Ter a coragem de procurar e construir a liberdade, a nossa liberdade pessoal, supõe atender-se à aprendizagem dolorosa da independência, não temer apostar nos desafios das diferenças e aproveitar, com inteligência, a fecundidade, mesmo que circunstancial, das nossas histórias, paixões e energias. O julgamento normalizador, normalmente cínico, de feição vigilante e paternalista, oriundo de poderes múltiplos de duvidosa legitimidade, constitui a ameaça que importa saber nomear, desaprovar e, com força moral, travar com ele o combate necessário.
Para a compreensão das suas origens, importa lembrar que a definição do aceitável foi, ao longo de tempos mais recuados, direito quase exclusivo das minorias dominantes, da religião e do Estado. Regulava-se a vida de todos e de cada um de nós a pretexto da coesão moral e social que convinha respeitar e manter. Eles e as suas pretensões, umas confessáveis outras nem tanto, ditavam as normas do admissível e traçavam os limites toleráveis dos desvios. Assim se arquitetavam as referências morais a serem observadas e os comportamentos que as enalteciam.
Mais tarde, a ciência vem-nos prometer a objectividade como coisa certa e, nessa circunstância, o saber laico ousou, arrastado pela firmeza da convicção, perturbar as verdades eternas do divino. A partir daí, os deliberantes passaram a competir entre si a definição e convocação axiológica da norma e a condenação moralista do desvio nem sempre coincidentes ou mesmo divergentes. O legítimo, ao balançar entre o domínio do teológico e o terreiro profano da racionalidade, abre uma nova época em que o saber, o poder e a manipulação crescentes, numa intimidade promíscua, conduzem à atual desconfiança das verdades prometidas e das respostas ansiadas.
Deste modo, as verdades captam, na perplexidade do seu percurso evolutivo, a prerrogativa da invenção, da ocorrência e da substituição em função das interpretações dos momentos e das forças que as podem infundir. O futuro, o presente e o passado confrontam-se, assim, no campo turbulento das representações que se atrapalham no diálogo inevitável que o simbólico insiste em manter com o imaginário, permanentemente vigiadas por quem procura, na suposta distinção social, a sobrevivência dos privilégios em risco. É neste contexto que o passado, que sempre arrastou consigo um estranho apelo a velhas e superadas ordens, perante um futuro improvável e pungente, se torna chamada potencialmente dissoluta e traiçoeira.
Como é sabido, cada tempo tem os seus poderes que se servem de todos os seus expedientes e artimanhas para arrostar as inquietações de todos nós. É assim que, com toda a naturalidade, se vai assistindo ao cortejo mediático de sumidades ditas respeitáveis e sabedoras, gente silenciosamente acolhida quando não subsidiada por aqueles difusos poderes, propondo e justificando as medidas a serem tomadas para a desejada salvação de todos nós. A vigilância política e a ação colectiva não dispensam, antes exigem, a firmeza de tomar sobre nós a nossa própria coragem e vontade. Sem esta consciência feita de razão, liberdade, coragem e vontade, parecemos aqueles rafeiros obedientes que muito ladram mas … não assustam a canalhice dos que sabem aproveitar as “oportunidades” sem qualquer tipo de preocupações éticas e sociais.
Imagem obtida em HORTA DO ZORATE
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