quarta-feira, janeiro 16, 2013

NA FORMATIVIDADE, O PODER E O DEVER DO TRABALHO IDENTITÁRIO

IMAGEM 1Como nota introdutória, direi que nos últimos dez anos, resultado da vida e das suas inescapáveis circunstâncias, desfrutei da aprazível fortuna de vivenciar e descortinar, através da partilha que soma valor e pelo trabalho reflexivo que neste se reconhece, novos e diferentes reptos no âmbito cercado e enredado da educação e da formação[1].

Dito isto e no que à formatividade diz respeito, a proximidade com gente adulta – sobretudo por entre a leitura e a interpelação das suas experiências biografadas – reclamou de mim a exigência de cuidar melhor de alguns dos conceitos medulares do campo educativo, e não menos das suas relações, à luz (sempre polémica) das suas procedências e disseminações, dos seus contextos de significação (históricos e políticos) e das teorizações que daí (de)correm.

Os conceitos envolvidos neste indefinível perímetro temático, sendo construções representacionais, facultam naturalmente entendimentos nem sempre concordantes (ou mesmo desencontrados) sobre os seus próprios objetos, não obstante a fundamentação atendível que os configuram. Deste jeito, tal confirmação autoriza a ilação lógica e plausível que os juízos, sejam eles sobre situações teóricas ou feitos em contextos de determinados de usos, possam colher (desses entendimentos) apenas uma e não a significância exclusiva.

Educar, formar, aprender e ensinar relacionam-se entre si de modos não só diferentes como desiguais tendo em conta que os sentidos aí incorporados se agilizam ante o entrecruzamento de diversidades marcadas por preferências, encadeamentos e recursos significativamente distintos e, mais relevante ainda, diversidades intensamente caracterizadas pela desigualdade e pela desproporção. E é com base nesta verdade fragmentada e condicionada, animadora da modernidade burocrática de programas institucionais, que se articulam (em silêncio) as reprimidas dimensões fundadoras e holísticas da esfera educativa, das quais (aqui) destaco as dimensões do desenvolvimento, das dinâmicas identitárias e das socializações.

Abrindo com a ideia de desenvolvimento, se num plano mais geral ela constitui uma inspiração totalizadora da política educativa e formativa, numa ótica mais individualizada, direi que essa mesma ideia se limita (por necessidade ou conveniência) à simplificável tendência aquando dos propósitos mais práticos e funcionais da escala retraída do ensino e das aprendizagens. Com efeito, importa dizer (e no estímulo que me encaminha, persistir) que não deixa de ser a conceção de (um qualquer) desenvolvimento que dá feição e trata de atribuir conformidade à tecedura relacional dos conceitos subentendidos, especificamente os conceitos que, neste breve texto, servem de referência (educação, formação, ensino e aprendizagem).

Parafraseando, com alguma liberdade, José Barata Moura[2], o homem faz-se – no seu fazer e no seu fazer-se – empreendendo sempre uma história rasgada em caminhos retraçados pelas determinações que vão acontecendo. Nesse jornadear, o homem é naturalmente determinado, capaz de determinar e, sobretudo, inquieto de se determinar. Hoje mais do que ontem, embora desde há muito, como detalhe, modelo ou prova, diria que a prevalência do económico, ao apresentar-se como uma qualidade primeira, faz com que o crescimento económico, no que respeita à educação e à formação, se torne um referente hegemónico e, com base nessa medida, se converta e se afirme no modesto e infundado equivalente político-institucional da ideia-rumo de desenvolvimento.

Num outro plano, e no que concerne às dimensões das dinâmicas identitárias e das socializações, com um incauto toque de atrevimento, acrescento que será naturalmente útil sugestionar (alegando e desafiando) que é na quotidianidade socializadora das aproximações (ao mundo, aos outros e a si próprio), como condição (ou mesmo, obrigação) de existir de um modo concreto e presente, que se significa e assim se aprende e, nesse envolvente movimento, continuado e aberto ao entranhável, se confere sentido ao conjunto de possíveis que se revelam à reinvenção contínua do que se é e, desse jeito, se vai dando forma ao próprio viver.

Aguardando não atraiçoar Bernard Charlot[3], e em apoio ao exposto, destacaria a minha concordância com a ideia por ele formulada de que a aproximação ao saber, feita de uma multitude de vizinhanças, “… não é apenas epistémica, mas é também identitária e social”. Dito isto, e na defesa axiomática deste meu intento, garanto que a experiência indica-me, e a convicção solidariamente adota, a ideia que é no quadro familiar de esquemas incorporados e estabilizados que, incontornavelmente, se radica e move a vital energia, embora partilhada, do diálogo íntimo e reflexivo que apadrinha a real predisposição de mudança e (com ela) a resiliência e o entusiasmo para caminhar no encalço do traçado desvio ascendente.

Para tal, os acontecimentos (passados e presentes) contam e só contam verdadeiramente quando, pela análise reflexiva, em momentos de descoberta, de construção e, nesse tentador e intenso curso, se transfiguram em impulso identitário. Rejeitar pura e simplesmente, querer algo a qualquer preço ou escolher apenas o que nos é oferecido, repete-se numa oportunidade de liberdade demasiado curta para uma consciência que se ambiciona (trans)formadora. A laboriosa (mas penosa) busca de caminhos próprios, reconhecidos por estes com exigência e verdade, carecem de um outro fôlego que alargue horizontes e comunique futuro e confiança a quem a eles se entrega.

Porém, distanciar-se das socializações que dificultam aquela entrega requer uma incessante tomada de consciência, e com esta, uma atitude subjetiva que proporcione um ser (um estar) disponível para o questionamento – inevitavelmente, conflituante e conflituoso – das imbricadas identificações que vão dando sentido às vidas de cada um. A subjetividade coabita, como se sabe, numa ligação estreita, com o mundo objetivo, pelos efeitos de contexto, agitação continuada das relações e das interações ou (ainda) pelas memórias resistentes que não se destroem.

O processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC), foi para mim uma experiência notável neste campo. Não pretendendo torná-la transversalmente representativa, considero que o processo de RVCC não é (nem foi) de todo um exemplo inócuo. Para muitos dos adultos, a realização do processo e a materialização reflexiva da sua historicidade, mais do que a certificação obtida, valeu pelo trabalho identitário alcançado no decurso possível de um distanciamento representacional progressivamente (re)conquistado, com expressão visível e explícita na (trans)formação pessoal e social que, de modo confesso, não lhes foi indiferente.

Finalizando, estou certo que aqueles adultos apreenderam que a identidade é uma invenção contínua que se tece com material não inventado. Por isso, compreenderam também que a identidade não é um dado mas um processo pelo qual as bases da socialização são trabalhadas e ativadas, incluindo as mais sólidas. Se assim é, como admito que seja, pensar a educação e a formação, nomeadamente de adultos com menor escolarização (mas não só), não pode nem deve dispensar este delicado mas necessário trabalho identitário. Ao menos, uma maior atenção e uma mais eficiente consideração por ele, uma vez que (a sugerida e enaltecida) educação permanente e emancipadora não deixa de por aqui passar. Na verdade, nascimento não é destino mas tão só um começo…

Publicado na revista ESCOLAinformação (SPGL), de janeiro de 2013


[1] Entre 2002 e os dias de hoje, assumi as funções de Avaliador Externo no processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC) e em diferentes Centros de Novas Oportunidades, inseridos em diversos contextos sociais e culturais.

[2] Em “Para uma Ontologia da Educação”, comunicação feita no Conselho Nacional de Educação aquando da discussão sobre as bases da educação.

[3] Citado por Ana Maria Costa e Silva, em “FORMAÇÃO – Espaço-tempo de mediação na construção de identidade(s)” (2007: 164).

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