O capitalismo vive do cansaço das ideias. A política tornou-se arte de conter, e o possível, armadilha que nos cerca. É nesse crepúsculo que germina o desespero. O homem, afinal, esqueceu-se de sonhar outro mundo.
gritoeargumento
sexta-feira, novembro 07, 2025
terça-feira, novembro 04, 2025
DA COMPAIXÃO À OBSCENIDADE
Nem toda a lágrima é humana. Algumas brilham ao sol da indiferença. A pobreza parece já não causar dor, apenas se afigura comover por empatia. Tornou-se, com o tempo, um tranquilo espelho limpo onde o conforto burguês aparece. A compaixão, quando não altera, corrompe e o gesto piedoso vai-se tornando, por hábito, a forma simpática e possível. Com facilidade se esquece, então, que o sofrimento dos outros não é matéria de consolo, mas de justiça. Que maçada...
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO REQUER DECÊNCIA
Neste tempo em que o debate público se mistura com ruídos e
grosserias, importa recordar que a liberdade de expressão é inseparável da
responsabilidade ética e do respeito pela palavra. Procuro aqui dar um parecer,
ainda que sumariamente, sobre a dignidade da palavra política e o dever de quem
a exterioriza em nome da democracia.
Assim sendo, começo por dizer que a liberdade de expressão é
talvez a mais atrativa das conquistas democráticas, porque permite ao
pensamento uma presença pública e à diferença uma forma de coexistência. Mas,
como toda a conquista civilizacional, exige cuidado e honradez. A palavra livre
não é uma palavra incólume; é, sim, um valor que se responsabiliza pelo que
semeia no espaço social e comum.
No Parlamento, a palavra não é propriedade privada. Cada
deputado fala em nome próprio, é certo, mas fala também em nome da democracia
que o delega. Sendo um privilégio, é, sobretudo, um dever: o de tratar a
palavra como causa cívica, não como recurso de aparato ou escarcéu.
Há quem confunda liberdade com desinibição, coragem com
tumulto, franqueza com desrespeito. Mas a liberdade de expressão não se mede
pela intensidade da voz: mede-se, sim, pela essência do sentido. A palavra que
ofende, rebaixa ou falseia não é expressão de liberdade, dado que se torna, sim,
na sua caricatura.
A democracia não se afirma no caótico ruído, mas sim na evidência;
não na injúria, mas no debate; não na teatralidade do insulto, mas na clara convicção
do pensamento. A palavra democrática é, por natureza, um modo de zelo e de
responsabilidade - cuidando do outro, da verdade e da própria língua em que o
comum se torna possível.
Por isso, quem foi eleito para falar em nome de todos outros deveria recordar-se de que a palavra é responsabilidade, não munição. Falar livremente supõe debater com dignidade, ou seja, cumprindo de forma viva e necessária com coragem política e democrática. Em síntese, diria que a liberdade de expressão pede decência e conformidade participativa.
domingo, novembro 02, 2025
UM TOLO NARCISISMO
Num café, como em tantos outros lugares, entre a essência do
explícito e o ruído dos bate-papos, esboça-se sempre a imagem mais rotineira do
nosso tempo, ou seja, a das criaturas achegadas disputarem, com exaltação,
pequenas e tolas diferenças. Um olhar naturalmente fingido, quiçá meigo, eis a
farsa da rotina onde cada um se esforça, no íntimo, por se distinguir do seu
próprio espelho.
Freud há muito já nos falava do “narcisismo das pequenas
diferenças” como uma curiosa tendência humana para repelir o que nos é quase
igual. Esta inclinação humana olha, atentamente e com ironia, o palco-café onde
os costumes se ensaiam todos os dias e revelam como o eu e o outro persistem atados
ao mesmo bailado de espelhos.
É um facto, uma realidade, pois vivemos encurralados em imaginários
de opiniões e em brumas de semelhanças e de convicções que se confundem e
disputam a mínima diferença como se fosse uma inestimável bandeira. O “Café das
Pequenas Diferenças” é, pois, um retrato irónico do nosso tempo, civilizado na
forma, todavia bem tosco na desprezível e tola vaidade.
quinta-feira, outubro 30, 2025
CHEGA DE TRETA GROSSEIRA
Vive-se um tempo em que pensar é obra de resistência. Agimos num espaço público tomado pelo alarido, pelo obstáculo e pelo grotesco, momentos estes em que a grosseria se confunde com coragem e a boçalidade se veste de virtude. Mas não chega, pois troca-se o assunto pelo enxovalho, o diálogo pelo alvoroço e a verdade pelo espetáculo.
A extrema-direita não tem tido êxito propriamente pelas suas
ideias, mas pela sua teatralidade, escarcéu e violência simbólica. Daí que
resistir exija restituir à palavra a sua dignidade, à razão a sua qualidade e à
crítica a sua coragem. Argumentar tem sempre por missão aprofundar e refazer a
conversa humana. Desconstruir, por sua vez, procura impedir que a razão se
torne opressiva. Ironizar, como é óbvio, procura desvendar a comédia da
ignorância triunfante.
Estes três procedimentos - argumentar, desconstruir,
ironizar - revelam que a crise política de hoje é também uma crise das
alocuções. Contra a regra dos ruidosos paspalhões, pensar não é luxo nem
retórica: torna-se, sim, uma generosa insubmissão. Pensar, nestas
circunstâncias, é dizer não à cegueira organizada, não à banalização do ódio,
não ao ruído que se faz passar por verdade.
Corre-se o risco de viver num tempo em que se excluem os
melhores para que os idiotas continuem a conduzir cegos. É a regra tácita de
uma cultura que confunde espontaneidade com verdade e agressividade com
autenticidade. Acredite-se, pois, que a palavra pode ter sentido, mesmo quando
parece que o mundo a perdeu.
terça-feira, outubro 28, 2025
CHEGA DE GROSSERIAS
O debate do Orçamento de Estado deveria apresentar-se o espaço maior da responsabilidade e da inteligência política. Mas o que hoje se ouviu (e viu) da bancada do Chega foi o contrário: ofensa em vez de argumento, injúrias em vez de diálogo, afrontas em vez de confronto democrático.
Não se trata de divergências partidárias, trata-se sim de dignidade.
A democracia vive da pluralidade e do debate entre ideias, não da injúria
pessoal nem da humilhação dos adversários. O Parlamento é um lugar de serviço
público, não um palco para a exibição de egos feridos e ressentimentos
travestidos de coragem.
Quando o Chega reduz a política a um espetáculo de ofensas,
está a corroer em silêncio os pilares do regime democrático que diz insistentemente
defender. A violência verbal é o ensaio, um começo da violência política. A
banalização do insulto é o começo da destruição do respeito mútuo que sustenta
qualquer comunidade.
Como é óbvio, não é apenas a educação que está em causa, mas
sim a dignidade da representação democrática. O país precisa de deputados que
saibam pensar e dialogar, nunca de vozes que procuram desordenadamente baralhar
o alarido com a verdade.
ESCUTAR O INCONSCIENTE SERÁ POSSÍVEL?
Obrigado Byung –
Chul Han
Com o tempo, aprendemos, se disponíveis estivermos para
isso. A subjetividade, no seu intrínseco, quando crítica, cuida do nosso
espontâneo. Não o controlando, nem o civilizando, mas antes dele nos
socorrendo. Sermos exigentes connosco compromete-nos a compreender as vozes que
nos atravessam, as que falam antes de nós e, por vezes, contra nós. O
inconsciente é esse presente clandestino que nos assiste; e a exigência é o
gesto premente que tenta ler, sem violência, o que nele se inscreve.
Cuidar do inconsciente, julgo eu, não é impedi-lo de agir,
mas dar-lhe espaço para se apresentar, impedindo, sim, que ele se torne ruído e
que a sua linguagem se degrade em pressentimento. Uma subjetividade minuciosa
não é aquela que se força a modelos, mas a que nutre o olhar, suporta a
incógnita e explora a convicção de que o inconsciente, como o tempo, não se
domina: apenas se considera, escutando.
É nesse paciente cuidado que se pode caminhar no percurso
dessa ética silenciosa e seletiva. A exigência não é moral, mas uma vigilância
poética, minuciosa na atenção ao que se move na sombra. Diria, talvez
apressadamente, que uma cultura, ao perder essa exigência, desampara o
inconsciente, entregando-o à publicidade, às redes, às manipulações que
capturam o desejo e o devolvem em forma de mercadoria. O inconsciente sem
cuidado torna-se um espelho partido onde já não se vê, com clareza, o humano.
Por isso, sermos exigentes connosco é um ato político: é
recusar a dispersão, a superficialidade e o ruído. É aceitar o trabalho
paciente da escuta, do que em nós resiste, do que em nós deseja, do que em nós
ainda não encontrou palavra. Só assim o inconsciente pode tornar-se aliado da
criação, e não cativeiro da repetição. Cuidar do inconsciente é cuidar do
pensamento. E cuidar do pensamento é cuidar do mundo e, com ele, da vida
humana. Em síntese, diria que escutar o inconsciente é devolver à subjetividade
a sua profundidade perdida.
domingo, outubro 26, 2025
A POLÍTICA À LUZ DO ESPETÁCULO
A política de hoje vive uma mudança comunicativa para o
vasto e luminoso espaço dos meios de comunicação. É na televisão e nas redes
sociais que a prolongam e amplificam, que se joga também a exposição do poder,
a dinâmica da autoridade e até a própria definição do que é “realmente
político”.
No entanto, essa migração, que se apresentou como um simples movimento estratégico, revelou-se também uma forma de submissão. Os políticos acreditaram poder dominar o recinto mediático, controlar a arenga pública e impor a sua agenda. Todavia, o que sucedeu foi o inverso, ou seja, foram eles os colonizados. A lógica mediática substituiu a racionalidade política. As imagens rápidas, as frases curtas e as emoções superficiais ocuparam o lugar da reflexão, do debate, da contradição e da memória.
O resultado é uma política reduzida ao desempenho e à
execução. Já não se governa a partir de ideias, mas de chavões; já não se
debate e argumenta, encena-se o confronto. Já não se pensa o futuro,
administra-se o presente com gestos televisivos e estratégias de marketing. O
palco político tornou-se estúdio, e o eleitor, mero espectador.
sábado, outubro 25, 2025
ENTRE A PALAVRA E O GESTO
"O simples é o instante em que o
silêncio se torna voz - não fala para ser ouvido, mas para deixar pressentir o
que o silêncio guarda. Entre o que é dito e o que permanece, o simples respira:
é pensamento que se faz aragem, palavra que regressa sempre à sua origem.”
Escrevo estas palavras procurando dar sentido a um gesto
simples, sem presunção, apenas com verdade. A amizade, quando é intensa e profunda,
não precisa de se elevar: é suficiente o silêncio que alcança, o olhar que
acolhe, a presença que em nada obriga.
Assim sendo este texto conciso, surge desse sentimento modesto
de gratidão, pelo tempo partilhado, pelas informais e sinceras conversas, assim
como pelos silêncios que se justificam por si. O simples, para mim, torna-se
isso, ou seja, a forma de afirmar o essencial sem o querer forçar, enquanto
respiração natural do que é humano.
Vivemos um tempo em que o excesso de palavras tende ao
esvaziamento das ideias e dos seus sentidos. Por isso, a simplicidade entre o
silêncio e a fala apresenta-se uma forma de resistência e de verdade. Na
amizade, como na linguagem, o essencial, para mim, não se impõe; revela-se,
sim, discretamente, num gesto, numa palavra breve, num olhar que compreende. A experiência
levou-me a reconhecer o humano nesse território de pertença em que compreendo o
peso existencial do seu ser.
Eis, sim, a possibilidade do poder do gesto e da palavra
encontrarem o sentido da vida, o seu silêncio e a sua simplicidade. Viver o
simples torna-se viver plenamente um instante em que o silêncio se torna voz. Não
por vaidade de dizer, mas por necessidade de partilhar o que o silêncio acolhe.
Entre o que pensamos e o que conseguimos dizer, o simples revela-se. É aí que a
amizade encontra a sua verdade e realidade. Através do gesto sincero, da
palavra breve e do olhar atento.
terça-feira, outubro 21, 2025
A ÉTICA DO RESTO
Vou envelhecendo; ainda assim, a lucidez dá-me a atraente ideia que me acompanha. Vivemos um tempo saturado de ideias, modas e defesas - quiçá inconscientes. Tudo parece estudado, dito, prometido, pese embora a frustração nos mostre o quanto somos incompletos. É neste sentido que acompanho, com alguma empatia, no palco beckettiano, a sua ética que resta, sobretudo quando ele nos convida a recusar a lógica figurativa da utilidade, do progresso deturpado e da produtividade enganosa. Sinto e vivo esta recusa como um modo de resistência ética, impossibilitando, tanto quanto possível, que o poder se alimente da coerência e da eficiência simbólica. Nada de especial se torna; apenas se vai abrindo um renovado e exigente campo ético e político, pois "nada é mais produtivo do que o medo do nada".
segunda-feira, outubro 20, 2025
IRONIA, NÃO ESCÁRNIO
No duelo da política, Gonçalo Capitão não corta nem rasga - contorna, arredonda, suaviza. E bem…
A ironia, quando nasce da inteligência e do bom senso, não
magoa - ajuda a esclarecer. O âmago da sua crítica não necessita, pois, de voz
alta; basta sorrir, iluminando o discernimento e a expressão. Há quem, por
dificuldade, use a voz ruidosa e dela procure proveito próprio. Por outro lado,
há quem, com serenidade e humor, esclareça o enredo, dando valor e ganho ao
duelo. A estes últimos devo apreço, pois fazem do riso um gesto de empatia,
transparência e respeito. A democracia nada perde ao suavizar vozes intensas
alimentadas por emoções - sobretudo quando arrastadas por falsas e fingidas
febres.
domingo, outubro 19, 2025
NÃO SIRVO? TALVEZ, MAS EXISTO E SINTO-ME VIVO
“Pequeno texto sobre a arte de não cumprir com dignidade”
Já não tenho fantasias, pois o mundo tem-se tornado um
mercado de vidas em saldo. Quem não rende, não presta, e quem não reluz, perde
brilho. Mas eu, birrento e de má sorte, continuo persistente, mesmo agora de pilhas gastas. Fala-se em meritocracia, produtividade e excelência, palavras
que servem para inocentar a indigência de terceiros. Eu, por mim, prefiro o
luxo da imperfeição, pois o não me mover bem tornou-se o meu pequeno ato de
indisciplina.
A vida sempre me quis capaz e, se possível, eficaz. Eu ofereci-lhe
apenas a qualidade de ser demorado. Quer-me animado e eu proporciono-lhe a irónica
oposição. Quer-me por inteiro, eu proponho-lhe frações e, se possível, não
deixo de embolsar caro. Enquanto eles medem sucesso em cifras e seguidores, eu
coleciono perdas com o mesmo cuidado de quem guarda provas de uma espécie em
vias de extinção. Ou, melhor dizendo, a dos que ainda sentem decência em não
vencer à custa de tudo.
Poder-me-ão imaginar, afinal, muito grosseiro, ultrapassado
e de muito blá-blá-blá. Aceito, evitando o achincalho. É bem mais aceitável isso
do que servir de estatística ao aludido progresso. Prefiro, pois, sobrar como vestígio
sem relevo do que alinhar no desfile dos bem-sucedidos. Sinto-me, certamente,
uma brecha consciente, teimando persistir cidadão. Não sirvo alguns, todavia existo
e sinto-me bem e bem vivo.
sexta-feira, outubro 17, 2025
O HUMANO PERDIDO ENTRE A COMUNIDADE E O CAOS
Desde o início, o ser humano aprendeu a sobreviver não pela
força, mas pelo encontro. A fraqueza física tornou-se vantagem evolutiva quando
descobrimos o poder da cooperação. Falar, compreender, cuidar e enganar foram
artes que nos ergueram acima das outras espécies. A nossa inteligência é, antes
de tudo, inteligência social, um órgão da convivência. Como penso, William Von
Hippel sugere que o salto evolutivo que nos formou foi menos biológico do que
comunitário.
Mas é aqui que o paradoxo começa: o mesmo laço que nos
salvou é o que agora nos aperta. A vida em comum, que outrora garantia
sobrevivência, converteu-se em fonte de inquietação. A consciência, produto da
relação com o outro, tornou-se também ferida que nunca cessa de sangrar.
Vivemos num mundo cada vez mais interligado e, paradoxalmente, nunca estivemos
tão sós.
Freud viu nesta ferida o preço da civilização. O sujeito
moderno é herdeiro das pulsões recalcadas que a cultura exige para manter-se de
pé. A cooperação social implica a renúncia do desejo, e o mal-estar instala-se
como eco dessa troca desigual. A felicidade paga-se com culpa, e o laço social
tece-se de repressões necessárias. Assim, o progresso técnico, moral e político
não elimina o sofrimento, apenas o refina.
terça-feira, outubro 14, 2025
O ESPELHO DAS ELEIÇÕES
As eleições refletem não apenas opções políticas, mas também o estado da nossa consciência democrática. Este breve escrito nasce do desalento e da incerteza, interrogando o que ainda subsiste do ideal que um dia tomámos por coletivo.
Nem sempre a democracia cumpre o que promete. O seu valor definha quando se deixa enredar em arengas vãs e manipulações doutrinárias. Fala-se de mudança, mas o sonho democrático vai-se consumindo, reduzido a uma técnica de consenso, onde a divergência se reprime e o pensamento crítico se perde no hábito.
Em nome da estabilidade, o político cede campo ao económico, e o cidadão converte-se em simples consumidor de direitos. A democracia, privada do sopro da sua energia viva - a faculdade de objetar e de transformar -, arrisca tornar-se mera administração do possível.
O seu vazio não é apenas verbal: é também moral e político. Falta-lhe a chama do inconformismo, o gesto ético de dizer não, a coragem de reabrir o espaço da igualdade e da justiça. Por isso, mais do que celebrar o que possuímos, importa recordar o que falta: uma democracia capaz de reencontrar o seu lume inicial - o da esperança, da crítica e da liberdade.
segunda-feira, outubro 13, 2025
UM ABRAÇO, JOÃO NEVES
Há caminhos que, mesmo sem o aplauso das urnas, guardam em ti a claridade dos gestos justos. O teu é um desses percursos: firme na
coerência, sereno na entrega, habitado por uma fé discreta que faz da política
uma forma de consciência.
A tua história, pessoal e familiar, é um lugar de memória
onde o serviço prevalece sobre o desejo de poder, ou seja, esse cobiçável modo
de estar que resiste ao cansaço e às sombras do tempo.
Aceita, pois, este sinal de apreço por continuares a
acreditar quando tudo parece dispersar-se. Há verdades que se revelam apenas na
paciência dos dias, e há causas que florescem tarde, mas florescem.
Porque o tempo, esse juiz sem pressa, acaba sempre por
reconhecer o que nasceu de um coração inteiro.
Aqui te deixo, amigo João, um sincero abraço.
domingo, outubro 12, 2025
EM DIA DE ELEIÇÕES
Para além do voto, não me afasto da cultura da argumentação
e sua inspiração. Bem pelo contrário. Será a circunstância onde o humano, ao
votar, se reconhece na diferença. Ela torna-se o exercício da escuta e da
crítica, indispensável a qualquer vida democrática. Quando o discurso político
se reduz ao grosseiro insulto e à sua manipulação eletrizante, como sucede nas
atuais estratégias populistas, com as suas promessas simplistas e demagógicas,
perde-se a própria ideia de política como espaço de palavra partilhada.
Defender a palavra e a argumentação, hoje com o voto, será, certamente, defender
a civilização do diálogo contra a atual barbárie da desmedida berraria.
sexta-feira, outubro 10, 2025
O PODER DE ABRIR OS OLHOS
Sinto viver um tempo em que o meu íntimo se desloca. Tudo o que me parecia seguro e estável, como obrigação, costume, urgência e precisão, vai perdendo confiança e mérito. A vida, esse desgastado espelho de convénios, parece-me desunir-se em silêncio. E não só, pois surge algo diferente, não porque se ofusque, mas sim porque se vê de um outro jeito.
Durante muito tempo fomos aprendendo a viver segundo o olhar dos outros. O
tempo sempre medido, o amor catalogado e o corpo regulado. A vida, no que lhe pertence,
reduzida ao cálculo e à respiração do proveito. Mas por baixo dessa excêntrica sagacidade
de normalidade há sempre um murmúrio, um apelo surdo da intenção de reiniciar.
Mudar a perceção torna necessário perceber e apreender esse murmúrio.
Torna-se inevitável transfigurar o ponto de vista da submissão pela ideia da
criatividade e inspiração. Torna-se necessário alcançar a ideia e o sentido de que
o prazer não é um luxo, mas o modo natural do ser quando já não sente receio
pelo mundo e pela vida que o estimula.
Viver, sendo uma palavra simples, existe quase esquecida. Torna-se
um viver sem finalidade, sem limite, sem cenário e representação. Um viver como
quem entrega à vida o que lhe foi furtado, ou seja, a sua alegria, dinamismo e surpresa.
A contraversão de ângulo não se faz uma doutrina, mas sim um
gesto, um fácil e ágil movimento do olhar que transfigura a paisagem na sua
totalidade. Quem o faz, mesmo não o reconhecendo, já despertou a indignação. Porque
o verdadeiro poder, o único que liberta, é o de abrir os olhos e ver esse mundo
às claras.
quinta-feira, outubro 09, 2025
A PALAVRA E AS SUAS SOMBRAS
Eu, como tantos outros, recuso a ideia de um sujeito indiferente à linguagem e ao discurso, alheio à história e à ideologia que o atravessam. O sujeito não fala a partir do nada nem de um ponto zero da expressão; fala a partir de lugares marcados por criações imaginárias e por posições ideológicas que o orientam e o definem. A palavra que profere é, assim, já habitada por outras vozes, por memórias sedimentadas, por ausências que lhe dão forma. Esta deslocação teórica implica abandonar o espelho simplificador da psicologia, onde o sujeito se via inteiro, e substituí-lo por uma compreensão em que o inconsciente e a ideologia se entrelaçam na singular invenção do dizer.
Mas esse percurso simbólico não se projeta no vazio. As
criações imaginárias são porosas às desigualdades sociais, às pertenças
culturais e às vivências afetivas que desenham o horizonte de cada sujeito.
Ninguém fala fora do mundo, fala-se a partir dele, com o seu peso e com as suas
feridas. O modo como alguém se representa - a si, ao outro e ao real - depende
tanto das condições materiais da vida quanto das inscrições simbólicas e
inconscientes que o acompanham. O sujeito da palavra e do discurso é, pois, uma
figura de travessia, entre o social e o psíquico, entre o vivido e o
representado. Cada palavra que enuncia transporta, tornado difícil a
compreensão, o enredo humano da história que a faz existir.
Em síntese, diria que tal pensamento conduz à compreensão de que o
sujeito, ao comunicar, é inseparável das condições históricas, ideológicas e
culturais que o moldam. Longe de ser uma consciência livre, ele é efeito de
entrelaçamentos entre língua, ideologia e inconsciente, habitado por formações
imaginárias que refletem as desigualdades e pertenças que o constituem. É nesse
ponto de confluência entre o social e o íntimo, entre o dito e o silenciado,
que o sujeito encontra a sua voz, uma voz nunca inteiramente sua, mas sempre
marcada pela história que a precede e pela humanidade que a sustenta.
terça-feira, outubro 07, 2025
NINGUÉM FALA SOZINHO
Nem sempre é fácil falar com um outro. Há sempre um incerto,
um entremeio onde o sentido oscila, pois quem fala nunca o faz a partir de uma
circunstância neutra. Cada palavra carrega consigo o traço distintivo de uma
pertença, de uma história, de um modo de ver o mundo. O sujeito, ao falar,
oscila entre o que partilha com todos - a língua, enquanto universalidade que o
atravessa - e o que lhe é inteiramente próprio, isto é, a sua irredutível
singularidade. Entre esses dois polos ergue-se ainda uma zona intermédia: o
particular, onde os sujeitos se reconhecem entre si numa mesma posição social,
cultural ou ideológica.
É aí que o conceito de “sujeito ideológico” ganha corpo.
Nenhum de nós se situa fora dos meandros do sentido que o precedem. Dizemos
“eu”, mas o que em nós fala é também o que o mundo nos transmitiu. A ideologia
não é um ornamento da consciência, mas a forma pela qual ela se institui.
Compreender um discurso é, por isso, compreender essa
interseção: a língua como estrutura que possibilita o dizer; o contexto social
e histórico que o torna inteligível; e o sujeito que, entre ambos, tenta
inscrever o seu gesto singular através da palavra. O discurso é sempre um lugar
de tensão - entre a regularidade e o desvio, entre o instituído e o que tenta
despontar como novo.
Talvez seja essa a razão pela qual falar com um outro nunca
é apenas comunicar, mas entrar num campo de forças onde o que somos, o que
pensamos e o que nos excede se confrontam no mesmo movimento das palavras.
No fundo, falar é sempre mais do que trocar palavras: é deixar que em nós ressoem vozes, memórias e sentidos que nos antecedem. A palavra nunca nos pertence inteiramente; somos nela atravessados pelo que o mundo nos ensinou a dizer - e também pelo que ainda não sabemos dizer. É por isso que, mesmo quando julgamos estar a falar sozinhos, importa alertar que, contrariamente ao que se espera, ninguém fala sozinho.
domingo, outubro 05, 2025
O BLÁ-BLÁ-BLÁ DA DIREITA FESTIVA
O “Blá-Blá-Blá” significante desta direita de ruidosa e intensa verbosidade, obstinadamente exagerada e de procedência onomatopeica, solta-se de um engenhoso manejo simbólico, repisando palavras que soam a valores, contudo, exauridas de simples e humana verdade. Não tagarela para esclarecer, mas, pelo contrário, para mover afetos e identificações, papagueando para dividir, ludibriar e juramentar.
Significar sujeitos implica reconhecê-los enquanto sujeitos
de desejo, de conflito e de contradição, e não apenas como entidades abstratas
usadas para justificar juízos. A sua força não reside na figura simbólica, mas
na emoção que a persistente e deslavada mentira provoca. Por isso, o seu
discurso transpira sarcasmo e hipocrisia, simulando amor ao povo enquanto o
empobrece e encurta o bater produtivo do seu coro de obediência.
Como todo o poder que teme o sujeito, prefere a palavra
inócua e vazia, fugindo da voz livre. Essa raia da direita tornou-se arguta na
idolatria dos seus significantes - pátria, liberdade, povo - temendo, porém, os
sujeitos reais que essas palavras poderiam libertar. O seu discurso faz-se,
assim, sarcástico, apresentando-se em nome do povo para o manter “festivamente”
emudecido. A ironia do termo desmonta, assim, a seriedade desta exaltada
direita, barulhenta, superficial e “autocelebratória”. Pelo seu ridículo e
caricatura do “Blá-Blá-Blá” do seu discurso com assento na mentira emocional.
domingo, setembro 28, 2025
CHEGA DE ARROGÂNCIA ABSOLUTISTA
A palavra política nunca é neutra. Sempre que é dita, arrasta consigo memórias, disputas e sentidos em conflito. Não tem uma essência fixa: vive numa rede de significados que se cruzam, transformam e desafiam mutuamente. Falar de política é, pois, lidar com termos como democracia, poder, Estado, liberdade, povo, ideologia. Cada um deles abre novos caminhos de interpretação. A política não é um sentido puro, mas uma construção permanente, feita de debate e diferença.
É justamente aí que se revela o cinismo destas direitas
fanfarronas e extremas. Tentam bloquear a pluralidade, reduzindo a política a
slogans simplificadores, tais como “nação”, “ordem”, “identidade”, “inimigo”. Usam a
arrogância do discurso único, recusam a diversidade e embrutecem a linguagem,
ao mesmo tempo que pervertem por dentro a vitalidade democrática. Onde existe
desacordo criador, instalam uma falsa unidade. Onde há diferença, semeiam a
ideia de ameaça. Onde surge divergência, colam o rótulo de traição.
Contra esta apropriação autoritária, torna-se vital lembrar
que a política vive, em permanência, da sua condição inacabada. Não é prisão: é
abertura possível. A democracia é o regime que acolhe essa abertura,
transformando-a em espaço de criação e decisão coletiva. Quem tenta reduzir a
política a uma palavra fechada, homogénea e excludente não defende a sociedade.
Pelo contrário, destrói-a, explorando a sua neutralização ou até a sua anulação.
sábado, setembro 27, 2025
A LIBERDADE TRAÍDA PELO DESEJO
A linguagem nunca é apenas um espelho da realidade. A psicanálise mostra que nela ressoa o desejo, esse motor secreto que nos move sem que dele tenhamos pleno domínio. O sujeito fanfarrão julga falar em nome da sua convicção, mas o seu dizer evita sempre o que não lhe convém. É nesse intervalo - entre o que pensa afirmar e o que recusa deixar ouvir - que se revela a dissonância própria do exercício da liberdade.
Todos sabemos que não há liberdade que não seja atravessada
por equívocos, deslizamentos e restos de desejo. A convicção de ser livre
confunde-se, assim, com a marca inconsciente de sermos falados pela língua que
nos constitui.
Nos tempos que correm, a retórica da direita radical
veste-se de convicção, mas encobre a sua falsidade: entre a convicção e o
equívoco, a sombra do desejo afunda-se na petulância de um discurso que trai,
em nome da democracia, a própria ideia de liberdade. A convicção simulada,
entranhada na incoerência, busca apenas ecos de um humano desatento, embora
legítimo. Cuidemos, então, dos nossos verdadeiros desejos…
quarta-feira, setembro 24, 2025
CARTOGRAFIA DA INCERTEZA
O meu tempo de leitura, atento ao interesse que deposito no pensamento, procura-se através da compreensão dos fenómenos e dos estudos sociais e culturais a eles aplicados e, naturalmente, entre eles relacionados. Sinto, progressivamente, que me atrai uma metodologia que não promete o domínio do real nem a completude do saber, mas que se unifica no inacabado através da força crítica que emerge do diálogo entre diferentes campos de conhecimento. Considero que a complexidade do presente não se reduz a um discurso único, mas antes exige o encontro de representações, disciplinas e olhares. É neste espaço de estudo, leitura e escrita que me vou situando e entretendo: não para propor verdades acabadas, mas para interpelar os modos como pensamos, sentimos e nos estruturamos enquanto sociedade. Em síntese, um exercício de participação crítica no entendimento do presente.
sábado, setembro 20, 2025
UMA EVIDÊNCIA DA FALTA
O sujeito não é aquilo que, quase sempre, supomos ser. Não
nos envolvemos na vida social acabados, com uma identidade concluída, unificada
e coerente. O nosso papel relacional não se define apenas na troca de ideias
com os outros. O sujeito é sempre dividido, atravessado pela falta. Identidades
genuínas ou seguras não existem: estão sempre em construção, nutridas de
contradições intrínsecas.
O sujeito apresenta-se, sempre, dentro da linguagem, da
cultura e da tradição, nunca fora delas. A palavra, a posição e a
representação estabilizam-no e fixam-no na rede do social. O significante
representa aí um sujeito para outro significante. O sujeito mostra-se,
portanto, como consequência do que as coisas significam. Do mesmo modo, os
protagonistas coletivos existem porque se organizam em torno de símbolos,
discursos e opiniões.
Ao entrar na ordem simbólica, o sujeito reconhece que não
pode ser tudo nem ter tudo. Daí a procura necessária de reservas múltiplas e
imaginárias. A psicanálise ensina que é justamente da perda que nasce a
exuberância da estrutura do desejo. Perante a falta, a identidade desponta e
atreve-se a conviver com ela. Os atores coletivos encontram aqui o seu papel:
sustentam-se em fantasias e sublimidades que, embora exíguas, mantêm o
movimento.
quarta-feira, setembro 17, 2025
PARA UMA CULTURA DE INCITAÇÃO AO COMUM
Neste mundo de narcisismo generalizado, a divergência não
frutifica – e muito menos orienta – a luta contra o poder. Incentiva, isso sim,
a apatia, a impotência e a indiferença.
O ser humano não nasce sujeito: vai-se fazendo, passo a passo, no delicado trabalho de dar forma à força bruta da pulsão em um desejo que se possa futurar. A pulsão é sinónimo de ímpeto, fogo sem direção. O desejo, pelo contrário, exige um rosto, um objeto, um alvo, ainda que parcial e fugidio. Todavia, essa mudança só acontece quando o que distintamente sentimos se deixa inscrever na palavra, no símbolo, na consonância social e política que nos antecede.
Entre o que pulsa em nós e o que podemos dizer ou desejar abre-se um caminho nem sempre claro. Nele, o sujeito aprende a deslocar a sua vitalidade, invertendo um sentimento no seu contrário, voltando contra si a agressividade que não ousa lançar ao mundo e empurrando para as sombras do inconsciente aquilo que não pode admitir. Melhor, ou seja, elevar a pulsão à dignidade da sublimação, fazendo dela arte, ciência, criação, militância. É nesse jogo de desvios, recalcamentos e reinvenções que cada um se vai cinzelando da matéria dura da vida.
Mais que certo, o dito “eu” nunca se faz, e fará, sozinho. O que em nós reside procura sempre um outro lugar para pousar, seja um mestre, um amigo, uma causa, um líder, uma comunidade. É o movimento da deslocação, desse lançar de afetos e imaginações para além de nós, que entrelaça as relações e nos aproxima a outros ou mesmo a inerentes coletivos. Assim, os desejos íntimos encontram eco e forma na cena humana, e o que era apenas impulso solitário torna-se avizinhamento, pertença e ação que, com outros, alcança.
segunda-feira, setembro 15, 2025
A AMIZADE, ENTRE A PALAVRA E A VERDADE
Um amigo, um real amigo, não é um Outro. A palavra nem sempre é genuína ao encontrar-se com um Outro, não com ele, o amigo. A amizade, nestas circunstâncias, tudo faz para não se expor dividida. O não-sentido precipitadamente escapa assim à consciência constituindo-se numa brevidade do poder do instintivo. Os significantes chamados a dar sentido falham e são substituídos sem fim. Os propósitos não encontram, então, respostas convincentes. Facilmente se invade o domínio da fantasia conjugando o imaginário e o simbólico. Nela, na fantasia, colhemos representações e imagens que imaginam a história propriamente possível. Todavia, insuficientes para encontrar o centro, a origem e a essência da verdade.
sábado, setembro 13, 2025
O MERCADO COMO PALCO DO HUMANO
O nosso tempo está condenado a contradições profundas. Nunca
houve tantos fluxos culturais, tantas supostas compensações entre povos, tantas
representações em distribuição. Contudo, nunca o decurso cultural esteve tão
colonizado pelo regular encadeamento do consumo. Aquilo que poderia ser edificante
encontro criador e diálogo de diferenças torna-se, sob a soberania do capital
global, mercadoria uniformizada, pronta a ser comprada.
O consumismo capitalista não apenas apresenta, quiçá,
utilizáveis proveitos. Vai bem mais longe, presenteando modos de vida, modelos
de desejo, representações de identidade. A cultura, que em si poderia ser defesa,
memória, inspiração ou herança, é tomada como simples matéria. O espetáculo toma
o lugar do pensamento, a imagem espezinha a palavra e o valor de troca impede a
respiração do valor simbólico.
Assim sendo, as identidades nacionais e culturais não se
retiram por si mesmas; são metamorfoseadas porque se demudam em matéria-prima
para o mercado. Tornam-se marcas, slogans, simples atrativos ou clichés
publicitários. O sujeito, ao contrário de se pensar livre e criador, é intimado
como cliente vitalício, aquele que “é” apenas medida que compra, consome,
exibe.
sexta-feira, setembro 12, 2025
PATRIOTISMO COM BOLOR
Nada de raças: chamam-lhe pátria, cultura e tradição. A manha enrola-se na intolerância, entrelaçando hinos e bandeiras, fardas e fronteiras. O racismo silencia-se deslizando na dolência da nacionalidade, do patriotismo e da exaltação dos seus pátrios valores. A reprovação ganha terreno sob o nome de amor à pátria, mascarando o ódio e disfarçando-o no abrigo da honrosa cultura. Mas o artifício finório depressa se torna cristalino no traçado das suas linhas: dentro e fora, os que merecem e os que permanecem estranhos. Quando a “nação unificada” se ergue, é sempre para expulsar, excluir e marcar os que não cabem no retrato. Velha doença, novo uniforme. O racismo veste-se de bandeira e canta hinos. Expulsa, exclui, divide. E o obsceno capitalismo? Esse, claro, manter-se-á afinal silencioso, pois esse ódio chegar-lhe-á a ajustar convenientemente a conta.
quarta-feira, setembro 10, 2025
PALAVRAS HERDADAS, SENTIDOS EMPRESTADOS
Cada dito que utilizamos é, assim e em certo sentido,
emprestadado. Recebemos palavras como se herdássemos mobília antiga, já usada, marcada
e impregnada de significados que não escolhemos. E ao mesmo tempo, é com esses
materiais que procuramos arquitetar algo de novo, tais como pequenos refúgios,
deslocações ou alterações que elucidem gretas dentro do já-dito.
O descentramento daí se revela, pois não falamos de um “eu”
soberano, mas sim de uma circunstância trespassada por códigos, convenções e teorias
culturais. O que julgamos original não passa de um arranjo no interior do dilatado
repertório que a língua nos torna disponível.
E é nessa língua emprestada que habita tanto a nossa delimitação
quanto a nossa oportunidade. As palavras não sendo nossas, é no seu uso que
podemos com elas inventar novos modos de pensar, viver e intervir, mudando
identidades. Podemos tagarelar sempre com palavras dos outros, ainda assim a
ousadia medra em como as disciplinamos.
terça-feira, setembro 09, 2025
IDENTIDADE: ENTRE O SER E O REINVENTAR-SE
Entre a fragmentação e a pertença, pensar quem somos
neste tempo instável
Ao ler Stuart Hall em A Identidade Cultural na
Pós-Modernidade, vou encontrando mais do que uma observação académica. O
que me vai seduzindo é a oportunidade de encarar a identidade não como uma
fatalidade definida, mas como uma construção em movimento. Hall mostra que o
sujeito moderno, outrora imaginado como único, racional e coerente, divide-se e
reinventa-se no mundo contemporâneo. Essa transição da identidade enquanto
essência para a identidade como processo restitui-me uma interrogação íntima: quem
somos nós, afinal, quando o chão da certeza se desvanece?
A sua resposta não é uma convenção social, mas sim uma
descoberta: somos feitos de narrativas, de pertenças, de diálogos e também de
interrupções e quebras. O “eu” não está fechado numa resiliência imutável, mas
abre-se ao jogo das relações sociais, dos discursos que nos atravessam e das
mudanças do tempo histórico. Essas ruturas, que à primeira vista podem parecer
perda, revelam-se, afinal, oportunidades. Se já não podemos ser definidos por
uma unidade inteiriçada, podemos ser múltiplos, mudáveis e abertos.
Neste mundo globalizado, onde as culturas se cruzam, onde as
fronteiras se esbatem e ao mesmo tempo se erguem com violência, a identidade
tornou-se um campo de batalha. Nela se joga tanto o poder de impor narrativas
dominantes como a resistência dos que não aceitam ser reduzidos ao silêncio. A
identidade é, hoje, linguagem de conflito e também de reconhecimento. Das
contendas de género às de etnia, das lutas locais às redes sociais globais, não
há arena onde ela não se manifeste.
quarta-feira, setembro 03, 2025
NO CLARÃO DA RUÍNA, O SONHO DA LIBERDADE
Quando o cinzento se ilumina pelo fogo da destruição, nasce o desejo secreto de outro mundo.
Neste tempo cinzento, regressivo e sem vitalidade, não vejo
a catástrofe como a última festa do eu. Apesar da interdição súbita de um tempo
vital, a cor, a paixão e o calor não se perderam por completo. A vida nunca
deixa de se celebrar lutando. Até o fracasso, arquitetado inconscientemente,
transforma-se em ocasião para sentir de novo o real.
O cinzento sonha com cores que regressam apenas no clarão da
ruína. A festa última acende-se inevitavelmente no fogo da destruição.
Comunidades, inconscientes entre luto e festa, acabam por desejar em segredo
esse fim desastroso, como único caminho para reencontrar emoções que o habitual
afoga. Incapazes de festejar ou reagir a tempo, resta-nos a espera fácil pelo
desprezo - esse artifício gratuito onde todos podem gritar, chorar e aplaudir
sem arrependimentos.
Não me sinto historiador, mas aproximo-me da ideia de José
Saramago, imaginando-me criador atrevido de outro mundo, capaz de distinguir um
passado dividido e separar o que importa do que não merece atenção. Só assim
poderia vislumbrar onde se situará o mundo habitável.
Como escreve Carlos Nogueira, a “ideia saramaguiana não
existe fora de cada um de nós e fora das coisas; existe dentro de cada pessoa,
e é aí que se desenvolve e se materializa em atos e coisas”. O mundo ideal de
Saramago, mesmo que inalcançável, inclui uma moral digna de uma conduta em que
o material e o espiritual se estruturam através do ideal da liberdade.
Nota final
Este texto nasceu da inquietação perante o presente: um
tempo marcado pelo desencanto, pelo peso das rotinas e pela sensação de que a
vida perdeu a sua força criadora. O recurso à catástrofe não é desejo mórbido,
mas metáfora do limite: só quando tudo ameaça ruir é que se revela o que ainda
pode ser salvo.
A ruína, paradoxalmente, torna-se ocasião de despertar.
Foi neste ponto que encontrei em Saramago uma inspiração: a capacidade de
imaginar outros mundos, de desconfiar do óbvio, de procurar a justiça mesmo
quando parece inalcançável. Aproximar-me dele é procurar também uma ética
mínima - onde material e espiritual não
se oponham, mas se organizem na busca da liberdade.
Se estas linhas emergem da angústia, emergem também do
desejo: desejo de não deixar que o cinzento mate a esperança, e de afirmar que
o humano só se realiza quando se abre ao sonho da liberdade.
O SER DO SELF TOTALITÁRIO
Eis que chega a grandeza suprema: a humanidade, perdida entre dúvidas inúteis e desejos ridículos, finalmente se ajoelha perante o SELF PURO E ABSOLUTO.
A espontaneidade faz-se crime. A privacidade torna-se luxo burguês. A
pluralidade, como é óbvio, reduz-se a achincalhe do UNO digno.
O GRANDE EU vê tudo. Tudo mesmo. Um suspiro fora de hora. Um
riso traiçoeiro. Uma fantasia desalinhada. Tudo vai para a lixeira crítica da pátria. A ordem
não tolera atrevimentos. A ordem não suporta sequer entusiasmos.
Curioso, não? Tanta mestria exige vigilância. O TODO treme
diante da meiguice. O ABSOLUTO assusta-se com o menor defeito. Herói frágil?
Poder fragilíssimo.
O riso será sempre proibido. Se insiste, resta-lhe a
clandestinidade: bicha-se nas sombras da alma, ali onde o SELF SUPREMO ainda
não instalou as suas câmaras.
Cada gesto é fiscalizado. Cada emoção, medida. Cada
pensamento, incessantemente vigiado. O SELF TOTALITÁRIO: divino, absoluto, mas
ridiculamente temeroso do humano.
quarta-feira, agosto 27, 2025
SIM, SIM! A COERÇÃO DAS CONDIÇÕES SOCIAIS
Prolongo, com toda a satisfação, a leitura de Porque sou COMUNISTA, de Pedro Tadeu. Aqui sublinho, em particular, a afirmação de que “os heróis e os vilões podem existir, é claro, mas são consequência e não causa”, pois encontro nela algo que me ajuda a compreender melhor o fundamento do chamado materialismo histórico. O que aqui se exprime, assim deduzo, é a ideia de que a história não se reduz a sujeitos isolados, mas sim à disputa permanente das contradições sociais e das lutas de classes. Os protagonistas podem destacar-se, mas o seu papel ganha sentido apenas nas entranhas das condições materiais e sociais mais vastas, que lhes entregam a possibilidade de agir ou de se impor.
Esta perspetiva tem, para mim, algo de essencial: retira
peso à tendência - tão comum, aliás - de reduzir a explicação da história a
responsáveis ou a libertadores, submetendo à consideração um olhar mais total,
evidente e realista. Relembre-se que Napoleão não criou sozinho o Império,
Salazar não inventou o Estado Novo, assim como as figuras que admiramos só
emergem porque há, atrás delas, lutas e aspirações coletivas que exigem a sua
presença.
Não pretendo, porém, negar de todo o relevo da ação
individual, pois o materialismo histórico não é um determinismo cego. O que ele
revela é que a força dos indivíduos depende sempre da rede de contradições e
forças sociais em que se apoiam e atuam. É nesse entrelaçado que alcançam
eficiência e poder ou, pelo contrário, se tornam inofensivos.
Por isso, convence-me a exposição de Pedro Tadeu ao deslocar
o foco da culpa ou da glória pessoal para as estruturas sociais, relembrando
que compreender a história é apreender as forças que a moldaram e continuam a
representar o nosso presente. É, pois, claramente através dessa interpretação
que se vai descobrindo e encontrando um olhar mais sereno e esclarecedor, ou
seja, um olhar que não se perde em vilões e heróis, mas se orienta na alteração
das condições que os tornam possíveis. Em síntese: um olhar diferente, que nos
compromete com a verdade do real.
terça-feira, agosto 26, 2025
A NOBREZA ATREVIDA DE PEDRO TADEU
Portugal tornou-se, penso eu, um país onde a “isenção
jornalística” é a maior das ficções. Comentaristas que se repetem de canal em
canal como papagaios de cartilha, notícias cozinhadas à medida do patrão e uma
neutralidade tão casta que só serve para proteger os fortes e calar os fracos.
Eis o jornalismo conservador que temos: obediente, previsível e com o brilho
crítico de um apagador de quadros.
No entanto, eis que surge Pedro Tadeu, sem cobardias,
incómodo, assumido, comunista. No seu livro Porque sou COMUNISTA,
relembra o óbvio que todos fingem ignorar: não existe jornalista neutro. A
neutralidade é apenas a ideologia dominante disfarçada de batina branca. Fingir
que se olha o mundo sem ideologia é o truque, talvez, mais gasto da propaganda.
O que pode existir, mas que raramente vemos, é
independência: a coragem de reconhecer as próprias lentes e, ainda assim,
procurar uma verdade que não seja apenas a fotocópia do discurso oficial.
Utopia? Talvez. Mas sem utopias a profissão não passa de boneco articulado.
A opinião não é notícia, nem reportagem, nem análise. Mas em
Portugal tornou-se tudo ao mesmo tempo, ou, mais claramente, um circo onde o
comentador faz de repórter, o repórter faz de moralista e o moralista faz de
cão de guarda do patrão.
Pedro Tadeu, pelo contrário, não se esconde. Assume o que
pensa, expõe as suas convicções e, sem medos nem receios, é aí que exprime a
sua verdadeira liberdade. Muitos outros, pelo contrário, vão-se ajoelhando
perante a fábula da isenção, enquanto Pedro Tadeu mostra que a ética não é
afastamento de ideias, mas sim clareza, coragem e rigor.
Neste tempo em que grande parte do jornalismo português se tornou caixa de ressonância do conservadorismo, confundindo ponderação com cobardia e imparcialidade com sabujice, Pedro Tadeu torna-se uma raridade: não mais uma voz que dá relevo ao poder, mas uma voz que, certamente, o incomoda e desassossega.
O INCONSCIENTE E AS NOSSAS IDIOTICES
Todos temos problemas, mas não é mau insistirmos em tê-los: uns inevitáveis, outros necessários, alguns até fecundos, pois forçam-nos a crescer. Mas há também contratempos insólitos, aqueles que não nos acontecem, mas que persistimos em cultivar. Curiosamente, viver parece exigir essa estranha necessidade de complicar a própria verdade. No entanto, o valor humano da simplicidade continua a ser uma lição esquecida: viver pode ser, também, aprender a clarear o que complicamos, a deixar que a vida seja menos intrincada do que a nossa mente deseja.
O nervo da psicanálise, todavia, avisa-nos de que tais
achados não são, de todo, indiferentes. Essas criações assinalam a persistência
do inconsciente em nos prender naquilo que não compreendemos de nós mesmos.
Assim, o estorvo imaginado não é mera idiotice, mas antes a encenação de uma
disputa íntima que busca juntar o hábil artifício com o encenado jogo do desejo
e do medo. Reconhecer este vício de jogar pode ser, evidentemente, o primeiro
passo para regenerar a tolice em consciência, procurando, tanto quanto
possível, dar-lhe um sentido mais enraizado.
É bom entendermos que muitos dos nossos problemas são
inventados, fruto dessa estranha e imbecil necessidade de complicar. E talvez a
grande sabedoria resida, afinal, em reaprendermos a simplicidade, não a do
simplismo ingénuo, mas a da clareza que nos devolve ao essencial.
domingo, agosto 24, 2025
NÃO DEITEMOS FORA O BEBÉ COM A ÁGUA DO BANHO
Pedro Tadeu, no seu livro Porque sou COMUNISTA, toca
numa ferida incómoda: a esquerda, com as suas melhores intenções, tropeça
frequentemente nos próprios pés. O wokismo é o exemplo acabado disso. Quer
abolir todas as marginalizações, e quem ousaria levantar-se contra tal
desígnio? O problema começa quando a boa intenção se transforma em catecismo e
a política em sermão.
O “politicamente correto”, em vez de abrir horizontes,
constrói trincheiras. Em vez de libertar a conversa, instala um clima de
julgamento moral onde cada palavra é suspeita e cada silêncio cúmplice.
Resultado? A esquerda deixa de ser força crítica e passa a caricatura de si
mesma. E, ironia suprema, quem esfrega as mãos de contente é a extrema-direita:
apresenta-se como “defensora da liberdade de expressão”, enquanto, com
desfaçatez, espalha medo e rancor com eficácia de mercado.
O erro mais grave é confundir a exceção com a regra, o caso
com a causa. Uma injustiça, seja real, pungente ou legítima, não deve ser
confundida com o todo da luta política. Quando a esquerda se deixa arrastar
pela ocorrência particular, afasta-se do núcleo duro, ou seja, das estruturas
que sustentam as verdadeiras opressões.
Daí a advertência certeira de Pedro Tadeu; não deitemos fora
o bebé com a água do banho. O combate às discriminações é inegociável, sempre.
Mas se for conduzido como ritual wokista, em vez de prática emancipadora, o
efeito é perverso; mais uma chupeta para o conservadorismo se entreter e, pior
ainda, mais munições para as direitas radicais, sempre bem nutridas e ávidas de
pretextos.
Eis a ironia amarga: os que sonham libertar-nos de todas as correntes podem acabar, sem o perceber, a reforçar as velhas algemas.
sábado, agosto 23, 2025
PEDRO TADEU E O IMPULSO DO COMUM
Comecei a leitura do livro de Pedro Tadeu, Porque sou COMUNISTA, e não podia deixar de revelar o entusiasmo que este achado me vem despertando. O autor, conhecido pela sua militância e pela clareza da sua voz pública, afirma sem embaraço a atualidade do comunismo - fá-lo com uma lucidez que desfaz preconceitos e com uma sinceridade que acende esperanças.
O que mais me impressiona nestas primeiras páginas é a
relação profunda que ele estabelece entre o comum e o comunismo.
O comum - aquilo que nos pertence a todos: a dignidade, a justiça, os recursos,
a solidariedade - não é apenas um conceito abstrato e distante, mas o
fundamento de uma vida que se quer partilhada, liberta da lógica da
privatização e do mercado total. Nesse horizonte, o comunismo surge como a
política do comum, a afirmação de que não nos basta viver isoladamente;
precisamos de construir juntos, de resistir à desigualdade, de defender o que é
de todos.
Pedro Tadeu escreve não como quem repete fórmulas feitas do
passado, mas como quem afirma que o comunismo é uma necessidade do presente. A
sua palavra ressoa, ao mesmo tempo, como memória e como futuro. E eu, leitor
atento, não posso deixar de me sentir, desde já, envolvido. Ler este livro é
reencontrar a força de uma ideia que insiste em não morrer, porque é
inseparável daquilo que nos torna verdadeiramente humanos - o comum.
Falo, pois, de um comum que não limita a liberdade, mas a enobrece; de um comum que vive da liberdade e da sua grandeza; em síntese, de um comum que engrandece a liberdade.
quinta-feira, agosto 21, 2025
ENTRELAÇOS
Folheando frases feitas de António Coimbra de Matos, de título Se me implico, transformo, ele escreve: “O homem é um animal social, relacional. Produto da relação, o seu destino cumpre-se na relação. Nasce da relação, vive para a relação e na relação." Antes de meditar sobre o achado, logo pensei: nasci da relação, dela sou enlace e transição e, num outro, me encontro. Em encontros que me deslocam, o eu se vai sujeitando e, no seu envolvimento, me comprometo. Desta forma, no encontro me transformei, no crescer me impliquei e nesse envolvente contínuo me transformo, afinal, e no meu ser assim vivendo.
Em resumo: vejo-me nascido da relação, medrado na relação e habitando a relação. No olhar do outro, sou. No gesto do outro, mudo. No encontro, aconteço. Relação é origem, é destino, e permanece, afinal, o caminho dos entrelaços.
terça-feira, agosto 19, 2025
ENTRE O SILÊNCIO E A VIDA
A felicidade não se compra, nem se exibe, cultiva-se. O que o consumo chama felicidade é apenas montra, o que a vida chama felicidade não passa de um silêncio que em nós habita. A felicidade é menos um fim do que um repouso atuante, uma serenidade que se enriquece nos interlúdios e não se alimenta dos proveitos das esperanças efémeras. Não há uma felicidade universal. Ela é sempre singular, florescendo no enlace das relações. Ser feliz não é imitar alegorias abastadas, mas resistir à sedução fácil delas. O assombro quer que a felicidade se divulgue; a vida, porém, exige que ela se viva. A cultura da felicidade não dispensa o ato ético, ou seja, cuidar de si sem se perder no reflexo dos outros. A felicidade é uma resistência discreta, não imitando imagens, mas florescendo no intervalo do vivido. Contra o mostruário do mundo, não escapa ao exercício ético do silêncio. Ser feliz não é mostrar-se, mas tornar-se capaz de se habitar. Em síntese, cultivar a felicidade é menos buscar um objeto do que exercitar uma relação viva consigo mesmo, com os outros e com o mundo, isto é, uma relação que resiste a ser convertida em presunçosa imagem ou mesmo numa ridícula e enganosa mercadoria.
ENTRE MÁSCARAS E ESPELHOS
As nossas imagens sociais deslizam facilmente para a caricatura, numa obstinada tentativa de imitação sem brilho. Ao mascarar representações, aproximamo-nos do lúdico e, em silêncio, competimos, embora a farsa se repita até à resignação. No regresso a casa, arrumamos em silêncio a impostura que mostramos ao olhar do outro. A diversidade de perspetivas, longe de libertar, transforma-se em fardo, num eu despedaçado, exposto num mostruário de aceitação.
Nem sempre nos levámos a sério. Presos às nossas exigentes
imitações, tornámo-nos caricaturas de nós mesmos. O burlesco embala a nossa
dignidade, preparando-nos para a pose na fotografia. E não há problema, porque
a imagem social converte-se numa dissimulação tão sedutora que todos fingem
acreditar nela. O eu público encontra-se sempre numa pantomina coletiva, ou
seja, cada um representa, todos se elogiam, ninguém se embaraça. O outro
olha-nos com espanto, e nós devolvemos o papel com um sorriso bem ensaiado.
O ridículo, pouco a pouco, assim se fez uma segunda pele.
Sem percebermos, tornámo-nos máscaras burlescas, sem pudor e sem decoro. A
caricatura é já o retrato oficial da sociedade. Ninguém foge ao espelho, apenas
se esconde da vergonha. O eu social não pensa, limita-se a exibir-se, afetado e
presunçoso. Rir dos outros dá prazer, mas esquecemo-nos de que nos
representamos, também, sempre de mal a pior.
A conclusão é simples: a vergonha morreu, e só resta o
espetáculo. A caricatura é hoje o retrato fiel de uma comunidade que corrompeu
a própria vergonha. Vivemos de máscaras porque tememos a nudez do olhar, pois o
ridículo deixou de ser exceção, tornou-se identidade. Assim sendo, a sociedade
do grotesco rodopia entre máscaras e espelhos fantasiando essa outra segunda pele do Eu. A ilusão cumpre, então, a sua habilidosa função de proteger o nosso desespero do vazio neste ridículo modo de vida.
sábado, agosto 16, 2025
A ALEGRIA SERENA DO SILÊNCIO
Dou comigo, continuadamente, a ler, servindo-me da meditação
que nasce desse precioso lugar do silêncio, que me conduz à vida humana, tanto
pessoal como coletiva. A experiência tem-se mostrado positiva, sem restrições, descerrando
interioridades, considerações, interseções e, por vezes, novas interpretações. O
silêncio tem-me proporcionado distanciamento, favorecendo o pensamento, o
encontro comigo próprio e com o que me ultrapassa.
Só, e em silêncio, vou escapando ao excesso do ruído, da
informação e da desatenção. O silêncio apresenta-se sempre como resistência, permitindo-me recuperar a
particularidade da concentração e da profundidade da vivência. O silêncio,
hoje, nunca me faz só, bem pelo contrário, pois aprendi que me dá consistência
e tempo para uma veracidade mais humana. Trata-se, pois, de um convite
existencial, ao semear o quotidiano para recriar a calma, a criatividade e a
liberdade interior. Sinto hoje o silêncio assim como um espaço vital para o
pensamento, sensibilidade e espiritualidade, em polifonia com este tempo
saturado de ruídos e alvoroços.
O silêncio não é ausência, mas um princípio. É nele que reencontro os traços da vida ativa que me moldaram, agora aperfeiçoados, vistos à distância que ilumina. O passado já não me pesa, repercute-me, comovido, nos descansos que escolho viver. Ao desfolhar o tempo, compreendo que o silêncio é a moldura que dá sentido às minhas palavras e às ações de outrora. Longe do ruído, descubro que pensar é dar vida ao tempo. Cada leitura torna-se, assim, renascimento, cada ideia um fruto silencioso que amadurece no presente. Não é desistência, mas entusiasmo sereno, lado a lado, com uma alegria que cresce sem precisar de se sobrepor.
APENAS EXPONHO A SIMPLICIDADE
Sim, insisto, a simplicidade não é pobreza. A simplicidade de que falo é uma liberdade diante do excesso que escraviza. Não é, também, negação da complexidade humana, mas sim clareza contra o equívoco inventado neste mundo, e neste tempo, que transforma o consumo em dogma e a simplicidade em resistência. Sim, neste mundo e neste tempo em que o acúmulo de uns se empertiga sobre a miséria de muitos e a simplicidade se mostra justiça. Sim, nesta Terra consumida pela sovinice do lucro e a simplicidade se torna condição de sobrevivência. Daí, a simplicidade reverte-se em ética porque se liberta do supérfluo, a estética revela o belo no essencial e a política abre espaço ao comum, ao justo e ao partilhado. Defender a simplicidade é recusar a mentira do ilimitado, é devolver dignidade ao humano, clareza ao viver e autenticidade à cultura. É fundar um outro horizonte, onde o poder não se mede pelo excesso, mas sim pela justa e salutar medida.
quinta-feira, agosto 14, 2025
MONTENEGRO ABRAÇA OS PATRÕES, VIRANDO COSTAS AOS TRABALHADORES
Eugénio Rosa denuncia, num dos seus múltiplos e atuais estudos, que as alterações ao Código do Trabalho propostas pelo governo aumentam a precariedade, enfraquecem os sindicatos e favorecem os patrões. Contratos temporários, intermitentes, que a termo deixam o trabalhador sem estabilidade nem poder de compra, afetando também a economia pela redução do consumo e pelo incentivo à emigração de mão-de-obra qualificada.
A chamada “flexibilidade” esconde abusos, tais como, banco de horas sem remuneração justa, renúncia forçada a direitos e imposição de condições mais duras. O enfraquecimento das negociações coletivas e o alargamento dos serviços mínimos reduzem a capacidade de luta sindical, desequilibrando ainda mais a relação entre capital e trabalho.
Eugénio Rosa sublinha, e bem, que o papel do Estado deveria
ser o de proteger quem vive do trabalho, garantindo segurança, estabilidade e
dignidade, e não o de facilitar a exploração e aprofundar a desigualdade
social. Em síntese, dir-se-ia que a equipendência em Montenegro encontra-se na flexibilidade com que mimoseia os patrões e no avesso enquanto quinhão com que esmola quem trabalha. Todavia, uns outros vão-se "acon...chegando".
segunda-feira, agosto 11, 2025
ENQUANTO PENSO, ELES COBRAM
Não sou das certezas filosóficas, mas sei que, nos seus
primeiros escritos, Marx já estava a romper com Hegel. Enquanto Hegel tratava
as categorias sociais e económicas como expressões de conceitos filosóficos,
Marx fez o inverso: partiu das relações reais - trabalho, propriedade,
alienação - como categorias concretas, historicamente determinadas. Contudo,
Marx ainda escrevia numa linguagem filosófica, o que abriu espaço para uma
confusão duradoura: discutir desigualdade e exploração como se fossem problemas
de ideias e não, sobretudo, problemas materiais.
O resultado é visível ainda hoje. Parte significativa do
debate político perde-se em abstrações - princípios gerais, disputas
ideológicas, “valores” - enquanto as condições concretas de produção,
distribuição e apropriação de riqueza são relegadas para segundo plano. Ao
deslocar o centro da crítica para o campo filosófico, deixa-se intacta a
estrutura económica que sustenta a desigualdade.
Em síntese: trocar a análise da exploração pelo debate de conceitos é oferecer à injustiça a mais confortável das proteções — a de não ser nomeada como tal — deixando-a respirar livremente. Debater abstrações é sempre mais fácil; mudar as condições concretas é que exige luta e trabalho. Eu que o diga — e, por isso mesmo, agradeço ao sindicalismo e a quem o acompanha. A abstração não paga contas, a luta, sim.
domingo, agosto 10, 2025
A IRONIA ENQUANTO MULETA DO CONSERVADORISMO
Ao ler o capítulo “A noite dos mortos-vivos” no livro WOKE FIZEMOS?, senti-me confrontado com uma provocação fundamental para qualquer espírito crítico: como resistir a um escrito que se propõe pronunciar-se sobre questões sociais urgentes, mas o faz de uma forma mordaz que parece mais excluir do que apreciar? Em tempos que não admitem demoras, reduzir a complexidade do humano a meras caricaturas é o primeiro passo para a exclusão e o silêncio.
É indiscutível que a ironia é um expediente literário e
discursivo legítimo, capaz de sinalizar incoerências e desafiar a ponderação.
Contudo, quando esta arroga uma matiz presunçosa e um fraseado encoberto por um
velado conservadorismo, resulta em atravancar o diálogo denso e plural de que
estes temas são dignos. O capítulo, assim sendo, em vez de se abrir ao espaço
de debate e à sua complexidade, limita-se a caricaturá-lo e a reduzi-lo a uma
chacota leviana que apenas reconcentra preconceitos e estigmas.
Mais inquietante ainda é entender que, nesse exagero cómico,
o humano - ou seja, a dignidade, a experiência, a luta concreta de pessoas por
justiça, reconhecimento e igualdade - fica escondido e, como tal, esquecido. A
humanidade, tantas vezes excluída por palavreados ligeiros e simplistas, sofre,
através destas cínicas e fiéis abordagens irónicas, a perda de uma escuta
atenta e compreensiva da sua verdade.
O EU É TARDIO
Acabo de ler António Coimbra de Matos que nos lembra, registando que “A relação está antes da substância.” Logo, o “eu” não é, pois, um ponto de partida, mas um efeito do encontro. Buber, pelo lido, chamou-lhe diálogo, Levinas viu nele responsabilidade, Winnicott fez dele berço do sujeito. O individualismo, teimoso, prefere pensar-se inteiro desde sempre. Todavia, a realidade parece ser outra. Antes de sermos substância, fomos e somos relação e é dela que continuaremos a viver.
sábado, agosto 09, 2025
PENSAR JUNTOS OFENDE O DOGMA
Ao emudecer o humano como universal, inicia-se o pensar pelo fim, ou melhor, pelo remate da partilha, da incerteza radical e da possibilidade de arquitetar um futuro comum. O universal, compreendido não como uma essência rígida, mas como uma construção aberta onde as diferenças se podem reconhecer, torna-se condição essencial para que a estima seja preservada e a interação ganhe corpo. É nele que o “nós” se torna possível sem marginalizar o “eu” e o “tu”. Ao negar essa referência, o pensamento arrisca-se a reduzir-se a fragmentos fechados, incapazes de se interrogar mutuamente. A compreensão do ser que assiste e sustenta este universal não se pode, pois, reter numa qualquer forma predefinida. Pelo contrário, testemunha que ser humano é, acima de tudo e em primeiro lugar, estar em relação, exposto ao outro e ao mundo. É esta abertura partilhada que impede o vazio, esse lugar desnaturado onde jamais haverá espaço para o comum pensar e, portanto, assumir a sua responsabilidade, cultural e não só. O universal jamais se pode calar ao encristado, quiçá este cínico e vigente conservadorismo.
terça-feira, agosto 05, 2025
POR UM MATERIALISMO CRÍTICO, CONTRA ESPANTALHOS E MORALISMOS
No seu texto que faz parte do livro “Woke, Fizemos?”,
Alexandre Franco de Sá tenta uma linhagem filosófica do chamado “wokismo”, vinculando-o
à memória da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt e ao pós-modernismo francês.
A sua leitura torna-se clara, ou seja, o projeto iluminista de razão e
universalidade terá sido corrompido por uma crítica cultural que promove a
própria ruína, que substitui a realidade pela linguagem, a verdade pelo jogo
desconstrutivo e a política por uma afetividade ressentida. Trata-se, no íntimo,
de um apelo ao regresso a uma racionalidade resistente, que desaprova o que vê
como estilhaçamento moral, identitário e cultural.
Como materialista, essa posição impulsiona-me não só à
desconfiança como também ao exercício do entendimento. Não vejo a crítica como um
desvio culturalista da política, mas sim uma realização concreta da política em
procedimento. Não se trata de pôr a salvo o "woke", seja isso o que
for, mas, isso sim, de não ceder ao impulso restaurador que transforma a
crítica social numa ameaça civilizacional.
A Teoria Crítica, e nisto a tradição marxista-lacaniana de
Slavoj Žižek é essencial, não se desliga à razão, mas interpela a sua função
histórica. Censura a razão aparelhada, domesticada pela lógica do capital, pelo
seu cálculo e consumo. Não se trata, pois, de renunciar a razão, mas de a
libertar do seu aprisionamento tecnocrático. A crítica cultural não pode ser
vista como um luxo académico, mas sim como uma forma de tornar claro os
engenhos de dominação simbólica que estruturam o quotidiano e o desejo.
sábado, agosto 02, 2025
CHEGA DE INSOLÊNCIA E TEATRO DE OUSADIA
Vivemos um tempo curioso, ainda que profundamente indesejável. A extrema-direita ergue a voz como se fosse a única capaz de nomear o desassossego do mundo presente. Assinala, com afetação, uma sociedade que terá aniquilado o destino e onde a palavra “liberdade” se esbate em exortações de palavras de ordem - onde tudo se reduz à superfície das identidades e do consumo.
Acusações que, embora se alimentem de indícios reais, são,
em grande medida, profundamente enganadoras. Não procuram reerguer o sentido da
vida coletiva, mas apenas restaurar uma ordem opressiva - e perpetuamente
ilusória - onde a dignidade humana é privilégio de poucos.
O problema que vivemos não se resume a um confronto cultural
entre progressistas e conservadores. Trata-se de algo bem mais intricado: a
perda da densidade ética da vida social, substituída pela lógica do consumo, do
desempenho e da mercadorização generalizada. A extrema-direita, com o seu
discurso inflamado contra o chamado "wokismo", procura capturar o
desagrado popular. Mas fá-lo não para romper com este sistema perverso - pelo
contrário, pretende intensificá-lo. Ambiciona um capitalismo mais autoritário,
mais cínico, mais desigual. Oferece à crise da liberdade uma caricatura de
ordem, e ao vazio da política, uma estética de violência e identidade.
quarta-feira, julho 30, 2025
NOTAS SOBRE O CAOS (3)
"A arte de viver é, dizia Quintana, a arte de conviver. Simplesmente …" , disse ele. Simplesmente.
Mas o que é hoje conviver? É gritar ao lado de alguém que ouve música sem
auscultadores no metro? É atravessar a rua sem ser atropelado por um zombie
digital? É tentar manter uma conversa com quem sonda o telemóvel entre cada
frase?
Conviver é agora um espetáculo de mal-entendidos sincronizados, cada um afogado
no seu feed, perdido entre memes, fúrias instantâneas e vídeos de gatos que nos
explicam a vida. A arte de viver passou a ser a arte de sobreviver ao caos
suave e pegajoso da distração permanente. Conviver com alguém, hoje, é competir
com o telemóvel pela atenção, e perder sempre. Há quem diga que vivemos
conectados. É falso. Vivemos capturados. Capturados por um dispositivo que nos
promete o mundo inteiro e nos rouba o rosto de quem temos à frente. Simplesmente,
disse Quintana. "Mas como é difícil, Mário. Como é impossível, agora."
terça-feira, julho 29, 2025
DEPOIS DE MATIAS, LEMBRO SARAMAGO
"Há quem tema o 'wokismo' por confundir dignidade
com doutrina e respeito com censura. O problema talvez não esteja no outro, mas
na própria sombra."
José Saramago, algures em Buenos Aires, deixou dito: “A
ética de que eu falo é uma pequena coisa laica, para uso na relação com outros.
Passa pela coisa tão simples como o respeito, nada mais. Portanto, se mais
tarde, pelas circunstâncias, a revolução por fim for necessária, então sim. Mas
deixemos a revolução para mais tarde e comecemos pelas pequenas coisas que
podemos fazer sem revoluções. Essas coisas pequenas podem ter consequências
fortes e intensas como as revoluções, que não duram.”
Há nesta afirmação uma singular sensatez, um equilíbrio raro
entre lucidez e humildade, entre a grande política e a modesta ética do
quotidiano. Saramago restitui à palavra “ética” a sua densidade mais concreta:
a do uso, do gesto, da convivência. Não se trata de uma ética dos ilustres
tratados ou das filosofias perfeitas, mas de uma “pequena coisa laica”, livre
de transcendência, apropriada à natureza do ser humano e das suas relações.
A radicalidade da sua sugestão não está na eloquência das
revoluções futuras, mas na exigência mínima e imperiosa do respeito pelo outro - um respeito que se pratica antes de se anunciar e que se vive antes de se
proclamar. A sua ética é, sem rodeios, anterior à política, pois assenta no
solo mínimo da confiança e da dignidade entre seres humanos.
A RETÓRICA DA SIMPLIFICAÇÃO EM RITA MATIAS
Acabo de ler o texto de Rita Matias, “Como o wokismo colonizou o discurso político”, em “WOKE FIZEMOS?”. Tomando algumas notas, permito-me - com um olhar crítico - fazer algumas observações.
Ponto 1 – Trata-se de uma abordagem que procura reduzir a
complexidade a uma caricatura. Não distingue entre diferentes correntes
progressistas, nem reconhece a diversidade interna do chamado “movimento woke”.
O que procura é fantasiar um inimigo abstrato, equivalente e ubíquo, ou seja,
arquitetar uma estratégia retórica típica do combate cultural.
Ponto 2 – Matias alega que o wokismo colonizou a palavra
política, inviabilizando o debate livre. Ignora, ou tenta silenciar, as causas
e justificações históricas que deram origem às lutas contra o racismo
estrutural, a desigualdade de género, a exclusão colonial e pós-colonial. Trata
essas perturbações como uma doença, escamoteando a problemática das causas
profundas das desigualdades.
Ponto 3 – O wokismo, para a autora, não passa de uma
inversão dos valores civilizacionais ocidentais. O “antirracismo” e o
“feminismo interseccional” são, para ela, não lutas por justiça, mas
ferramentas de opressão ideológica. Trata-se de uma estratégia que procura
camuflar relações de poder efetivas, criando a fantasia de que os privilegiados,
de hoje ou de outro tempo, estariam agora a ser discriminados. Daí a
reivindicação silenciosa do estatuto de vítima por parte dos setores
conservadores da sociedade.
domingo, julho 27, 2025
O INCONSCIENTE POLÍTICO, NÓS E O TEATRO DO MUNDO (3)
O pano de fundo sobrevive, mas algo se aviva. A ideologia não apenas molda o palco, ela promete sobretudo o prazer em habitá-lo. Não é só convicção, é principalmente uso e fruição. Um gozo perverso, como diria Žižek, inspirado em Lacan. Um modo de satisfação que se alimenta da exclusão, que ignora o sofrimento do Outro e encontra prazer precisamente aí, e em si mesma.
A ideologia não nos encaminha pela razão, pois nos
concede algo em compensação. Talvez uma excitação difusa, uma certeza que
deleita, um objeto de gozo que legitima admitir, rejeitar ou até punir. Por
isso se acredita com exaltação, mesmo contra tudo e todos. Não se trata apenas
de ideias, mas de um prazer inconsciente em possuí-las, defendê-las e, se
necessário, impô-las. A ideologia opera como uma gestão libidinal, ou seja,
organiza desejos, alimenta fantasmas, fomenta bodes expiatórios e oferece
narrativas redentoras.
Não falamos aqui de perversão no sentido sexual, mas de um
modo de gozar que se desobriga da empatia. O Outro, seja o migrante, o comuna,
o degenerado ou o politicamente correto, torna-se o reservatório do mal, aquele
cuja marginalização promete conforto. É esse o gozo mesquinho que a ideologia
oferece, ou, por outras palavras, o bem-estar de excluir, o conforto de
obedecer ou, ainda, a segurança de repetir.
A razão, por si só, não desfaz este laço. O inconsciente
político habita precisamente aí, ou seja, nas formas de prazer que sustentam a
crença, nos pequenos gozos que sobrevivem ao argumento. A ideologia goza, e o
seu gozo convida-nos, afinal, a gozar com ela. Não nos aprisiona apenas pela
crença ou coerência lógica, mas sim porque oferece o rebuçado do prazer que mascara
o sofrimento do outro.
sábado, julho 26, 2025
O INCONSCIENTE POLÍTICO, NÓS E O TEATRO DO MUNDO (2)
A cena continua. O pano de fundo resiste, mas o olhar já se
aguça. Se antes nos perguntávamos sobre o teatro do mundo e o papel
inconsciente que nele desempenhamos, agora tornamo-nos mais atentos ao que
sustenta o próprio palco, ou seja, o que dá forma, espessura e coerência à
nossa experiência. Essa força chama-se ideologia. Mas é preciso retirá-la do
lugar comum em que tantas vezes se confina.
A ideologia não é apenas uma coleção de ideias falsas, nem
um discurso manipulador que se impõe de fora. Ela é o próprio tecido onde os
sentidos se entrelaçam e se tornam familiares. Como escreve Terry Eagleton, a
ideologia é uma “trama de significações” que costura o mundo tal como o vivemos,
ou seja, um “tecido de sentido” que não se vê, mas se ressente.
Esse tecido não é feito apenas de palavras. É feito de
hábitos, afetos, gestos, instituições, imagens, lugares comuns, histórias
herdadas. Está nos livros escolares e nos anúncios de perfume. Nos elogios à
meritocracia e no medo de parecer fraco. Está no “bom senso”, mas também
naquilo que sentimos “no corpo”.
O INCONSCIENTE POLÍTICO, NÓS E O TEATRO DO MUNDO (1)
(Nota – Este será o primeiro de uma série de escritos
editados em sequência, cada um procurando desanuviar uma abertura estreita
sobre o real.)
A vida que habitamos não se apresenta apenas; a vida que
invocamos, essa sim, representa-se. O que chamamos “realidade” é já, muitas
vezes, um teatro encenado, onde o desejo se acasala com o medo, o gesto com o
gozo, e a opinião com a obediência.
Partindo do incisivo “fazer frente” de Slavoj Žižek – esse
pensador que põe de fronte o riso e o abismo –, esta série de pequenos textos
desbravará os subtérreos do quotidiano, onde a ideologia se amaneira como
hábito e o inconsciente se exprime como se fôssemos, verdadeiramente, nós.
Textos curtos, possivelmente não leves. Tentativas sucintas, sim, mas não neutras. Assim sendo, o convite é simplesmente este: descer ao palco da vida comum e tentar ver o que se passa nos bastidores. Porque o que está em cena é mais do que parece. Pensar tornar-se-á, talvez, cada vez mais um ato de resistência. Veremos, então.
segunda-feira, julho 21, 2025
NOTAS SOBRE O CAOS (2)
O espetáculo tem vindo a ocupar o lugar da política. O ódio aprendeu a emocionar-se. No entanto, há ainda quem escute os murmúrios no ruído e persista em pensar contra a corrente, com a lucidez e o fulgor dos que não desistem do impossível.
sábado, julho 19, 2025
NOTAS SOBRE O CAOS (1)
A ideia de humanidade não se revela no ruído excessivo das
identidades, onde o diálogo se cala e a cultura se dispersa no caos.
quinta-feira, julho 17, 2025
DESANIMADO COM A RAZÃO, ENSAIO A IDEIA
O pensamento, quando forçado pela violência do vazio, inclina-se à entrega ao desânimo, ou ao devaneio de uma construção que o defenda. Neste entremeio, a passagem do estado bruto da inquietação à formulação de um trio de perguntas, “Qual é a medida de um homem? Que objetivos pode propor-se? Que esperanças lhe são permitidas?”, exprime com precisão essa especulação da consciência: dar uma geometria ao caos ou fantasiar a partir do destroço. Não se trata apenas de racionalizar o mal-estar, mas de reinscrever a existência num campo de possibilidades. A filosofia, enquanto ânimo de aclaração e de rumo, surge aqui como causa primordial, ou seja, como um enérgico gesto de resistência, quiçá, contra coisa nenhuma.
quarta-feira, julho 16, 2025
PENSAR SEM “EU”
Meditar não é apenas sossegar a razão, é, sobretudo,
desativar o ego. Esse ego impaciente que se supõe o âmago da realidade.
Absoluto, necessitado de reconhecimento, arreigado ao medo da perda e à sua
ânsia de ter. Se a ignorância é, como tantas tradições espirituais e
filosóficas sustentam, uma raiz do sofrimento humano, então a meditação
torna-se um caminho de reflexão que busca clarificar essa ignorância, não com a
crédula facilidade da informação, mas sim com o brilho trabalhoso da lucidez.
O ego sempre se nutriu de ilusão, acreditando na imediata
separação entre o "eu" e o "outro", entre o
"interior" e o "exterior", entre o "meu" e o
"teu". Nesse jogo de dualidades, o medo emerge como um aliado fiel - daí
o receio de perder, o pânico de sofrer, o fantasma de não ser suficiente. A
ignorância, neste painel, não é apenas ausência de saber, mas um modelo de
cegueira atuante, recusando-se a ver que o “eu” é uma obra, uma imaginária
criação útil, mas finita e frequentemente repressiva.
É através desta condição que a adesão ao material se torna
prenúncio - algo que não se compreende no absoluto, mas que traz vantagens com
os haveres, com os quais se tenta controlar a segurança. O mundo assim se vai
tornando uma dimensão do ego, um espelho que se obriga a confirmar a sua
relevância, a sua diferença e o seu poder.
terça-feira, julho 15, 2025
CONTRA O PASPALHO DO WOKE
Acabei de ler o texto de Patrícia Fernandes no livro “WOKE FIZEMOS?”. Suportei um fruto teórico e representativo de um sufocante conservadorismo intelectivo. Confrontei-me com um "wokismo" disforme, reduzido à arte e ao cuidado das universidades norte-americanas que, ignorando as complexidades efetivas dos conflitos sociais, se tornou um artificioso embuste. Em vez de se dirigir a relacionar as ideias de forma lógica, coerente e crítica das evoluções culturais, optou por satirizá-las como quem questiona uma tempestade sem agitação temporal. Confunde-se disputa com doutrinação, crítica com ameaça, mudança com declínio. A universidade é tratada como foco de perversão intelectual, quando na verdade é, ou deve ser, um palco de disputas legítimas pelo sentido humano e do comum. Este tipo de texto, incomodado com a dialética dos tempos, não pensa o presente; logo, resta a renegação. Assim, não examina, espelha em caricatura. É um abrigo através do statu quo mascarado de fulgor crítico, onde tudo o que não cabe na matriz tradicional é mostrado como desvario. Mas o mundo renova-se, e o pensamento se quer mostrar-se vivo não pode ficar pela lamúria retrógrada. Muito menos pela caturrice reacionária.
domingo, julho 13, 2025
A IGNORÂNCIA, UMA CAVERNA DOS NOSSOS DIAS
A ignorância já não é falha, tornou-se uma cultura da
habilidade política dos tempos de hoje. Não saber, ou fingir não saber, serve a
quem detém ou procura poder. Como nos alerta Manuel Sans Segarra, a ignorância
é um produto de construções que, sem ruído, nos alienam da razão comum.
Entender o manejo económico, o vocabulário jurídico ou o
teatro do juízo político é hoje um requinte e uma intimação. Por isso, o que
não se explica não é erro, mas, quiçá, um método. E quem habita, perturbado, o
tempo de hoje não se queixa, pois, dos danos, não enxerga as causas. Assim,
tudo persiste misterioso, embora de modo apropriado e indolente.
A cultura política não rompe do acaso; requer plantio,
pensamento e diversidade. Mas o que nos sobra é unicamente ruído. A escola
destaca competições, a comunicação estonteia e o debate engraça-se num teatro
de agitáveis opiniões. A ignorância encena-se, silenciando o saber que
interessa.
Assim sendo, a ignorância facilmente se acomoda, debilitando a democracia ao convertê-la num ritual sem alma - cenário, aliás, ideal para quem não quer ser julgado. Pensar é resistir, saber mais para impedir o projeto da indiferença que nos quer apáticos e inativos. Combater a ignorância torna-se um gesto político essencial e, hoje em especial, talvez o mais urgente e profícuo valor da Liberdade.
