quarta-feira, maio 29, 2013

A COADOÇÃO – UM EMBARAÇO QUE DISPENSA BANDEIRAS

imagem-gaysMarinho Pinto é reconhecido por quase todos – gostem ou não dele – como uma pessoa de uma exorbitância original que, a todo o momento, exibe uma inusitada personalidade, rica de atributos, que dele fazem, mais do que um incisivo e controverso opinante, um homem público incomum. Enérgico e determinado, de cáustico gracejo crítico por vezes, Marinho Pinto facilmente se torna admirável para os apreciadores e, com compreensível presteza, intolerável para os opositores. Agrada-me, confesso, a faceta politicamente incorreta com que irreverencia amiúde, com refinado saber e inteligência argumentativa, os múltiplos poderes instalados, sejam eles sagrados, institucionais, simplesmente mediáticos ou resultantes de duvidosas revoadas circunstanciais. Independentemente da minha pessoal concordância ou divergência relativamente às suas respeitáveis e fundamentadas posições, perfilo-me no grupo dos seus simpatizantes, tendo por apreço a constante e intrépida liberdade com que se manifesta.

Apesar desta declaração de empatia, vamos todavia ao que me traz. Marinho Pinto considera – e reitera-o com um arrebatamento obstinado – um desrespeito e sobretudo uma atormentação para as crianças, a possibilidade de os homossexuais poderem vir a coadotar os filhos adotivos ou biológicos da pessoa com quem estão casados ou com quem vivem em união de facto. A sua crítica essencial assenta no facto da concretização dessa eventualidade retirar às crianças o direito de poderem formar a sua identidade num quadro familiar biológico ou adotivo em que existam sólidos referentes masculinos e femininos, condições que, na sua opinião, se mostram indispensáveis ao desenvolvimento harmonioso da(s) sua(s) personalidade(s). Acrescenta, além disso, num lógico reforço da opinião atrás assumida, que ninguém tem o direito de adotar mas, pelo contrário, as crianças é que têm direito a uma família onde possam desenvolver harmoniosamente a sua personalidade[1]. Não sendo eu um homem nem da ciência, nem do direito, atrevo-me no entanto a manifestar desde já a minha divergência, designadamente ao ter presente o engenhoso sentido convocado por Marinho Pinto através de uma hábil enunciação argumentativa.

Principiando pela pretendida contenda dos direitos, importa acareá-los na sua substância e submetê-los ao clássico problema dos universais. Ordena a evidência que o direito dos adotantes não precede o direito da criança e prescreve o bom senso que tão pouco pode aquele, em momento algum, significar uma qualquer prerrogativa ao sabor de súbitas e infundadas vontades ou de vulgares aferros caprichosos. O direito de adotar consubstancia-se, como é óbvio, em valores de humanidade e de probidade e, nessa medida, o seu juízo exige a observância rigorosa daqueles, tendo em vista o exercício cabal de uma responsabilidade que se nutre na obrigação de facultar à criança uma família que ela não tem, de modo a proporcionar-lhe um desenvolvimento tão completo e integral quanto possível. O direito da criança a uma família garante-se assim no exigente exercício dessa responsabilidade, convertida num dever, que a todos compromete no total respeito pelas premissas atrás enunciadas. Nesta perspetiva, o direito de adotar não é, do meu ponto de vista, mais do que o assentimento socialmente legitimado para que, com liberdade, afeto e saber, alguém possa cumprir esse dever universal e imperativo de responsabilidade parental.

Se esta controvérsia sobre os direitos me parece de colocação entendível e provavelmente aceitável, a problemática da existência de sólidos referentes masculinos e femininos, na sua relação com a configuração familiar concreta, apresenta já dificuldades maiores, múltiplas e de natureza bem diversa, se levarmos em linha de conta o quadro determinado pelas atuais e intensas mudanças nos planos dos valores, dos comportamentos e das identidades. Se se atender tão só às modificações contemporâneas nas condições de procriação, nas mudanças das formas de filiação e de criação dos filhos, percebe-se que estas transformações – inscrevendo-se em outras mais estruturantes de natureza social, política e económica – têm naturalmente conduzido a reposicionamentos sociais e a redefinição de papéis com reflexos expressivos nas relações homem/mulher. O cenário social é cada vez mais diverso e compósito e a ordem dita tradicional sente-se seriamente ameaçada na vulnerabilidade dos seus costumes e na impermanência normativa da sua moral, designadamente na forma como se olha e vive hoje em dia a sexualidade, as suas relações e práticas.

Ora, estas mudanças carregam naturais consequências, geram itinerários distintos de subjectivação e desafiam aclimatações simbólicas certamente renovadas. Refira-se que alguns homens ajuizados da ciência médica e da psicanálise situam neste quadro crítico aquilo a que chamam de “crise da masculinidade”, entendida aqui como enfraquecimento do poder paterno, e acolhida enquanto reflexo de uma crise mais profunda, a crise da atribuição fálica como organizador social. Não ousando invadir matérias para as quais não estou nada preparado, julgo no entanto não ser imprudente sugestionar que estas pressupostas ocorrências nos lançam e convocam para o mundo evolutivo do simbólico, da sua linguagem e e das suas representações. A imutabilidade de uma qualquer ordem simbólica subentenderia, no plano lógico, uma forma exclusiva e ideada de subjetivação com o poder de decidir sobre o normal e o patológico. Nesta linha de pensamento, ao tomarmos a família tradicional como referência única de normalidade, um qualquer outro modo de filiação introduziria então transtornos aos adotados que a realidade já estudada no domínio da homopaternidade vai (com clareza) desdizendo. E, parafraseando Ceccarelli, eu lembraria a Marinho Pinto que as famílias são sempre construídas, os filhos sempre adotivos e que desgraçadamente as prisões (de capturas diferentes) estão apinhadas de filhos criados por casais heterossexuais.

 


[1] http://www.dnoticias.pt/actualidade/pais/387054-marinho-pinto-diz-que-co-adopcao-desrespeita-e-maltrata-as-criancas

Imagem retirada DAQUI

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