Quando o cinzento se ilumina pelo fogo da destruição, nasce o desejo secreto de outro mundo.
Neste tempo cinzento, regressivo e sem vitalidade, não vejo
a catástrofe como a última festa do eu. Apesar da interdição súbita de um tempo
vital, a cor, a paixão e o calor não se perderam por completo. A vida nunca
deixa de se celebrar lutando. Até o fracasso, arquitetado inconscientemente,
transforma-se em ocasião para sentir de novo o real.
O cinzento sonha com cores que regressam apenas no clarão da
ruína. A festa última acende-se inevitavelmente no fogo da destruição.
Comunidades, inconscientes entre luto e festa, acabam por desejar em segredo
esse fim desastroso, como único caminho para reencontrar emoções que o habitual
afoga. Incapazes de festejar ou reagir a tempo, resta-nos a espera fácil pelo
desprezo - esse artifício gratuito onde todos podem gritar, chorar e aplaudir
sem arrependimentos.
Não me sinto historiador, mas aproximo-me da ideia de José
Saramago, imaginando-me criador atrevido de outro mundo, capaz de distinguir um
passado dividido e separar o que importa do que não merece atenção. Só assim
poderia vislumbrar onde se situará o mundo habitável.
Como escreve Carlos Nogueira, a “ideia saramaguiana não
existe fora de cada um de nós e fora das coisas; existe dentro de cada pessoa,
e é aí que se desenvolve e se materializa em atos e coisas”. O mundo ideal de
Saramago, mesmo que inalcançável, inclui uma moral digna de uma conduta em que
o material e o espiritual se estruturam através do ideal da liberdade.
Nota final
Este texto nasceu da inquietação perante o presente: um
tempo marcado pelo desencanto, pelo peso das rotinas e pela sensação de que a
vida perdeu a sua força criadora. O recurso à catástrofe não é desejo mórbido,
mas metáfora do limite: só quando tudo ameaça ruir é que se revela o que ainda
pode ser salvo.
A ruína, paradoxalmente, torna-se ocasião de despertar.
Foi neste ponto que encontrei em Saramago uma inspiração: a capacidade de
imaginar outros mundos, de desconfiar do óbvio, de procurar a justiça mesmo
quando parece inalcançável. Aproximar-me dele é procurar também uma ética
mínima - onde material e espiritual não
se oponham, mas se organizem na busca da liberdade.
Se estas linhas emergem da angústia, emergem também do
desejo: desejo de não deixar que o cinzento mate a esperança, e de afirmar que
o humano só se realiza quando se abre ao sonho da liberdade.
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