Ao ler o capítulo “A noite dos mortos-vivos” no livro WOKE FIZEMOS?, senti-me confrontado com uma provocação fundamental para qualquer espírito crítico: como resistir a um escrito que se propõe pronunciar-se sobre questões sociais urgentes, mas o faz de uma forma mordaz que parece mais excluir do que apreciar? Em tempos que não admitem demoras, reduzir a complexidade do humano a meras caricaturas é o primeiro passo para a exclusão e o silêncio.
É indiscutível que a ironia é um expediente literário e
discursivo legítimo, capaz de sinalizar incoerências e desafiar a ponderação.
Contudo, quando esta arroga uma matiz presunçosa e um fraseado encoberto por um
velado conservadorismo, resulta em atravancar o diálogo denso e plural de que
estes temas são dignos. O capítulo, assim sendo, em vez de se abrir ao espaço
de debate e à sua complexidade, limita-se a caricaturá-lo e a reduzi-lo a uma
chacota leviana que apenas reconcentra preconceitos e estigmas.
Mais inquietante ainda é entender que, nesse exagero cómico,
o humano - ou seja, a dignidade, a experiência, a luta concreta de pessoas por
justiça, reconhecimento e igualdade - fica escondido e, como tal, esquecido. A
humanidade, tantas vezes excluída por palavreados ligeiros e simplistas, sofre,
através destas cínicas e fiéis abordagens irónicas, a perda de uma escuta
atenta e compreensiva da sua verdade.
Para o leitor atento e sensível, esta atitude não só provoca como distancia, produzindo muros onde seria necessário construir pontes. Ao chamar debates essenciais de “noite dos mortos-vivos”, o texto reduz questões humanas urgentes a uma caricatura grotesca. Em vez de encarar a necessidade de mudança e a complexidade do mundo real, refugia-se no riso sarcástico - um regozijo que protege o conservadorismo e afasta qualquer compromisso genuíno com o humano.
É com esta inquietação que deixo uma incitação para que
futuras reflexões sobre o dito “woke” e os desafios sociais do nosso tempo
superem a ironia redutora e a superficialidade. Que a crítica possa despontar
sempre de um profundo respeito pelo humano - pelas suas dores, esperanças e
aspirações - abrindo caminho a diálogos que honestamente enfrentem a
complexidade do presente, sem excluir ninguém. Só assim a discussão terá
sentido e poderá verdadeiramente contribuir para uma humanidade mais inclusiva
e consciente. Não esqueçamos que, entre a ironia e o desprezo, escurece-se o
que deveria ser o centro do debate, ou seja, a dignidade humana.
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