sexta-feira, março 18, 2011

O MEU AMIGO EDMUNDO E O DESPUDOR DOS CONSENSOS

Nem sempre é fácil acertar uma almoçarada com o meu amigo Edmundo. Ou uma jantarada. Aposentado, eu imagino afazeres e arremato persistentemente com a falta de tempo. Ele, por sua vez, exige tempo e reivindica a minha disponibilidade, apesar da sua situação no ativo. Eu não dispenso a família. O Edmundo não renuncia às propostas da vida. Assim sendo, os nossos encontros estão irremediavelmente condenados por estes murmúrios da vida e da moral que a ordena.

Tagarelamos de tudo o que é imaginável – ou nem tanto - pendurando, na pior das circunstâncias, uma ou outra matéria de desmedida atualidade. Ao fim de algum tempo, como que respondendo tanto à necessidade partilhada de colocar ordem no caos dos factos como à fragmentação dos argumentos e à ambivalência das emoções, recuperamos os temas de sempre, na busca cândida de nos sentirmos à altura da complexidade e da insondabilidade dos enigmas sociais e humanos.
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O Edmundo, não sendo propriamente um ouvinte bonacheirão, escuta-me com a delicada paciência pedagógica de quem já há muito antecipou a minha reiterada distração pelo sentido das coisas que vão acontecendo. Constrangidos pela acumulação dos acontecimentos, dos imediatos aos mediáticos, o Edmundo incrimina-me de desbaratar a humildade necessária ao admitir as balizas da certeza, daquela que se obstina em tudo aclarar, e da sua achacadiça romantização.

Aliás, Edmundo vai mais longe. Sugere-me um outro tipo de arrojo crítico. Convida-me a forjar tempo e afoiteza para conspirar contra os múltiplos poderes, complexos e ambíguos, que tornam a nossa vida desmesuradamente estranha. Estimular a compreensão face às abastecidas dramatologias do poder, diz ele com aquele seu ar sempre leve, passa por tentar enxergar as razões por que o caos se percepciona como ordem e esta, por vezes, encobre a clareza do desconcerto.

Sócrates e as suas faces ocultas constituíram o mote para uma curiosa e agradável cavaqueira que de imediato e inesperadamente fez sair de cena o primeiro-ministro. Pois mal eu frisei a importância de se obterem consensos alargados sobre alguns aspectos essenciais ao funcionamento da democracia, logo o Edmundo sorriu, largou os talheres discretamente sobre o prato e chispou: - Amigo, quem valoriza assim tanto os consensos não deve ter uma consciência clara dos limites da sua utilidade. - Como assim? - perguntei eu, expectante.

O Edmundo, numa cadência gradualmente mais viva e acusativa, vai aclarando que, em termos sociais, convém aos múltiplos poderes marcar o passo da exercitação da cidadania. Diz ele que as diferenças e os conflitos, sendo a sua seiva interpelante, não se lhes pode permitir que circulem à vontade pela praça pública. Na opinião do Edmundo, o expediente deste tipo de consenso, escoltado normalmente pelo aplauso político desbragado, procura – tão-só – trabalhar e controlar o seu uso em proveito próprio. E é com olhar firme que me questiona: - O que seria da acarinhada arrumação social se a obediência à epistemologia da cegueira e do conformismo não operasse?

E o Edmundo continua: - Não te esqueças que os poderes apreciam a afabilidade democrática dos atores, mas abominam a autoria dos criadores e, muito visivelmente, as suas tendências à subjetivação livre e irrefreável. Os consensos servem, na maioria das vezes, a obra do hegemónico, do conhecimento instrumental e instrumentalizado e dos costumes protetores que suportam aquele caos que se percepciona como ordem e a que há pouco aludi. Em síntese, o Edmundo sublinha a ideia, com um ar invulgarmente empenhado, do interesse dos poderes em se socorrerem do consenso cínico que fabrica o conhecimento que acautela a ação desejada e, principalmente, se torna na sua norma inquestionável.

Mas o Edmundo vai mais longe: - O consenso impudente, afirma ele, aspira à adaptação e à domesticação de comportamentos e horizontes, procurando persistentemente calar e silenciar as singularidades incómodas. Os atores só se tornam autores em espaços de criação solidária, de apelo à participação ativa e ao exercício de uma cidadania que não dispensa a energia da emoção. O que se faz (ou vai fazendo) e o que se conhece (ou vai conhecendo) tem de ser compreendido como significativo e pertinente nas e para as ações que a todos digam respeito. Este é um outro consenso, rematou o Edmundo. - É o consenso tranquilo de uma insatisfação persistente feita de partilha, de valorização das diferenças, de escuta, de implicação e de subjetivação. Olhei para o meu amigo Edmundo e, em silêncio, desabafei para com os meus botões: - Falas-me de um consenso tristemente adormecido à sombra da visibilidade social e consumista de outros assentimentos...

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