quarta-feira, dezembro 17, 2025

GENEALOGIA DE UM PRESENTE FRAGMENTADO

                                     2. Um caminho entre a crítica e a ideologia

Dando continuidade a este percurso, abordemos o pós-modernismo não como causa, mas como figuração. Interessa-nos menos a sua origem do que a função que desempenha. Trata-se, pois, de procurar a natureza real de um fenómeno que tem sido, em grande medida, envolto em ocultação. Desmistificar o pós-modernismo implica retirar o véu discursivo que frequentemente o desvia e compreender os seus conceitos centrais de forma acessível, distinguindo o que nele é verdade do que é mera traição sarcástica.

Este registo discursivo tende a tornar tudo simples, funcional, fácil de usar ou de compreender. O seu objetivo é reduzir a complexidade, eliminando o que é avaliado como desnecessário ou excessivamente exigente. Daí decorrem más ideias pós-modernas que alimentam políticas identitárias precipitadas e frágeis. Em paralelo, emerge um discurso que se apresenta como eficiente, ao sintetizar más condições materiais com novas subjetividades apressadas, legitimadas à luz de ideias pós-modernas. Em síntese, não foi o pós-modernismo que gerou o neoliberalismo; foi antes o neoliberalismo que encontrou e passou a sustentar um pós-modernismo funcional, útil como manjedoura de uma tese sociológica e económica conveniente.

O neoliberalismo encontrou, assim, na lógica pós-moderna, uma validação ideológica e cultural ajustada aos seus interesses. Essa articulação tem vindo a sustentar e a patrocinar processos de desregulação, individualização e globalização económica. Daí a centralidade da especulação dos mercados livres, da privatização, da severidade estatal e da responsabilização individual como pilares das mudanças paradigmáticas, tendo o pós-modernismo como o seu lastro ideológico e cultural.

A fragmentação das identidades é, neste sentido, um produto do neoliberalismo que, no seu interesse oculto, promove a desagregação social. Desmantelam-se comunidades tradicionais de trabalho e de classe, desindustrializa-se o tecido produtivo e fragiliza-se o campo laboral. O resultado é uma sociedade de indivíduos mais isolados e desprotegidos, remetidos para identidades fragmentadas e subjetivas, moldadas por uma realidade concebida pelo livre mercado, o mais possível liberto da intervenção estatal.

A compatibilidade ideológica - entendida como o grau de alinhamento entre crenças, valores e princípios - sofre, assim, uma mutação profunda. Em vez de referenciais partilhados, surgem múltiplas figuras do consumidor. O subjetivismo absoluto, afastado de quadros universais de sentido, desloca a sua justificação filosófica para escolhas de proximidade pessoal ou para estilos de vida elevados à condição de espetáculo, admiração ou distinção.

Deste modo, a despolitização e o abandono da razão tornam-se efeitos diretos de uma política da culpa. Trata-se de uma estratégia que atribui responsabilidades por falhas, crises ou injustiças a grupos ou indivíduos específicos, desviando a atenção das estruturas económicas e materiais do neoliberalismo. A política da culpa fixa-se na palavra dita errada, enquanto as políticas de austeridade e desregulação continuam a corroer o poder de quem trabalha.

O neoliberalismo não abdica desta utilidade que o pós-modernismo lhe oferece: legitima a desigualdade e neutraliza a política de classes. A ênfase na responsabilidade individual e no mérito pressupõe um mundo onde verdade e justiça são sobretudo entendidas como relativas. Ao fragmentar o campo político através da multiplicação de lutas identitárias, o pós-modernismo dificulta respostas coletivas unificadas. Essa ênfase, particularmente visível na cultura contemporânea, revela-se compatível e funcional para a soberania económica do neoliberalismo, facilitando a proliferação das suas implementações ideológicas.

O pós-modernismo não é, assim, a origem da ideologia impulsiva do capitalismo cultural, mas a sua forma mercantilizada. Trata-se de um processo através do qual bens, valores e experiências culturais - como a arte, a cultura, as relações humanas ou a própria força de trabalho - são produzidos, comercializados e consumidos enquanto objetos de troca dotados de valor simbólico, reduzidos, no limite, à sua expressão monetária. A atividade económica infiltra-se, deste modo, na multiplicidade das manifestações humanas, dos domínios artísticos aos estilos de vida.

Vendem-se estilos de vida, prometem-se passagens da vulnerabilidade à autonomia, quando não identidades sociais consideradas desejáveis. Ideias, símbolos e até lutas sociais outrora marginalizadas são facilmente transformadas em mercadorias. No plano cultural, assiste-se à erosão das identidades coletivas e da solidariedade social, em consonância com o foco neoliberal na escolha individual e na figura do consumidor.

No campo da sociologia, o conceito de “capital cultural”, popularizado por Pierre Bourdieu, refere-se a recursos não pecuniários que conferem estatuto e distinção social. Este conceito evidencia os mecanismos através dos quais a classe dominante preserva a continuidade do seu poder, transmitido de geração em geração e reforçado por estruturas formalizadas que regulam o comportamento humano e a vida em sociedade. Em síntese, o capitalismo mercantiliza também a cultura e os valores que o sustentam, colaborando, assim, com a lógica do próprio neoliberalismo.

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