2. Um caminho entre a crítica e a ideologia
Dando continuidade a este percurso, abordemos o pós-modernismo não como causa, mas como figuração. Interessa-nos menos a sua origem do que a função que desempenha. Trata-se, pois, de procurar a natureza real de um fenómeno que tem sido, em grande medida, envolto em ocultação. Desmistificar o pós-modernismo implica retirar o véu discursivo que frequentemente o desvia e compreender os seus conceitos centrais de forma acessível, distinguindo o que nele é verdade do que é mera traição sarcástica.
Este registo discursivo tende a tornar tudo simples,
funcional, fácil de usar ou de compreender. O seu objetivo é reduzir a
complexidade, eliminando o que é avaliado como desnecessário ou excessivamente
exigente. Daí decorrem más ideias pós-modernas que alimentam políticas
identitárias precipitadas e frágeis. Em paralelo, emerge um discurso que se
apresenta como eficiente, ao sintetizar más condições materiais com novas
subjetividades apressadas, legitimadas à luz de ideias pós-modernas. Em
síntese, não foi o pós-modernismo que gerou o neoliberalismo; foi antes o
neoliberalismo que encontrou e passou a sustentar um pós-modernismo funcional,
útil como manjedoura de uma tese sociológica e económica conveniente.
O neoliberalismo encontrou, assim, na lógica pós-moderna,
uma validação ideológica e cultural ajustada aos seus interesses. Essa
articulação tem vindo a sustentar e a patrocinar processos de desregulação,
individualização e globalização económica. Daí a centralidade da especulação
dos mercados livres, da privatização, da severidade estatal e da
responsabilização individual como pilares das mudanças paradigmáticas, tendo o
pós-modernismo como o seu lastro ideológico e cultural.
A fragmentação das identidades é, neste sentido, um produto
do neoliberalismo que, no seu interesse oculto, promove a desagregação social.
Desmantelam-se comunidades tradicionais de trabalho e de classe,
desindustrializa-se o tecido produtivo e fragiliza-se o campo laboral. O
resultado é uma sociedade de indivíduos mais isolados e desprotegidos,
remetidos para identidades fragmentadas e subjetivas, moldadas por uma
realidade concebida pelo livre mercado, o mais possível liberto da intervenção
estatal.
A compatibilidade ideológica - entendida como o grau de
alinhamento entre crenças, valores e princípios - sofre, assim, uma mutação
profunda. Em vez de referenciais partilhados, surgem múltiplas figuras do
consumidor. O subjetivismo absoluto, afastado de quadros universais de sentido,
desloca a sua justificação filosófica para escolhas de proximidade pessoal ou
para estilos de vida elevados à condição de espetáculo, admiração ou distinção.
Deste modo, a despolitização e o abandono da razão tornam-se
efeitos diretos de uma política da culpa. Trata-se de uma estratégia que
atribui responsabilidades por falhas, crises ou injustiças a grupos ou
indivíduos específicos, desviando a atenção das estruturas económicas e
materiais do neoliberalismo. A política da culpa fixa-se na palavra dita
errada, enquanto as políticas de austeridade e desregulação continuam a corroer
o poder de quem trabalha.
O neoliberalismo não abdica desta utilidade que o
pós-modernismo lhe oferece: legitima a desigualdade e neutraliza a política de
classes. A ênfase na responsabilidade individual e no mérito pressupõe um mundo
onde verdade e justiça são sobretudo entendidas como relativas. Ao fragmentar o
campo político através da multiplicação de lutas identitárias, o pós-modernismo
dificulta respostas coletivas unificadas. Essa ênfase, particularmente visível
na cultura contemporânea, revela-se compatível e funcional para a soberania
económica do neoliberalismo, facilitando a proliferação das suas implementações
ideológicas.
O pós-modernismo não é, assim, a origem da ideologia
impulsiva do capitalismo cultural, mas a sua forma mercantilizada. Trata-se de
um processo através do qual bens, valores e experiências culturais - como a
arte, a cultura, as relações humanas ou a própria força de trabalho - são
produzidos, comercializados e consumidos enquanto objetos de troca dotados de
valor simbólico, reduzidos, no limite, à sua expressão monetária. A atividade
económica infiltra-se, deste modo, na multiplicidade das manifestações humanas,
dos domínios artísticos aos estilos de vida.
Vendem-se estilos de vida, prometem-se passagens da
vulnerabilidade à autonomia, quando não identidades sociais consideradas
desejáveis. Ideias, símbolos e até lutas sociais outrora marginalizadas são
facilmente transformadas em mercadorias. No plano cultural, assiste-se à erosão
das identidades coletivas e da solidariedade social, em consonância com o foco
neoliberal na escolha individual e na figura do consumidor.
No campo da sociologia, o conceito de “capital cultural”,
popularizado por Pierre Bourdieu, refere-se a recursos não pecuniários que
conferem estatuto e distinção social. Este conceito evidencia os mecanismos
através dos quais a classe dominante preserva a continuidade do seu poder,
transmitido de geração em geração e reforçado por estruturas formalizadas que
regulam o comportamento humano e a vida em sociedade. Em síntese, o capitalismo
mercantiliza também a cultura e os valores que o sustentam, colaborando, assim,
com a lógica do próprio neoliberalismo.
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