quarta-feira, setembro 03, 2025

NO CLARÃO DA RUÍNA, O SONHO DA LIBERDADE

Quando o cinzento se ilumina pelo fogo da destruição, nasce o desejo secreto de outro mundo.

Neste tempo cinzento, regressivo e sem vitalidade, não vejo a catástrofe como a última festa do eu. Apesar da interdição súbita de um tempo vital, a cor, a paixão e o calor não se perderam por completo. A vida nunca deixa de se celebrar lutando. Até o fracasso, arquitetado inconscientemente, transforma-se em ocasião para sentir de novo o real.

O cinzento sonha com cores que regressam apenas no clarão da ruína. A festa última acende-se inevitavelmente no fogo da destruição. Comunidades, inconscientes entre luto e festa, acabam por desejar em segredo esse fim desastroso, como único caminho para reencontrar emoções que o habitual afoga. Incapazes de festejar ou reagir a tempo, resta-nos a espera fácil pelo desprezo - esse artifício gratuito onde todos podem gritar, chorar e aplaudir sem arrependimentos.

Não me sinto historiador, mas aproximo-me da ideia de José Saramago, imaginando-me criador atrevido de outro mundo, capaz de distinguir um passado dividido e separar o que importa do que não merece atenção. Só assim poderia vislumbrar onde se situará o mundo habitável.

Como escreve Carlos Nogueira, a “ideia saramaguiana não existe fora de cada um de nós e fora das coisas; existe dentro de cada pessoa, e é aí que se desenvolve e se materializa em atos e coisas”. O mundo ideal de Saramago, mesmo que inalcançável, inclui uma moral digna de uma conduta em que o material e o espiritual se estruturam através do ideal da liberdade.


Nota final

Este texto nasceu da inquietação perante o presente: um tempo marcado pelo desencanto, pelo peso das rotinas e pela sensação de que a vida perdeu a sua força criadora. O recurso à catástrofe não é desejo mórbido, mas metáfora do limite: só quando tudo ameaça ruir é que se revela o que ainda pode ser salvo.

A ruína, paradoxalmente, torna-se ocasião de despertar. Foi neste ponto que encontrei em Saramago uma inspiração: a capacidade de imaginar outros mundos, de desconfiar do óbvio, de procurar a justiça mesmo quando parece inalcançável. Aproximar-me dele é procurar também uma ética mínima -  onde material e espiritual não se oponham, mas se organizem na busca da liberdade.

Se estas linhas emergem da angústia, emergem também do desejo: desejo de não deixar que o cinzento mate a esperança, e de afirmar que o humano só se realiza quando se abre ao sonho da liberdade.

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