exigem atenção, tempo e argumentação cuidadosa, estas verdades parciais
tornam-se armas eficazes na manipulação ideológica e cultural.
Este é, pois, um cenário que devemos saber reconhecer. É uma
ameaça silenciosa à democracia e aos seus valores fundamentais. O futuro está em jogo…
quarta-feira, maio 21, 2025
CAMINHOS PARA RESISTIR AO NEOFASCISMO
Nos últimos anos, temos assistido ao crescimento de
movimentos neofascistas em várias partes do mundo. Trata-se de um fenômeno
complexo e multifacetado, com várias causas interligadas, que têm permitido que
essas ideologias ganhem força, especialmente em tempos de crise.
A crise económica global, que teve o seu auge em 2008 e que
se prolongou com os efeitos da pandemia de COVID-19, deixou muitos países numa
situação de profunda desigualdade social. O desemprego e a precariedade
aumentaram, e as classes mais baixas passaram a sentir-se excluídas do sistema.
Essa frustração alimenta o ressentimento e a busca por soluções fáceis, como as
oferecidas pelos movimentos neofascistas, que prometem recuperar uma suposta
"ordem" e restabelecer a "dignidade" de um passado
idealizado.
A globalização e as grandes ondas migratórias geraram, por
sua vez, um sentimento de insegurança em muitas comunidades. As pessoas têm
receio de perder as suas identidades culturais, especialmente quando percebem
que as suas tradições estão sendo desafiadas por outras culturas. Esse medo é
muitas vezes exacerbado pelos discursos populistas, que culpabilizam os
imigrantes pela crise social e económica, exaltando sentimentos xenófobos e
nacionalistas.
A crescente polarização política tem gerado, por sua vez, um
ambiente de desconfiança em relação às instituições tradicionais. Muitos sentem
que os partidos políticos, tanto à esquerda quanto à direita, já não
representam os seus interesses. Nesse vazio, os movimentos neofascistas
oferecem uma alternativa, apresentando-se como forças contra o sistema político
estabelecido e utilizando uma retórica antissistema para atrair eleitores
desiludidos.
segunda-feira, maio 19, 2025
O TRUMPISMO EM PORTUGAL
O trumpismo não se apresenta como uma doutrina política com princípios coerentes. Trata-se de um modo de atuar, onde a comunicação se torna um engenho provocador e emocional. Em vez de argumentos racionais e fundados, a retórica é coloquial, direta e descomprometida com a verdade factual. A pós-verdade ganha espaço, e a narrativa, mais poderosa que a realidade, estabelece o tom do debate público. Nesse terreno, a verdade não é mais um princípio absoluto, é antes lamentavelmente manipulada para servir a um propósito emocional e polarizante.
Neste cenário, os inimigos simbólicos tornam-se
protagonistas da narrativa. A democracia, em seu funcionamento pluralista, é
gradualmente enfraquecida e o 25 de Abril, símbolo maior da liberdade e da
conquista democrática, é progressivamente rebaixado e descartado sem qualquer
pudor. A provocação, então, não é apenas uma tática, mas um registo político,
onde o choque é valorizado e o conflito se torna incessável. O poder, por sua
vez, não se constrói sobre instituições ou sobre processos democráticos, mas
sobre a figura do líder, que se apresenta como o libertador de um povo
supostamente oprimido pelas ditas elites.
O populismo nacionalista, tal como o trumpismo, alimenta-se da
desilusão social e do ressentimento. Ele usa o descontentamento das massas para
minar a política democrática e afastar o cidadão do debate pluralista. Ao
escavar as desigualdades e fantasiar inseguranças económicas, cria-se um clima
de instabilidade onde a representação política parece falhar, dando espaço para
um discurso simplista de "nós contra eles". O populismo explora,
assim, o mal-estar identitário, apontando como vilões aqueles que são, ou
aparentam ser, diferentes, sejam imigrantes, minorias ou as memórias
democráticas que incomodam uma visão mais reacionária do país, como o próprio
25 de Abril.
Simplificando as questões e criando uma dicotomia entre o
povo "autêntico" e as elites corruptas, o populismo encontra terreno
fértil. A polarização é sua maior aliada. O “nós contra eles” transforma-se
numa narrativa mobilizadora, onde qualquer nuance ou complexidade desaparece em
nome de uma falsa pureza nacional. Os imitadores do trumpismo sabem que, no
mundo contemporâneo, a atenção mediática é poder. E para garantir que dominam o
espaço político, nada melhor do que alimentar a polémica constante. Criam-se
disputas épicas e dramáticas, onde a verdade é substituída pela “verdade
revelada”, e a narrativa política é desenhada não para refletir a realidade,
mas para manipular emoções e dividir posições. O choque e a provocação servem
como uma forma de aprisionar a atenção e manter o conflito turbulento.
A INVASÃO POPULISTA
O "trumpismo" é mais do que um estilo ou uma ideologia, é uma forma de fazer política que atua no terreno das emoções, da imagem e do conflito. A sua entrada aparatosa e excêntrica na cena global desafia não só as práticas da democracia, mas também os nossos próprios critérios de análise política. É o espetáculo do poder em registo de pós-verdade, onde a realidade importa menos do que a narrativa que a molda. A invasão tornou-se ontem mais do que evidente. E o já confirmado “nós contra eles” vai, assim, construindo a sua fértil mitologia populista. Por isso, o 25 de Abril é para eles uma simbologia incómoda.
sexta-feira, maio 16, 2025
A INSÓNIA DO HUMANO
Vivemos um tempo em que a indiferença humana não conhece
cansaço — repete-se, reproduz-se, instala-se como costume. Onde falta o gesto
atento, esculpido pela diferença, pela escuta e pela diversidade do saber,
cresce a sombra da incivilidade: rápida, rude, rasa.
Pensar o outro com sensibilidade é um caminho para a verdade
do humano.
É aí que o conhecer se expande, não como posse, mas como partilha. A liberdade
de fazer pontes entre o que se sente e o que se pensa afina a escuta entre
subjetividades, favorece encontros, sustém a dúvida como lugar fértil da
colaboração.
Há um retrocesso subtil, ou talvez nem tanto, que se insinua
nas formas do desprezo, nos gestos automatizados pelo abuso de uma cultura
dominante que já não se interroga. A insensatez social não é obra do acaso, é
fruto e semente de narrativas que se esquivam à responsabilidade ética do
quotidiano.
Abrir-se ao outro é um gesto inicial. É reinvenção das
conversas, das presenças, dos modos de reconhecer e ser reconhecido. O ato
criativo, nesse espaço, é rutura - sim - mas também cuidado. Inquieta, remove,
desperta a consciência no agir.
Criar e educar - eis duas formas de atenção persistente. Dois
modos de interpretar, escutar, dar forma à expressão humana que deseja
compreender-se. Através desse movimento, o juízo desperta, o saber se renova e
o mundo torna-se novamente habitável.
Mas se a educação for só abstração, explicação, hierarquia, então adormece. E com ela, adormece também a verdade, embalada pela repetição anestesiante da indiferença. A ética da solicitude recusa esse sono. Ela vela. E ao velar, afirma: os direitos da vida e da dignidade não são opção, são origem.
quinta-feira, maio 15, 2025
CRIAR FORA DA CAIXA
Ao ler Rick Rubin, no livro O Ato Criativo: Um Modo de
Ser, encontrei um texto chamado “Regras” que me chamou a atenção. É um
texto simples na forma, mas com ideias bem provocadoras que, confesso, me deixou
intrigado e com uma curiosidade difícil de explicar. Rubin bebe muito de
práticas espirituais, e fala da arte e da criatividade de uma forma muito
ligada ao que vem de dentro, ao instinto, deixando de lado a rigidez dos
métodos tradicionais. Para ele, as descobertas criativas mais verdadeiras
acontecem quando deixamos de seguir regras fixas.
E o mais curioso são as razões que ele dá. A ideia central
tem a ver com as regras invisíveis, aquelas que nem nos damos conta de que
seguimos. São limites que não estão escritos em lado nenhum, mas que fomos
absorvendo ao longo da vida. É um pouco aquilo que Bourdieu chamava de habitus:
hábitos e formas de agir automáticas, quase inconscientes. E o problema é que
essas regras escondidas acabam por nos limitar, mesmo sem percebermos. A
criatividade perde força quando nos deixamos guiar por caminhos já definidos.
A verdade é que o nosso pensamento tem história, pois aprendemos
coisas, vivemos experiências e absorvemos cultura desde pequenos. Muitas dessas
ideias sobre o que é “certo” ou “errado” foram-nos ensinadas em casa, na
escola, ou até de forma informal. Com o tempo, esquecemos onde aprendemos
certas coisas, mas continuamos a agir com base nelas. Os valores que herdamos
da sociedade, dos media ou da moral dominante tornam-se parte de nós e isso
influencia muito mais do que imaginamos. Não são maus por si, mas o problema é
quando os seguimos sem questionar, como se fossem naturais ou obrigatórios.
terça-feira, maio 13, 2025
AMIZADE, ESSE TEMPO DE LIBERDADE E COMPREENSÃO
A amizade é sempre uma experiência humana profunda. É o
lugar onde se torna indubitável a interseção entre o eu e o outro, entre a
subjetividade individual e a alteridade irredutível. Onde a verdade existe, a
amizade não se constitui por afinidades triviais ou simpatias casuais. Ela
emerge como exercício ético, como prática existencial enraizada na atenção, na
escuta e no acolhimento interior e afetuoso.
O ponto de partida é o sujeito, enquanto ser criador, capaz
de se exceder no pensamento, na expressão e na ação. A pessoa, enquanto centro
de experiência e consciência, não é um ser fechado sobre si. O seu movimento
criador implica uma abertura do seu próprio ser, a si mesmo, ao mundo e ao
outro, uma abertura que só se realiza inteiramente através de afinidades
sinceras. A amizade verdadeira não se dá sem essa tensão entre interioridade e
transcendência. Só quem se conhece e se cuida de si mesmo pode oferecer uma
presença não invasiva, não manipuladora, mas libertadora.
Neste horizonte, a empatia deve ser pensada para além do
sentimentalismo. Não se trata de projetar sobre o outro as nossas emoções, mas
de aceder, na medida do possível, ao modo como ele habita o seu mundo. A
empatia é, nesse sentido, um gesto de descentramento, um esforço hermenêutico
de compreensão que respeita a opacidade do outro. É nesse gesto que o outro se
revela como fim em si mesmo, e não como meio para a nossa afirmação emocional,
moral ou presunçosa.
domingo, maio 11, 2025
A ARTE DE TORNAR-SE
A imaginação assopra como um vento interior. Estimula o pensamento. Aclara caminhos. Pensar é sonhar de olhos abertos. É recolher sentidos no silêncio. É fantasiar lendas com as sobras dos dias. É bordar mundo com fios soltos. Sem essa inspiração, o pensamento sujeita-se aos moldes. Acomoda-se ao já feito. Criar é, por sua vez, o gesto vital que nos mantém em movimento. Empatia e devaneio cruzam-se como gestos que se tocam no ar. A empatia escuta o outro. O devaneio atravessa o invisível. Juntas, fazem da representação um ato vivo. Não apenas compreendendo, mas acolhendo. Dar lugar. Reintegrar presenças que tremem por dentro. Interpretar é tornar-se. É dizer com delicadeza, “aqui estás”. Somos obra inacabada. Não nascemos prontos. Vamo-nos fazendo. Tocados pelo que nos espelha. Pelo que nos ressoa. Pelo que nos desconcerta. Há identificações que nos devolvem a imagem. Outras que nos falam a linguagem secreta da alma. E há ainda aquelas, mais raras, que nos removem e nos refazem. É no encontro com a diferença que mais crescemos. A literatura é casa para todas essas formas de ser. Espelho. Murmúrio. Abalo. Nela descobrimos outras vidas. E por elas, estendemos a nossa, pensando, lendo e interpretando. Tudo isso é, no fundo, uma arte de viver. E de continuar a reconsiderar-se, vivendo a Arte de Tornar-se.
sábado, maio 10, 2025
A ÚLTIMA LIBERDADE
Vou hoje pensando, a experiência de vida vai ajudando, que a liberdade de pensamento é algo bem mais complicado do que ao longo do tempo imaginei. Essa liberdade depende, estou certo, da saúde da nossa mente. Da cabeça que persistentemente duvidamos, desconfiamos, colocamos à prova. Não se trata apenas de desbloquear intenções, resolver conflitos, interpretar impulsos. A liberdade verdadeira, essa que sempre sonhei como criativa e expansiva, exige mais.
Sempre me interroguei sobre o que seria um pensamento livre,
pessoal, verdadeiramente independente. Não aquele que apenas reage, mas o que
emerge com sentido próprio, alargando o imaginário, abrindo o campo simbólico.
Uma cabeça inspirada no afeto do apreço e do conforto, eis o que sempre
busquei. Um estado interno capaz de dar energia e confiança à criatividade da
personalidade, que sinto como a finalidade, primeira e última, da minha vida
pessoal.
Assim, fui-me afastando, sempre que pude, de um mundo
silenciosamente patológico, mergulhado em relações doentias, adormecidas por
múltiplos cinismos e pelas opiniões geralmente aceites. Sempre procurei
“separar águas”, encontrar caminhos outros, mais íntegros, mais humanamente
valiosos.
sexta-feira, maio 09, 2025
ENTRE A SOMBRA E A VOZ
Sem saber, inventamos. Como quem apalpa no escuro, tropeçamos em revelações, e por vezes, descobrimos em nós aquilo que nos escapa. Há, quiçá, uma voz desusada que nos habita. O inconsciente murmura por entre gestos e palavras, e é ele, muitas vezes, que sobe ao palco em nosso nome. Ali, expõe-se com veemência, como se encenasse uma verdade que nem sabíamos conter.
Não sabemos repousar. Há em nós uma urgência de explorar o
instante, esse lugar onde o tempo se dobra sobre si mesmo. E nesse ímpeto,
dramatizamos. O palco torna-se espelho, e de tanto nos voltarmos para dentro,
vamo-nos reconhecendo nas máscaras que julgávamos alheias. A consciência
dispersa-se, fragmenta-se na circunstância, mas é desse fragmento que nasce a
centelha noética, esse fulgor íntimo do ritual da invenção. Sentimo-nos
criadores de mundos por vir, artífices de culturas que o espírito sonha e as
mãos moldam, sim, entre a matéria e a alegoria.
Pela palavra, esse sopro modelador, damos impulso ao sonho
criativo. Transportamos ideias que ainda não foram ditas, mas que já há muito nos
habitam em silêncio. São sínteses nascidas do imaginário, formas novas que a
razão sozinha não ousaria conceber. As memórias, polidas pela imaginação,
brilham como se nunca tivessem sido tocadas. E os sonhos, com sua audácia sem
testemunho, recriam realidades que o presente ainda não ousou viver. Assim,
enriquecemos, com o que pensamos, com o que inventamos, com aquilo que, sem
saber, verdadeiramente fomos e somos.
quarta-feira, maio 07, 2025
AO JOÃO MANUEL NEVES
És um homem reconhecido pelo que merecidamente te distingue.
Em suma, reportar-me-ia sobretudo às tuas incomparáveis qualidades humanas,
apreciando e reconhecendo a tua história pessoal, profissional e política. No
que me diz respeito, acentuo especialmente a tua elevação ao dialogar, o teu
modo singular de ouvir e a forma como te aproximas com empatia das ideias que
escutas — aprovando-as ou não. A educação está sempre presente, e o valor
democrático constantemente respeitado. Tens a rara capacidade de valorizar a
diversidade, promovendo a convivência de ideias distintas sem abdicar dos teus
princípios. Essa maturidade cívica é, sem dúvida, uma das tuas maiores forças
como candidato e como cidadão. Conta comigo.
ENTRE O PENSAR E O AGIR...
A formação da identidade não se dá de forma simples nem linear. A identificação, enquanto eixo estruturante, é bom dizê-lo, dispersa-se nas diversas leituras psicanalíticas e psicológicas, perdendo nitidez na multiplicidade das suas inferências. A articulação entre o pensar e o agir assume um carácter singular, arrastando-se por entre zonas de proximidade e diferença, onde se tecem representações que se tocam, mas não se confundem. Os conceitos de identificação, identidade, positividade e negatividade cruzam-se apressadamente, alimentando o diálogo tenso entre o Eu e o Supereu.
A identidade não é um dado inato, mas revela-se como uma
construção relacional. As identificações sustentam o desejo de estabilidade, de
concordância, de pertença. Outras, porém, nascem em territórios de
ambivalência: são igualmente constitutivas, mas dão corpo ao desacordo, à
oposição, à instabilidade. É neste entrelaçar de forças que emerge a célebre
dialética entre o Eu e o Outro, largamente explorada por filósofos e
pensadores.
Há quem veja a identidade como moldada pelas formações
inconscientes. Outros a entendem como ficção, efeito de identificações
imaginárias e simbólicas. E há ainda quem a encare como uma tarefa contínua,
marcada por aprendizagens, crises e reconfigurações. Deste modo, diferentes
níveis de identidade se sobrepõem e entrelaçam, nem sempre de forma pacífica ou
coerente. Entre o que o Eu deseja, imita e projeta, e o que o Supereu censura,
limita e impõe, instala-se uma oscilação constante. A busca de coesão choca-se
com o peso das normas e o arbítrio das regras herdadas.
sábado, maio 03, 2025
A ARTE CRIATIVA DE EXISTIR SIMPLESMENTE
Existir é ser, é viver, é estar. É afastar-se da corrida incessante e da rivalidade estereotipada que nos define. É ousar abraçar a simplicidade e, a partir dela, criar uma arte de experimentar a vida, redescobrindo o essencial enquanto resistimos ao desatino e à superficialidade do mundo.
A simplicidade, contudo, não tem um caminho fácil. Ela não
segue a rota da competição, nem cede ao egoísmo das aparências. Ela dispensa o
espelho, esse reflexo vazio que a vaidade alimenta, e recusa o mundo que se
encanta com a superficialidade. Em tempos em que a sociedade valoriza as
aparências e se inquieta com a naturalidade, a simplicidade se impõe como
resistência à futilidade do que é efêmero.
É necessário lembrar constantemente o vazio que a vaidade
nos impõe e o quanto ela nos afasta da busca genuína pelo que é verdadeiramente
essencial. Sem as amarras da vaidade, a simplicidade se torna uma força
resistente ao sistema competitivo que domina nosso tempo. Ela rejeita o abuso
da competição e a presunção vazia que nos distancia da verdade.
Ao fazer essa transição do Ego para o essencial, a
simplicidade revela-se como uma chave para a decifração da armadilha da
superficialidade. Entre a vaidade e o essencial, a simplicidade nos guia para o
terreno da ética, desafiando o egoísmo e as ilusões que a sociedade moderna
perpetua. Em um mundo de espelhos e aparências, ela nos lembra das verdades
que, mesmo incômodas, não nos abandonam.
Por mais que nos esforcemos em racionalizar, a simplicidade
não pode ser dissociada dos campos ético e estético. Portanto, é imperativo
afastarmo-nos da artificialidade e abraçarmos uma vida mais autêntica, imersa
no que é verdadeiramente essencial. O "Simplesmente", que no título
chama atenção, não é apenas uma palavra, mas uma convicção da simplicidade na
sua forma mais pura e profunda, que nos desafia a existir sem as camadas do
supérfluo, buscando o que é essencial e verdadeiro na nossa experiência de
vida.
domingo, abril 27, 2025
A ODIOSA VIOLÊNCIA VERBAL EM DEMOCRACIA
Estamos em período de eleições e uma verdade desponta: a gritante incompatibilidade com a cultura democrática. O jargão adultera-se, servindo-se da truculência da palavra agressiva e da galvanização acalorada. O riso hipócrita tenta disfarçar a falsidade e suavizar a violência das palavras. A desqualificação, por sua vez, enlaça o rival; a desumanização é clara na ressignificação, e a intolerância esforça-se para dissimular o enfurecimento.
As palavras, mais do que pedradas ou petulâncias, alavancam
expulsões, desmentem qualidades e, sobretudo, inflamam aversões e rancores. O
sentido alegórico torna-se negativo, convertendo-se assim em algo teimoso, persistente
e contínuo. A violência verbal mostra-se, no entanto, insuficiente e, como tal,
salta para o palco político agredindo honras, dignidades e identidades. Principalmente,
desqualificando aqueles que pensam de forma diferente. Discutir e argumentar
não serve, interessa sim tornar o outro um inimigo em que a conciliação e o entendimento
é irreal.
A competição democrática em nada assim contribui, pois a
ideia da pluralidade, do debate livre e do compromisso com a convivência política
contrariada, como é óbvio, danifica a meta finalidade. O que parece importar,
diga-se, é caminhar teimosamente o itinerário da insensibilidade, através da
intimidação verbal, minando os seus princípios e, consequentemente, favorecendo
a assimetria do antagonismo.
sábado, abril 19, 2025
OS PARTIDOS E O AGITADO CENÁRIO DIGITAL
Nesta minha idade já avançada, obrigam-me não só a comprometer, mas também a equacionar o risco que os partidos, igualmente mais desgastados, sejam abatidos por agitações populistas mais astutas e adaptadas ao novo panorama digital. A cidadania dos tempos atuais, goste-se ou não, encontra-se mais dispersa e movimentada, o que ameaça os partidos, que precisam urgentemente se acertar e se regenerar.
A política vive hoje mudanças bruscas e desafiadoras,
induzidas pela agitação digital e pelos TICs que a cercam. Torna-se, assim, um
cenário corrente mais descentralizado e menos vinculado aos alicerces
tradicionais que moderavam a comunicação e a mediação política. Daí, as
mudanças políticas se tornam outras, diferenciadas e discrepantes das
tradicionais.
Reconheço que não é fácil entender a exigência desse
movimento digital e, muito menos, deslocarmo-nos da rotina tradicional de modo
a entender a relevância dessa metamorfose comunicável. A cidadania por aqui
passa e em consequência das redes sociais, do seu poder difuso e descentrado,
as pessoas cada vez mais se desviam, nas suas manifestações e mobilizações
políticas, dos partidos e da comunicação tradicional.
quarta-feira, abril 16, 2025
O JOGO DAS IDENTIDADES E O ACORDO DA HARMONIA SOCIAL
Ao ler A Armadilha Identitária, de Yascha Mounk, fui-me concentrando no profícuo e artificioso engenho verbal, enquanto serventia do arquétipo para caçar, sobretudo, o inconsciente de gente descuidada e apoderada pelo seu dente canino. Trata-se de pessoas que pensam e forjam identidades de mentiras distintas, acima da paridade individual, dos seus direitos e respeitabilidade humana.
Como sentencio com evidência, um dos grandes contratempos da
chamada “armadilha identitária”, como o autor a batiza, é que ela anemie a
harmonia social, sobrestime as identidades desconjuntadas e as converta no foco
do debate público e político, obstaculizando a inclusividade e conflituando,
envenenando a divergência entre elas. O necessitado essencialismo, ao encurtar
a complexidade humana, faz-se indesejável, ao sentenciar as pessoas pelas suas
pertenças culturais e não como criaturas próximas e semelhantes.
Enfatizar o jogo verbal e social de soma zero — o que um
grupo ganha, o outro perde — gera um clima de rivalidade que, em nada, ajuda o
diálogo cooperativo necessário a uma aproximação que se torne socialmente mais
fecundante do que nos deixarmos arrastar pela tacanha antipatia entre ambas
forjada. Há, então, que investir na razão e no universalismo, aos seus
princípios, recorrendo à dignidade humana e aos direitos fundamentais, tentando
superar, assim, as suas fragmentações sociais e culturais, sem ter em conta as
suas justificadas fidelidades.
Como podemos argumentar contra esse estratagema identitário,
segundo Mounk? Sinteticamente, impõem-se quatro pilares indispensáveis. O
primeiro, ao valorizar, destacando os direitos universais e a dignidade humana,
afirma que todos têm direitos iguais, independentemente de raças, géneros ou
outros atributos. Em segundo lugar, dar destaque à ideia que se procura e se
ambiciona, ou seja, uma sociedade inclusiva e unificada, através de princípios
comuns, assim como, e paralelamente, a consolidação da democracia. Em terceiro
momento, reconhecer a complexidade da identidade humana, admitindo a
individualidade das pessoas e os seus direitos à liberdade. Por último,
servir-se da razão e do diálogo, tendo presente a relevância de soluções
racionais e justas para as naturais e legítimas dificuldades, evitando a queda
na dita armadilha de ver e pressagiar o mundo.
domingo, abril 13, 2025
A AUTENTICIDADE EM TEMPO DE CONFORMIDADE
Essa forma de se supor, sem argumento ou consciência legítima, é uma resposta à exigência social como forma de se acomodar a uma normalidade fixada, ou melhor, a uma regularidade que nos distancia de um autoconhecimento mais rigoroso e profundo. A verdade da autenticidade, de modo contrário, requer uma consciência transparente da própria finitude assim como um compromisso com possibilidades existenciais mais enraizadas. Ser autêntico não é simplesmente seguir um ritual, mas sim confrontar a dúvida, a hesitação e, sem apreensão, caminhar com a sua própria verdade, sem disfarces ou escapatórias. A procura pela perfeição, enquanto busca pela autenticidade, desafia-nos a resistir às rotinas instintivas e insubmissas à verdade que nos acompanha. Não se trata de um apuro acordado ou modo repisado, mas de uma progressividade constante do "eu" à medida que nos revemos mais conscientes e nos sentimos igualmente mais harmonizados connosco mesmos. Não se trata de uma vontade obsessiva de atingir a perfeição abstrata ou idealizada, mas sim um esforço de alcançar uma vida mais autêntica e plena, tudo feito com a íntegra consciência e responsabilidade.
Caminhar no encalço de um propósito de afinamento e
apuramento é, neste sentido, um humano exercício de liberdade. A verdadeira
liberdade não está em seguir um caminho predefinido ou cumprir um conjunto de preceitos
exteriores, mas sim em poder escolher livremente aprendendo a assumir as
consequências dessas opções. É bom que se lembre que a autenticidade exige essa
liberdade, uma liberdade que não se restringe à ausência de restrições
externas, mas que se expressa na responsabilidade de assumir e viver de acordo
com as próprias decisões. Assim, a busca pela perfeição não é uma fuga de quem
somos, mas um reencontro com o nosso verdadeiro ser.
Em jeito de conclusão, no decidir por essa vida mais sincera, desaprovemos o finalismo que nos aprisiona à repetição sem reflexão. Em vez disso, abracemos o dinamismo existencial que nos permita confrontar a realidade da nossa própria finitude em busca de uma vida mais saudável e humana, não apenas em termos materiais, mas sim procurando o valor humano decorrente da digna verdade interior. Essas deslocações põem em atividade destacar, de um modo mais evidente, o confronto entre o fado espontâneo e a vivacidade reconhecida, em favor do conceito de perfeccionismo, enquanto vontade de atingir o perfeccional como causa evolutiva e existencial. Para a perfeição do Ser há que saber resistir à rotina mecanizada em busca da inevitável luz da nossa verdade. Saibamos dar importância de fazer da filosofia uma prática diária, uma filosofia que transforme o homem e o oriente na busca por uma vida mais autêntica e significativa.
sexta-feira, abril 11, 2025
AS RAÍZES DO SAUDÁVEL MALANDRO
Peter Sloterdijk, no seu livro Crítica da Razão Cínica, analisa o cinismo moderno, identificando-o como uma forma de falsa consciência que surgiu após a perda das ilusões iluministas. Para contrastar, recupera o conceito de kynismo, da Grécia Antiga, associado a figuras como Diógenes, caracterizado pela irreverência e pela crítica às convenções sociais.
Nesse contexto, o autor sublinha e caracteriza os seus
“cinismos cardinais”, entendidos como manifestações principais do cinismo na
sociedade moderna:
– O cinismo militar, que se refere à atitude dos militares que, embora
cientes da futilidade e crueldade da guerra, continuam a participar nela,
muitas vezes justificando-a com discursos patrióticos ou estratégicos;
– O cinismo de Estado, que diz respeito à postura de governos que,
apesar de proclamarem ideais elevados, frequentemente agem de forma oportunista
ou corrupta, priorizando interesses próprios em detrimento do bem comum;
– O cinismo sexual, orientado para a exploração comercial da
sexualidade, em que a intimidade é mercantilizada e as relações humanas são
reduzidas a transações superficiais;
– O cinismo médico, que envolve uma prática clínica que, embora baseada
no conhecimento científico, é influenciada por interesses corporativos ou
financeiros, podendo até negligenciar o bem-estar do paciente;
– O cinismo religioso, que remete para a instrumentalização da religião
para fins pessoais ou políticos, distorcendo os seus ensinamentos espirituais
em benefício próprio;
– O cinismo do saber, que se relaciona com a utilização do conhecimento
e da educação como ferramentas de poder ou status, em vez de instrumentos de
busca genuína da verdade e do entendimento.
quinta-feira, abril 10, 2025
A DANÇA DESCOMPASSADA
Como gostamos e nos cansamos de cavaquear sobre o viver, e é difícil concluir esse assunto, comecemos por fantasiar a vida como a imagem de um café. No início, está quente e agradável, depois esfria, amarga e no fim resta apenas a pergunta; será que precisava mesmo de tanto açúcar para o adocicar? Afinal, viver não é só respirar, comer e esperar pelo momento em que a nossa bateria se cansa e o carregador adormece...
Por vezes, não nos damos conta de que a vida é retalhada
pelo pormenor. Cada pedaço de tempo é cortado em fatias finas, muitas vezes
invisíveis, que nos escapam sem darmos por elas. Esses pequenos detalhes
parecem ser a base de tudo, mas talvez sejam apenas as nossas maiores
distrações. O valor da simplicidade apresenta-se ausente, como uma promessa
vazia que nunca chega a cumprir-se. Estamos sempre ocupados, sempre com pressa,
como se o tempo fosse um jogo de cartas que precisamos ganhar, mesmo sem
sabermos as regras.
O mar agitado de uma vida aculturada pela matemática do
tempo engendra uma existência repleta de atrativos dispersivos e
insignificantes. Vivemos bombardeados por mil e uma opções: publicidade,
compromissos, prazos e, claro, redes sociais que bem alimentam a nossa
disfunção. E é aqui que a mente, em força, se confunde, se cansa e se fadiga.
Não está treinada para absorver tanto estímulo e leveza. Não tem tempo para
parar e refletir, e por isso cede à superficialidade das distrações aceleradas.
Oscilamos entre a miséria e o valor das palavras, embaralhando as emoções, sem
tempo para as digerir. Tudo parece urgente e essência, e se apresenta como tal,
mas pouco, ou quase nada.
CHAPOUTOT AVISA, CUIDADO COM O CAMINHO PERIGOSO
Le Monde Diplomatique, através de Johann Chapoutot, relembra
que “quando o medo ou o ódio à esquerda leva setores da sociedade a apoiarem
forças autoritárias, abre-se o caminho para regimes que podem destruir a
própria democracia”. Assim, ele nos alerta: “Cuidado. Já vimos isso acontecer.
Quando a direita quis destruir a esquerda a todo custo, acabou por entregar o
poder a regimes totalitários que destruíram tudo – até a própria direita.”
O que estamos, de facto, a presenciar hoje? Uma retórica agressiva, impositiva e antidemocrática, alimentada por discursos carregados de ódio, xenofobia, racismo e anti-intelectualismo. Há uma tentativa de deslegitimar as instituições democráticas — como a imprensa livre, os tribunais e os parlamentos. Chapoutot, mais uma vez, lança um aviso histórico que, nos dias de hoje, se torna crucial: nada de alianças com forças antidemocráticas. A defesa da democracia deve sempre vir acima das rivalidades ideológicas. Eis, uma opinião prudente para o tempo em que vivemos.
segunda-feira, abril 07, 2025
LIBERDADE DE EXPRESSÃO OU DISCURSO DE ÓDIO? UM DILEMA DOS TEMPOS
As possibilidades de interação humana expandiram-se com o
surgimento da internet. A rede global ofereceu-nos a capacidade de comunicarmos
com quase qualquer pessoa, seja ela conhecida ou desconhecida. Em teoria,
tornou-se possível que um pensamento ou até um disparate perdido em algum canto
do mundo seja rapidamente difundido para muitas outras pessoas. Qualquer um,
com acesso à internet, pode-se tornar um autor ou um orador popular.
Essa é uma novidade que poucos desejam ou conseguem
reverter, mas não nos devemos surpreender que o universo online, em constante
expansão, reflita e seja refletido nas dificuldades históricas que a humanidade
enfrentou ao longo do tempo. A intolerância e o ódio são caraterísticas
presentes na sociedade humana desde os seus primórdios, embora, nas últimas
décadas, esses comportamentos tenham-se intensificado.
O problema surge quando, apesar de uma maior aceitação da
diferença e de uma crescente tolerância, as restrições contra a intolerância
são negligenciadas. Dessa forma, o discurso de ódio encontra terreno fértil
tanto nas ações como nas palavras. A internet, ao abrir novas avenidas para a
comunicação, também criou formas mais amplas de contato entre as pessoas. No
entanto, as limitações sobre o que pode ser dito online são muito mais brandas
do que aquelas aplicadas ao discurso offline. Na internet, muitas vezes, sentimo-nos
livres para dizer coisas que jamais ousaríamos dizer pessoalmente, em público.
domingo, abril 06, 2025
A ARTE DE CRIAR, ENTREGANDO-SE AO DESCONHECIDO
Ao ler Rick Rubin, sinto-me sempre alegremente desafiado. Ao
falar de criatividade, ele lida com a música como um fluxo espontâneo que, não
devendo ser forçado, exige presença e disponibilidade. Para Rubin, a
criatividade não é apenas uma habilidade técnica ou uma tarefa a cumprir, mas
sim um modo de ser e, como tal, uma maneira de estar atento e sensível às
circunstâncias. Ele destaca a importância de se libertar das contingências e
dos entraves para dar espaço ao desejo de começar e à criação a alcançar.
O criador não é o mestre que força a sua vontade, mas o ser
humano que se revela aberto e vulnerável para o confronto. Estar disponível à
criatividade exige uma entrega sem barreiras e, sobretudo, sentir-se um presente
não perdido no passado nem apressado com o futuro. A criatividade, para Rubin,
é um espaço onde a mente desacelera e o coração se prende a algo mais profundo,
para além do entendimento.
O processo criativo exige assim confiança. Ele admite a aceitação da incerteza, quiçá até do caos, enquanto espera pela beleza do momento imprevisto. A criatividade não é uma força, mas sim um oculto a ser abraçado. Na arte de criar, o segredo não está no afinco, mas na entrega. Criar é, assim, uma dança com a incerteza. Ela se afirma quando a mente cede à oportunidade e o coração assume o controle. Sem forçar, sem querer tudo vigiar, é vital admitir que a criatividade se apresente com a virtuosa autenticidade.
sábado, abril 05, 2025
DO IMPULSO AO TALENTO, DA ESPERTEZA À INTELIGÊNCIA
A esperteza com facilidade desliza no campo do concreto e nele é reconhecida. A inteligência, por sua vez, apresenta-se pronta a abraçar outros limites que ultrapassam o exercício funcional. Todavia, nem sempre os conceitos são reconhecidos nas suas naturezas e dimensões diferentes.
A esperteza afirma-se com facilidade nas agilidades
exercitadas, mais pragmáticas e orientadas para resultados imediatos do “saber
fazer”. O valor do seu instrumentalismo adentra-se nos meios para atingir fins,
cuidando do seu desempenho e proveito. A inteligência, por sua vez, alarga as
fronteiras do seu percurso, acolhendo as múltiplas influências da reflexão. Ao
envolver a consciência no processo do pensamento crítico, abstrato, teórico,
ético e criativo, atinge-se um domínio cognitivo superior, mais exigente, capaz
de espelhar adversidades que merecem ser consideradas.
A inteligência não se limita à mera resolução de problemas
do cotidiano. Avança para o entendimento baseado em princípios universais,
assentes em teorias consolidadas e em conceitos competentes capazes de
legitimar e questionar o status quo. Trata-se, sim, de um processo contínuo de
autocrítica com a capacidade de adaptação a diferentes contextos e à exploração
de diferentes formas de conhecimento, incluindo, sem reticências, o filosófico
e o cultural.
O TALENTO ACONTECE
Rick Rubin diz que “o talento é a capacidade de deixar que as ideias se manifestam através de si”. Eu ousaria acrescentar que o talento é como uma janela aberta numa tarde de vento. As ideias entram, rodopiam, e tu, como quem nada quer, de repente te vês a deixar que elas se espalhem pela casa. Não é que as ideias te pertençam, mas, de alguma forma, tu és o palco onde elas dançam. E, no fim, tu ficas a sorrir, meio perdido e maravilhado, e a pensar que não sabias que podias ser tão bom em deixar as coisas acontecerem.
sexta-feira, abril 04, 2025
RETOMAR O PODER, E SEM DEMORA
O livro de Christine Kerdellant, "MAIS PODEROSOS do que OS ESTADOS",
fala sobre o acréscimo do poder das grandes empresas no mundo e como elas estão
a ultrapassar, e até engolir, o poder dos próprios governos. Imaginemos isto:
as corporações agora têm tanta grana, influência política e controle sobre as
nossas vidas que estão a fazer sombra até aos Estados-nação. É como se elas
tivessem virado ao verdadeiro "governo mundial".
Kerdellant faz um ponto crucial: essas empresas não apenas
mexem os pauzinhos nos bastidores, como também fazem o que querem, muitas vezes
sem ninguém as controlar. Elas causam dano às leis, mudam políticas públicas e
até agilizam normas globais. E o melhor (ou pior, depende de como se vê), elas
fazem isso tudo sem respeitar as fronteiras dos países. Basicamente, elas estão
a construir um "governo global", só que sem nenhum tipo de
responsabilidade, como seria tolerável ou não.
Além do poder económico, essas corporações controlam a
informação, a tecnologia e até o dinheiro que circula pelo mundo. Elas não
estão só a competir com os governos, pois já vão tomando as rédeas do futuro
deste planeta. E, se a gente não tomar cuidado, podem até decidir para onde o
mundo vão encaminhar.
quinta-feira, abril 03, 2025
A IRONIA CÍNICA, UMA FERRAMENTA DO MALANDRO
A ironia cínica é uma forma única de comunicação, marcada
por uma percepção crítica que problematiza e subverte as normas estabelecidas,
especialmente em relação ao campo do poder e da moralidade. Ao abandonar a
subtileza e o humor suave, adota um tom mais direto e desafiador, ressaltando a
hipocrisia e as discrepâncias nas normas sociais e políticas.
Essa forma de ironia expõe as incoerências e falácias nas
pretensões de autoridade e moralidade das instituições. Ela revela a distância
entre o discurso oficial (seja político, moral ou religioso) e as práticas
reais que acontecem nos bastidores dessas estruturas. Como exemplo, um governo
que prega a justiça social, mas mantém um sistema desigual, ou uma religião que
promove a caridade, mas tolera a exploração dos mais vulneráveis. A ironia
cínica não apenas aponta essas contradições, também questiona a legitimidade
dessas instituições de poder.
A ironia cínica utiliza-se da crítica para desvelar as
incoerências nos discursos e práticas, especialmente no âmbito político, moral
ou religioso. No entanto, ela não se limita a destacar essas falácias. Ao
contrário, questiona a própria validade dessas estruturas de poder.
segunda-feira, março 31, 2025
CÍNICO E MALANDRO, A IRONIA COMO ESTRATÉGIA DE RESISTÊNCIA CULTURAL
Na infância, fui um curioso e inocente malandro. Talvez,
pela sensação de desconforto, como se me considerasse inoportuno. Com o tempo,
fui descobrindo um trabalho comum que, de certa forma, me incomodava.
Gradualmente, percebi a necessidade de entender o buraco em que me encontrava
e, então, comecei a tentar livrar-me dele. Principalmente quando compreendi que
muitos dos passos amedrontados que dei eram guiados por um conceito superficial
e isolado de sua significação cultural.
Com o passar do tempo e das minhas progressivas ondas
críticas — tendencialmente irónicas ou até cínicas — comecei a desvelar algumas
das diversas facetas da sociedade, da cultura e das relações de poder. Embora
disfarçadas, essas estruturas criam a figura do “malandro” como um boémio
indolente e vadio, que sobrevive sem trabalhar, explorando a confiança alheia.
Diversos autores, entretanto, contribuíram para situar e
aprofundar o conceito do “malandro”, inserindo-o no contexto cultural. José
Saramago, com sua ironia crítica, conduz-nos aos domínios do poder, da
moralidade e da condição humana. As suas personagens, frequentemente,
personificam os "malandros" que transgridem normas sociais e
religiosas, posicionando-se à margem de um sistema que tenta controlá-los. A
ironia em sua escrita oferece uma crítica contundente à hipocrisia de certas
instituições.
quarta-feira, março 26, 2025
A LIBERDADE DE SER DIFERENTE
Ontem vi e ouvi Patti Smith (RTP2), a “poetisa do rock”,
apresentar uma síntese do seu espírito rebelde, da sua sensibilidade artística
e do seu pensamento espiritual. O seu estilo admirável é uma mistura de temas
como identidade, liberdade e espiritualidade, na sua busca por um sentido que
ressoe com a sua própria existência. Pessoalmente, e dando importância ao valor
da diferença e da diversidade, rejeito a intolerância das normas sociais
rígidas e, por isso, senti uma profunda simpatia e afeição por Patti. A ideia
de normalidade torna-se, para mim, imoral quando se transforma em uma forma de
opressão cultural. Diria, então, que a verdadeira liberdade está em abraçar a
diferença e desafiar as expectativas da sociedade, afastando o conceito de
normalidade, que muitas vezes serve para marginalizar uns e privilegiar poucos.
Pode-se perguntar, então, em que aspetos sustento a minha opinião e atitude? Começo por destacar o valor que dou à verdade, rejeitando as conveniências que mudam conforme a situação e, em contraste, defendendo a virtuosa emocionalidade humana. Sinto, com clareza, que a verdadeira liberdade só pode ser alcançada, às vezes, através da desobediência às normas e da rutura com as estruturas cínicas e habituais de poder. Aprecio Patti quando sua filosofia de vida reflete essa busca constante por autenticidade, liberdade e uma compreensão mais profunda da experiência humana. Além disso, vejo a sua arte como uma expressão de vida, uma busca incessante pela verdade, pela beleza e pela transcendência moral, ou seja, não pelo bem ou pelo dever, mas pela superação de si mesma.
terça-feira, março 25, 2025
JOSÉ RODRIGUES DOS SANTOS, UMA ENCICLOPÉDIA DA VAIDADE
José Rodrigues dos Santos é um desvairado vaidoso e, não poucas vezes, converte-se num alucinado "cretinoide". Ao ouvi-lo jactancioso, o que já é enfadonho, num instante arrisco desembuchar algumas palavras genuínas e sem estrangeirismos. Reconheço, o que não será mau, que ele tem uma cabeça bem atulhada, profundamente mergulhada e diplomada nesses laboriosos mitos das culturas afamadas por engravatados paroquianos de impacto significativo. Admito, pois então, que JRS tenha sido um aluno de 20, que bem soube assimilar o esqueleto protocolar e daqui inalar as enternecedoras aspirações, devaneios e exaltações da dita "ocidentalidade" cultural. Para conhecer este sublime homem não será muito fatigante. Sabemos que os sonhos, os lapsos de linguagem e os sintomas psíquicos a todos nós acontecem. Ele, o ilustre e arrogante JRS, é que talvez não acolha nem consiga admitir. Que chateza…
domingo, março 23, 2025
ARTE DE ERRAR COM ESTILO
A vida é sempre uma estrada, e quem diz que o fracasso é um desaire claramente nunca teve a alegria de seguir um caminho errado. Não desistir, e aí nem todos sabem, é a chave para o acerto, ou, pelo menos, para não sermos considerados preguiçosos. E se, por acaso, tropeçarmos naquilo que chamamos de fiasco, não é um desastre; é só a oportunidade de explorar umas paisagens que os vencedores nem sonham que existem. Afinal, se eu tenho alguma razão, pergunto: quem precisará de destino quando temos tantas rotas possíveis?
REDES SOCIAIS, A POLÍTICA DA IDENTIDADE E A POLARIZAÇÃO NO SÉCULO XXI
O conceito de “Armadilha Identitária”, abordado por Yascha
Mounk, como já anteriormente referi, é central na análise da dinâmica política
contemporânea, especialmente no que se refere à cultura digital. O autor
argumenta que a forma como as redes sociais e plataformas digitais orientam as
interações, as expressões e até mesmo a construção de argumentos políticos tem
gerado um impacto profundo nas identidades políticas. Em sua visão, a cultura
digital se configura como um terreno fértil para a ampliação e radicalização da
política identitária, especialmente através de ações e reações que perpetuam as
divisões sociais.
Mounk observa que as plataformas digitais oferecem espaços
onde os indivíduos são constantemente desafiados a se posicionar com base em
identidades determinadas por categorias sociais específicas. Este ambiente, por
um lado, proporciona visibilidade a grupos marginalizados e fortalece o poder
de vozes que antes estavam à margem do debate público. Por outro lado, essas
mesmas plataformas fomentam a multiplicação de bolhas de filtro culturais e
ideológicas, onde a comunicação se restringe a círculos de concordância,
intensificando o apoio à desagregação social.
sábado, março 22, 2025
VOZES E SILÊNCIOS CRIATIVOS
Há vozes e
vozes. As que vêm de fora e as que ressoam com a humanidade dos sentimentos. As
vozes internas, ao contrário do que se supõe, nem sempre ajudam. A inquietação
naturalmente incita a impertinência da culpabilidade, atraindo consigo medos
que rodopiam entre a insegurança e o insucesso. Entre as críticas internas e as
expectativas externas, o reconhecimento busca o seu destino numa dispersão
confusa da busca pela verdade.
Assim, como
podemos aprender a distinguir essas vozes que se despegam? Como decidir, nesse
momento, qual o caminho seguir? O que procuramos? Medrar ou mascarar? Não é
fácil, pois não é simples diferenciar a divergência entre as vozes que importam
e as falas destrutivas que se opõem à liberdade criadora.
A
autenticidade, ao deixar de lado o medo do arbítrio e das críticas internas,
entrega-se ao processo criativo de forma mais livre, autêntica e verdadeira,
sem o peso de contingências externas ou da busca pela perfeição. A criatividade
não deve ser vista como algo validado apenas por críticas externas ou internas.
Ao contrário, ela deve ser um espaço de exploração, onde a insegurança e o medo
são deixados de lado para permitir que a criação se amarre ao seu verdadeiro
eu, obedecendo às suas ideias mais autênticas.
Em resumo, diria que uma ideia realmente criativa precisa de aprender a silenciar as vozes internas e externas que a limitam, dando espaço à convicção criativa e à liberdade.
sexta-feira, março 21, 2025
O MARASMO TORNA-SE DOENÇA
A mesmice não é apenas arrastar-se por monotonias repetitivas e assépticas. É, principalmente, esquivar-se da possibilidade de imaginar, inventar e criar. Essa apatia íntima, ao se arrastar, leva-nos a uma aparência sem verdade, a um simulacro de rotinas e de artifícios cegamente acessíveis. O pensamento e a ação, ao depreciar a inovação, circulam pelos rumos tediosos e perversos de um certo trabalho e de uma vida sempre recordada. Falar de rotas criativas exige-nos um outro estado de espírito, capaz de enfrentar esse sombrio marasmo. Ou seja, é preciso ousar pensar e agir de forma diferente e decidida, livre de preceitos já enfraquecidos. Estar atento ao novo, ao circunstancial e ao impensado, acreditando na possível criatividade de renovados horizontes, abertos a diferentes possibilidades do homem criativo, é fundamental. Dar valor e sentido à criatividade implica um porvir florescido nessa essencial mudança de perspectiva e no seu constante questionamento do que já tenha sido dado e em remanso desgastado. Como alguém diria, não raras vezes, a ciência alcança a arte. Não raras vezes, a arte alcança o espiritual.
quinta-feira, março 20, 2025
O QUE SERÁ ISSO DA “ARMADILHA IDENTITÁRIA”?
Tudo o que envolve o ser humano, de alguma forma, magnetiza-me. Os valores que me acompanham, por sua vez, alimentam esse severo "íman" que me impõe um cuidado exigente na forma como concebo a noção de identidade. Por isso, a minha constante e atenta reflexão crítica acompanha-me na dureza e prudência do seu minucioso caminhar.
Este tema, então, leva-me ao que se tem apelidado de
política identitária, especialmente ao reconhecer categorias como raça, género
e etnia. Servindo-me da ideia de Yascha Mounk, que argumenta que a política
identitária se tem transformado numa força divisível, é lógico concluir que, ao
acentuar a cisão, estaremos a comprometer a possibilidade de construir uma
sociedade mais inclusiva e plural.
No contexto atual, especialmente num tempo fortemente
marcado pelo digital, as identidades específicas proliferam, e a sociedade
exibe-se cada vez mais fragmentada. A dinâmica do “nós contra eles” nada
protege os laços democráticos. Mounk, de forma acertada, alerta que essa
tendência pode arruinar a coesão social e, ao mesmo tempo, enfraquecer valores
mais abrangentes, como a justiça, a igualdade e a liberdade.
Em síntese, subscrevo a ideia de Mounk, quando ele
questiona, criticando a política identitária moderna e suas consequências, se
ela é, de fato, a melhor forma de alcançar uma sociedade mais justa e unida.
Pergunto-me: como podemos resgatar a coesão social e as qualidades de um espaço
público comum?
segunda-feira, março 17, 2025
A VERDADE EM NÓS, EIS UM BICHO DE SETE CABEÇAS
A verdade fundamental não é em nós, de forma alguma, aquela que docilizamos para convencer os outros. Na realidade, trata-se daquela verdade que, ao se alimentar das nossas fragilidades humanas, se torna uma ideia convenientemente adaptada à nossa visão do mundo — uma ideia de verdade que, quando mal interpretada, acaba por ser uma defesa ridícula de como gostaríamos que as coisas fossem, mas não como realmente são.
Quando nos inclinamos sobre o inconsciente, como se fosse
uma cápsula do tempo, vemos que a verdade não é nada objetiva ou imutável. Ela
é, no entanto, excessivamente subjetiva e ajustada ao molde pelos nossos emaranhados
internos, desejos sufocados e traumas não resolvidos. A tal "verdade
fundamental", segundo os entendidos, é aquela que vem das profundezas do
inconsciente — um lugar remoto e desconfortável de nós mesmos, que se recusa a
ser alcançado facilmente pela nossa consciência, mas que, com grande
insistência, orienta nossa visão do mundo e de nós mesmos.
domingo, março 16, 2025
EU SEREI O MELHOR PRESIDENTE QUE DEUS CRIOU
… assim nos brindou Donald Trump.
Donald Trump tem sido um mestre na arte de transformar a
política num espetáculo de incerteza e imprevisibilidade. Sua habilidade em
desmantelar convenções diplomáticas e políticas estabelecidas é quase
artística. Ele vai desafiando as regras à medida que encontra conveniência,
guiado por seus instintos populistas e cínicos. A diplomacia, que antes se via
como uma troca de favores entre potências, agora é apenas um jogo – um jogo
onde as cartas são jogadas ao sabor de seus caprichos e interesses pessoais,
criando sustos e uma constante sensação de apreensão.
Nos Estados Unidos, a política interna torna-se um campo de
batalha onde a imigração é atacada, as relações comerciais são perturbadas, e
até o clima parece estar sendo 'importunado'. Tradicionalmente uma fortaleza de
previsibilidade, a política externa americana hoje se transforma num caldeirão
de incertezas. Os acordos estabelecidos pela NATO, por exemplo, são desfeitos
com uma facilidade espantosa, e as alianças se tornam peças de um tabuleiro que
Trump move sem hesitar. A diplomacia se torna algo líquido, sem forma, onde as
‘amizades’ se reconsideram à velocidade da sua conveniência.
terça-feira, março 11, 2025
LIBERTAR A LIBERDADE - É OBRA
A liberdade é sempre encarada como um valor fundamental, mas a sua compreensão profunda e a maneira como a exercitamos no cotidiano são questões confusas. Dada a nossa tendência de agir apressada e desatentamente, amiúde ignoramos a forma como nossas escolhas – que consideramos livres – são amoldadas por condições externas, nem sempre entendidas, que limitam o nosso verdadeiro exercício da liberdade. Assim sendo, não deixa de ser essencial refletir sobre essas limitações e procurar compreender de forma mais crítica o conceito de liberdade no contexto democrático, onde as condições culturais e políticas desempenham um papel crucial.
Hoje em dia, a liberdade está frequentemente reduzida a um
conceito que privilegia a escolha individual, recusando o contexto histórico e
as intenções ideológicas que permeiam nossas decisões. A busca pela liberdade
no campo político invariavelmente se mistura com a escolha entre diferentes
opções superficiais, como se essas opções fossem realmente livres. Na nossa
sociedade e tempo, os campos políticos tornaram-se cada vez mais corrompidos
por oratórias que se valem diretamente pelas emoções, zanga ou aflição, em desfavor
de um pensamento político mais pensante, crítico e significativo. A coerência
emotiva e imediatista acaba então por substituir um debate mais racional, logo
mais exigente, baseado no exame das estruturas de poder que realmente conformam
as nossas vidas.
domingo, março 09, 2025
O MEU ATREVIDO RETRATO DE SLAVOJ ZIZEK
Zizek é um filósofo singular, cujas ideias ousadas, que mesclam psicanálise e filosofia, frequentemente provocam perplexidade e desafiam convenções. Ele não se limita a um campo específico, mas arquiteta um pensamento multifacetado, norteado por uma inquietação insistente com a cultura presente. A sua dialética, exposta na obra “Sexo e o Absoluto Falhado”, é um recurso poderoso que evidencia contradições no interior da própria cultura, afrontando as normas estabelecidas.
Zizek assim propõe que, em vez de buscar a harmonia ou a
conciliação, devemos reconhecer as contradições do tempo. A sua dialética,
exposta na obra Sexo e o Absoluto Falhado, desmistifica a busca pela
perfeição, propondo que a falha é, na verdade, um motor essencial para a
transformação social e cultural.
A psicanálise freudiana, por sua vez, desempenha um papel
central no pensamento de Zizek. Ele aplica conceitos psicanalíticos para
explicar o comportamento coletivo e os processos culturais. A noção de
"inconsciente social" é uma das suas ferramentas mais provocadoras.
Zizek sugere que a cultura em si mesma é um reflexo das nossas tensões
inconscientes, das pulsões reprimidas e dos desejos não realizados, moldando
assim as nossas escolhas e comportamentos.
quinta-feira, março 06, 2025
A FILOSOFIA COMO CAMINHO PARA UMA DIGNIDADE DA CULTURA POLÍTICA
Neste tempo em que a perturbação emocional é muitas vezes
aproveitada para alimentar raciocínios desalinhados e complexos, torna-se
essencial recolocar a emoção no seu campo certo, como uma força de
transformação e entendimento. A motivação central do autor, aqui, é justamente inquietar
o modo de vida de cada indivíduo, incentivando uma nova afinidade com o que há
de mais profundo e genuíno na nossa humanidade. Somos seres de alma e coração,
e é por meio do desejo — aquele impulso que nos lança na busca incessante por
conhecimento, pela invenção e pela descoberta — que nos relaciona com o mundo.
A Filosofia, entendida não apenas como um estudo teórico, mas como um modo de
vida, convida-nos a refletir sobre como nossas emoções e pensamentos moldam
nossa realidade e nossas escolhas.
O afeto, em sua forma mais pura, tem o poder de nos aproximar
do outro, das coisas e de novas ideias. Do silêncio, muitas vezes, surgem novas
visões, e é nas relações e na empatia que as convicções e projetos comuns tomam
forma. A filosofia como prática não é uma reflexão distante, mas um movimento
constante que altera nossa forma de viver e agir no mundo. Se, por um lado, ela
nos ensina a refletir sobre nossas emoções, por outro, faz-nos perceber como as
nossas ações são a verdadeira expressão de nossa filosofia pessoal. O
comportamento humano, muitas vezes negligenciado ou obscurecido pelos
interesses externos, é o espelho de nossas crenças mais profundas.
quarta-feira, março 05, 2025
A IMBECIL VAIDADE
A vaidade, com seu perfume de má qualidade, torna-se um dos
modelos mais caricatos da boçalidade humana. Não no sentido de uma ausência
total de inteligência, mas na inabilidade de percebermos além da superfície
petulante do retrato fugidio com que o nosso espelho nos endromina. Somos
vulneráveis criaturas de vaidade, amamentadas pelo rastreio infindável da
incessante validação, como se o valor procurado fosse atestado pelos olhos
alheios, por essa cínica simpatia de uma convivência incerta e efémera.
A vaidade é, porventura, o molde mais leve de tolice que o
ser humano não só cultiva, mas também nela resvala. Ela, essa vaidade,
sugere-nos que o que somos pode ser veiculado através de indícios de
relevância, em corpos cinzelados ou em aparências bem retocadas. Somos
vaidosos, talvez até ridículos, acreditando que, ao procurar sermos nós mesmos,
somos, na verdade, eternos mascarados, descurando a verdade de que nada do que
é superficial perdura. A vaidade é um delírio que nos vicia e afasta da essência
do ser, fazendo-nos crer que a exterioridade é, afinal, e de mau fado, tudo o
que somos.
REGRESSAR À INTRIGA DO ABSURDO
O absurdo é uma força que nos arrasta para o imediato, onde
os sentimentos momentâneos tomam o lugar da razão, e o despropósito substitui o
sentido. Num mundo onde o ilógico se disfarça de esclarecimento, perdemos a
capacidade de questionar e refletir. O que parece importante agora rapidamente
se torna irrelevante, enquanto o essencial é esquecido. O valor dos caminhos
percorridos se esvai, e o que era útil, um dia, torna-se obsoleto e sem futuro.
O absurdo corrói a nossa humanidade, ao fazer-nos olhar
apenas para o que está ao alcance do imediato. A escala humana perde o todo e concentra-se
na ação individual, como se o universo começasse e terminasse no nosso “umbigo”.
Criamos uma conveniente teia de justificações que se sustentam na sobrevivência
e no efémero, na busca incessante pelo agora, enquanto a verdadeira
profundidade da experiência humana se dissolve.
Viver no absurdo é viver como se estivéssemos sempre à margem de nós mesmos, presos num ciclo de inquietação, onde, apesar de tudo, mantemos nossa integridade apenas pela aparência, e não pela sua humana e viva essência.
terça-feira, março 04, 2025
O ABSURDO EM CENA
A vida humana é, e sempre foi, um palco onde o desatino se apresenta, ora como razão, ora como irracionalidade. Em busca de equilíbrios, a razão tenta alinhar-se com a realidade, mas, simultaneamente, a vida não abandona o vício, a insensatez e o insuportável sofrimento. Este conflito entre razão e instinto resulta numa inquietação constante que, em vez de oferecer a clareza, nos mergulha na incerteza e no desconforto.
A irracionalidade, presente no nosso comportamento, torna-se
uma exaltação do que não conseguimos compreender. Desvincula-se da lógica e nos
arrasta para uma experiência de vida que parece ausentar-se de qualquer
entendimento racional. Em muitas ocasiões, a razão, enquanto faculdade
intelectual e qualidade mental, perde-se nas pluralidades da existência humana.
Na essência da nossa consciência, a lucidez parece perder-se, como se o que
somos fosse algo além da compreensão racional.