domingo, março 20, 2011

DUALISMOS MAL RESOLVIDOS

Texto de 06ABRIL2010
Dissociar aprendizagem de desenvolvimento é separar a tarefa a executar do sujeito que a deve cumprir. Não é obrigatório ser-se perito para entender que as aprendizagens estimulam o desenvolvimento e este beneficia aquelas. Aliás, no meu despretensioso ponto de vista, as aprendizagens só são verdadeiramente educativas se concorrem para o desenvolvimento humano na sua multidimensionalidade.
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Por outro lado, e ao contrário de muitos, penso que a escola, em termos estruturais, pouco tem mudado: no que respeita aos currículos, ao nível do ensino e à sua organização e funcionamento. O formato caracterizado pelo ensino expositivo, pela passividade dos alunos, pela especialização disciplinar e pela uniformidade de processos esbate algumas mudanças entretanto efectuadas, desvalorizando-lhes, na prática, o significado.
 
O insucesso escolar é naturalmente indesejável. Ontem como hoje. Mas problema bem maior, recuando no tempo, era o número dos que nem possibilidades tinham de serem partes nesse malogro. O mesmo argumento pode ser igualmente aplicado ao fenómeno do abandono escolar. A mesmíssima escola foi incapaz de acolher e trabalhar a diversidade, face à sua inépcia em incorporar a inerência relacional entre desenvolvimentos inevitavelmente díspares e as propostas invariáveis de aprendizagens e modos de as realizar.
 
A uniformidade das práticas, mais do que a unidade dos currículos, constitui uma circunstância decisória na subversão daquela relação e, analogamente, funda uma condição legitimadora de uma avaliação sumativa padronizada que tonifica, em termos lógicos, a improficiência da escola em responder aos desafios colocados pelas múltiplas dissemelhanças com que esta se confronta.
 
Opor os saberes científicos, entronizados como o único conhecimento relevante e organizado em subcategorias correspondentes à divisão disciplinar do currículo, ao saber que emerge da racionalidade da atividade e da interação, interpelante e interpretativo, favorece a suposta oposição - aquisição de conhecimentos versus desenvolvimento de competências - ou seja, convida à legitimação intolerável da contraposição entre conhecimentos e competências.
 
J. I. Pozo, no seu livro “Aquisição de Conhecimento” (págs. 164 a 171), apresenta um texto bastante curioso intitulado “Mentes diferentes para culturas diferentes”. Neste texto, Pozo começa por referir que não é exagerado afirmar que a maioria das correntes dominantes, em termos da pesquisa da aprendizagem humana, durante o século passado, aceitou a universalidade dos processos psicológicos, crença, aliás, profundamente enraizada na nossa tradição cultural.
 
Em grande parte da pesquisa efectuada, comprova-se, diz Pozo, que aquela se realizou, de forma descontextualizada, com ou sobre um sujeito e com base na aceitação implícita do pressuposto de que o funcionamento psicológico básico é anterior a qualquer experiência cultural. No entanto, embora minoritário mas significativo, um outro conjunto de pesquisas no âmbito da psicologia cultural, mostra, pelo contrário, discrepâncias, em diferentes sociedades, nas formas de representar e apre(e)nder o mundo. Dito de outro modo, o que estes trabalhos desvendam é que os sistemas de representação emergem da necessidade de dar solução a problemas originados pela atividade social, assim se gerando novas funções epistémicas e cognitivas.
 
Centrando-se em pesquisas mais recentes, onde se procura comparar os sistemas de conhecimento ocidental e oriental, Pozo refere que alguns estudiosos estabelecem uma série de diferenças entre o que eles chamam de tradição analítica ou ocidental e de tradição holística ou oriental. Resumidamente e em traço grosso, poder-se-á dizer que na nossa tradição ocidental o conhecimento está centrado na análise dos atributos do objecto, enquanto na tradição oriental situa-se o objecto no contexto do qual aquele não se separa ou se abstrai.
 
Sem pretensão de anexar mais e significativos desenvolvimentos, acrescente-se que Pozo conclui que cada um de nós adquire o conhecimento no âmbito de uma cultura que se apoia numa série de pressupostos implícitos, habitualmente não expressos, em relação à própria natureza desse conhecimento e dos seus mecanismos de aquisição. Ou seja, as distintas epistemologias implícitas não dirigem somente a aquisição de conhecimento, mas, igualmente, a sua produção cultural.
 
Neste contexto, Pozo refere Motokawa (1) que, reconhecendo o êxito indubitável da ciência ocidental, não deixa de a interpelar, ao avançar que uma ciência vive na história e que o seu valor adaptativo vai depender dos estádios de desenvolvimento da própria ciência e da sociedade, não deixando de recordar que no mundo operam outros tipos de ciência.
 
Deste modo e nesta linha de pensamento, Pozo elenca um conjunto de aspectos que a psicologia cognitiva deve aceitar para dar conta da aquisição de conhecimento e que fazem parte da tradição cultural da ciência oriental. Entre outros, menciona a relevância das imagens e das representações analógicas, a importância do contexto e da pragmática no conhecimento, as relações entre o implícito e o explícito, a superação de diferentes dualismos (processo/conteúdo, sujeito/objecto, natureza/cultura, etc.) e, ainda, a busca de uma integração entre formas e sistemas de representação em desfavor da aceitação de uma lógica dissociativa ou dicotómica.
 
Os conhecimentos científicos são fundamentais à aquisição e ao desenvolvimento de competências e o exercício destas amplia e integra aqueles, acrescentando-lhes os saberes emergentes decorrentes do potencial aprendente e operante inscritos na ação e inerentes às suas dimensões de indagação, transformação e permanente (re)significação. Assim sendo, mais do que ensinar os conteúdos, importa saber como os trabalhar, de modo a que os respectivos aprendentes deles se apropriem, pressupondo que a atividade na aprendizagem favorece a apropriação ambicionada e esta incrementa, de forma indiscutível, a ação competente.
 
O ensino expositivo, a passividade dos alunos, a especialização disciplinar e a uniformidade de processos constituem uma matriz que importa interpelar. As competências não se podem reduzir à imagem de realidades em potência, mas devem, isso sim, constituir objecto do trabalho educativo como realidades em ato, através do seu exercício intencional e de aplicação aos contextos pedagógicos, às situações de aprendizagem e às atividades específicas que as convocam. Assim, resta almejar que se resolva, e bem, este inexato mas imperecível e enigmático dualismo entre saberes e competências. Será que a tradição oriental nos poderá ajudar?
 
(1) – Investigador que, em conjunto com outros (Nisbett, Peng, Serpell, Hatano, Tweed, Lehman, …), comparou o sistema de conhecimento ocidental e oriental, analisando o modo como as distintas formas de conhecer influenciam a construção das mentes.

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