sábado, abril 16, 2011

A CARTA

 

1234299641Querido amigo,

Mereces este desabafo e eu, muito provavelmente, a necessidade de respirar. Depois de, naquele dia do meu aniversário, ao jantar, teres tido a paciência e a generosidade de me escutar, senti hoje a necessidade de acrescentar algo ao pouco que, nesse dia de revelação recíproca de memórias, tive a coragem de confidenciar. Hoje, penso que não se trata de coragem mas apenas do pressentimento egoístico de uma satisfação rara e antecipada de partilhar contigo fraquezas e receios mantidas numa intimidade muito particular e pessoal.

Sinto que tenho uma personalidade que, sendo obviamente única, é muito própria e singular. Disseste-o e tens razão. Sei que não me revelo, como tu bem sublinhaste, mas não te confirmo que me acho permanentemente de mau humor com a vida. O meu estado de espírito parece dividir-se, a todo o momento, entre uma intimidade feita de explosões surdas e silenciosas e um retraimento deliberado sobre mim mesmo, procurando mostrar uma imagem social de tranquilidade e de coerência. Vivo, como podes imaginar, abalado em identificações persistentes e fatigantes em que o eu, os outros e o mundo se me atravessam numa desarmonia vivida e sentida continuamente como desconcertada e incómoda.

Reconheço que não tenho força nem coragem para me reinventar. Não o mostrando, é-me evidente a percepção de que os recursos me escasseiam para o tentar. Defendo-me, confesso, exibindo o que sei não ser e, com receio de que os outros descubram, ufano-me de ser o que não sou. Lamento ter de te dizer que é deste modo que me prendo à minha realidade de não ser e que, com base nesse orgulho imaginariamente construído, ajusto as múltiplas e necessárias justificações aos “outros”, que igualmente concebo, tornando as minhas falsas razões bem úteis, apesar da incomodidade do peso, sempre presente, do seu desconforto íntimo que teima em me atormentar e castigar.

É na violência desta sabedoria forçada que exponho a minha teimosia pateta e a minha igualmente triste arte de dissimular, adaptando-me ao que tenho e ao que sou capaz de ser, imaginando e urdindo sortes e satisfações a partir de pequenos e desprezíveis nadas. Por ideologia, tenho necessidade de me afirmar politicamente de esquerda mas, confesso, convivo bem com as ordens que me aquietam e, sobretudo, as que evitam outras que desafiam crispações que, com toda a sinceridade e naturalidade te digo, dispenso. Sinto-me ridículo quando não, sinto-me ser mesmo um tipo ridículo. Procuro o disfarce fazendo questão de me mostrar, por vezes de forma tristemente desajeitada, aberto ao mundo e às suas modernidades mas, no plano existencial, no meu dia-a-dia, oculto com a minha estúpida astúcia empedernida a predisposição singular do meu subconsciente conservador.

Não tenho dúvidas que se trata de um procedimento que funciona e me convém neste dramático desafio de sobrevivência que, embora o admita vitalmente necessário, me indispõe e aborrece. Apesar da sua debilidade, a minha razão experienciada como irremediavelmente enfraquecida, consegue queixar-se, no entanto, que essa desaprovação não aconteça no momento certo mas sempre fora de tempo, em momentos de eficiente distanciamento e lucidez quando, silenciosamente, acuso-me de fraqueza e cobardia. Sinto, embora entristecido, que este é o registo económico que encontrei e construí ao longo dos tempos e me dá a segurança, descoberta permanentemente como falsa, para me afirmar pessoal e socialmente. Critico timidamente o distante sem me comprometer e, com a facilidade e a presteza das minhas avisadas artimanhas, protejo-me de indesejáveis sobressaltos nos meus múltiplos lugares de convivência e de proximidade, quer relacional, quer emocional.

Encontro na ordem dos acontecimentos, com a agudeza que me desconforta, uma explicação para o que faço sem me dar ao trabalho de idear uma autenticidade que me torne sujeito na criação de sentido para o que faço ou devo fazer. Ordeno o corpo a ceder aos gestos para o que o tempo que me sobra nesta ridícula cessão se retire à mente, à reflexão e ao questionamento. Espero, com esta manha bem tola, que os automatismos calem as angústias do vazio e anulem a possibilidade mais do que certa do meu aborrecimento de ser o que estou sendo. Perante a opressão e a tristeza próxima desta possibilidade, decido exigir cada vez mais do gesto e da acção para suprir os espaços possíveis do insuportável desafio de criação de me pensar e reinventar.

Sendo o que simplesmente sou, sendo o que faço, evito o que antessinto ser ousadia e excesso. O tempo preocupa-me porque ele é, para mim, um elemento incómodo neste jogo de possibilidades e projetos. Reconheço, com frustração, que para uns, apesar de lhes faltar o tempo, o escasso tempo que têm não os impede de prosseguir aspirações e construir realizações. Para mim, apesar de o tempo me sobrar, gasto-o repetindo inutilmente tarefas num ritmo pausado mas rigorosamente regulado para que o tempo em excesso se esgote no tempo certo. Não tolero a ideia de que o relógio me estique o tempo pois, esse tempo sobrante, obrigar-me-ia a vivenciar um sentimento intolerável de um vazio próximo com o qual não me quero confrontar. Essa consciência perturba-me mas, a consciência dessa consciência, martiriza-me. Por isso, para me defender, faço render as muitas e variadas tarefas do e no meu dia-a-dia para que o sintoma não surja e, de um modo contundente e pérfido, comprove a inverdade da minha existência que, neste momento, não quero nem aceito questionar.

Como me diz a IDENTIDADE de Mia Couto …

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço

É tudo, amigo. Obrigado por me teres escutado novamente. O tempo já me escasseia. Preciso de me distrair. Vou, talvez, regressar ao conforto da rotina que me aguarda... Por que não?

Um abraço.

1 comentário:

  1. Uns mais ,outros menos, todos um pouco assim.
    Um abraço. JMOL

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