sexta-feira, janeiro 29, 2016

OUSADIA E SENSATEZ – ESTEIOS DE UM CONTRIBUTO

 

ARTIGO DE OPINIÃO PUBLICADO NO ESCOLA INFORMAÇÃO  DO SPGL

O ENSINO PROFISSIONAL EM QUESTÃO

blogUm ponto que me merece ser introdutório: sugerir, desde logo, a ideia de que a educação tem uma história e, conjuntamente associada, uma historicidade que a examina e interpela na sua irrealizável completude. Afinal, uma ação dialógica, em definitivo dispersante, que se vai tecendo na caminhada própria do tempo, esboçando e desenhando forçosos e urgentes futuros. A história entusiasma a humana compreensão, sem dúvida, mas não conduz a um completo entendimento que satisfaça a sua humana paixão. Tendo presente esta convivência improvável, nem sempre virtuosa, entre a história que se estuda e a peregrinante historicidade que a acompanha, o trabalho educativo dá-se na dependência de um incessante e paradoxal movimento que, escapando-lhe, não deixa de ser inspirado por ele e pela sua desmedida pretensão. O modelo escolar há muito inventado, na ilusão de alcançar um todo e perfeito traçado, caracterizado pela sua homogeneidade, mostra-se, afinal, decrépito ante as necessidades multifacetadas do mundo de hoje.

Tendo uma história, a educação torna-se, sobretudo, histórica ao ser confrontada com o inquietamento deste lado pungente do seu disputável curso. Deste jeito, a história vai-se empreendendo na incerta deslocação desse compósito movimento, sempre social, político e antropológico, singularmente marcado hoje, é bom lembrar, pela extensão e invasão do tecnológico. Com particular ressonância social e humana sobre o trabalho e o emprego, esta incursão exuberante do tecnológico interpela profunda e exigentemente a esfera da educação e da formação. Pelas múltiplas transformações que proporciona e suscita, assim como, é sensato assinalar, pelo culto egotista que assiste muitas dessas mudanças e conversões.

Para quem viveu os primórdios do Ensino Profissional com estranha energia e motivação, num tempo enlevado seguramente por uma não despicienda dose de credulidade avivada pelos excessos do entusiasmo, discorrer sobre o tema não é simples. Porventura, até um pouco doloroso perante as incertezas hoje reconhecidas, associadas a outras mais recentes. Estas, seguramente mais incontroversas, resultantes da apressada e desconcertada inclusão generalizada do Ensino Profissional na Escola Pública, em especial fruto dos seus impactos dinamicamente contraditórios. A organização pedagógica vital ao seu escoramento não foi acautelada e a (in)formação dos agentes escolares foi notoriamente menosprezada. Neste domínio, importa aqui focar em particular o que se relaciona com a reflexão impreterível dos currículos, da sua construção modular e, principalmente, sobre os modos de ensinar, de aprender e de avaliar a inovação proposta, num contexto tradicionalmente rígido, cativo de uma cultura pouco dada à flexibilidade e à formatividade das aprendizagens.

Relembre-se que, no final dos anos 80, as Escolas Profissionais surgiram impulsionadas pelo Estado, em concerto com parceiros locais ou setoriais, no sentido de corporizar um projeto de diversificação de educação/formação, inscrevendo em si modalidades de aproximação ao mundo do trabalho e comportando estas, de certo modo, dispositivos lógicos e coerentes de inserção social e profissional. O carácter privado assumido pelo subsistema do Ensino Profissional, associado ao universo restrito de jovens por ele abrangidos, a par da segmentação institucional que o acompanhou, originaram fundadas apreensões no domínio da gestão e reestruturação do Ensino Secundário público, designadamente no que concerne às formações escolares que lhe eram equivalentes. Ainda assim, seriamente crítico a um inábil modelo escolar pontuado pela espartana homogeneidade, firmei-me na crença – porventura ingénua - da possibilidade da multiplicidade, da mudança e do futuro reforço exequível de um espaço público de educação através de novos arranjos institucionais que o avigorassem. A inclusão do Ensino Profissional na Escola Pública regular obrigava a cinzelar a homogeneização do sistema que interditava, do meu ponto de vista, a abertura à diversidade (e que desta forma o tornava excludente), assim como se mostrava incapaz de se organizar diferentemente. Logo, condicionado, ou mesmo incapacitado de levar por diante a produção de projetos educativos harmonizados com as necessidades e os anseios mais imediatos dos jovens e das suas famílias.

Acreditei que a defesa, que sempre adotei, de valorização da educação pública, poderia passar por processos desta natureza, promovendo a inovação e a experimentação, devidamente avaliadas e dignificadas de modo a não acentuar os fatores de discriminação e de desigualdade, promovendo, isso sim, dinâmicas renovadas de coesão social. A convincente perceção da inaptidão da Escola Pública regular para acolher o lado atribulado e duro do desafio profissionalizante era evidente, face à incomum dificuldade de tecer a familiaridade desejável com essa inadiável e urgente hospitalidade. A premência de colocar no centro das preocupações escolares o sucesso desse projeto/ação formativa e a reclamada responsabilidade política, social e pedagógica daí decorrente, tonificou a convicção pessoal da necessidade de repensar o espaço público da educação, aceitando e nele inscrevendo outras responsabilidades, atores e instâncias sociais. Sempre tive a expectativa que os bons auspícios das Escolas Profissionais - e do Ensino Profissional - entrassem na Escola Pública carreando para o seu interior a riqueza da experiência inovadora daquelas escolas, assim como a confiável autonomia e as necessárias condições, de recursos e liberdade, para o seu cabal e responsável exercício.

A incorporação do Ensino Profissional, no âmbito público da formação escolar, pressupõe um olhar diferente, acompanhado de uma vontade política e institucional, racionalmente arquitetada, que espelhe, reflita e se baseie na realidade concreta dos jovens e dos seus contextos próximos, de modo a trabalhar um sentido de (trans)formação explicitamente objetivado, tendo como referencial de aproximação um cenário socialmente claro, conhecido e reconhecido. Deste modo, é imperioso saber quem somos, onde estamos e o que podemos fazer e reclamar. Retrocedendo ao delicado tema da incorporação acima referido, importa aqui reiterar a minha convicção de que não é através de soluções englobantes, nem a outras a elas redutíveis, que a unidade da escola se constrói. Pelo contrário, ela desenha-se pelos traços de verdade, coerência e consistência do seu projeto de proximidade e integrador da diversidade.

Tenho perfeita consciência de que se vive um tempo em que o pensamento antes exposto, embora condensado e despretensioso, se mostra um tanto ou quanto paroquial, quando não genuinamente cândido. As atuais dinâmicas de globalização (ou das globalizações) trazem consigo os seus congénitos influxos e os Estados, e sobretudo os seus cidadãos, mais ou menos comodamente instalados, apercebem-se como meras instâncias mediadoras de orientações que, em maior ou menor grau, lhes escapam. A europeização, nosso braço próximo dessa ou dessas globalizações, vai assim fixando as nossas agendas e prioridades e, com clareza, estabelecendo as linhas políticas para a educação/formação com o propósito de animar, afinal de contas, a competitividade económica e de ampliar assim as oportunidades de acumulação capitalista, de acordo com engenharias ajustadas de regulação social e ideológica.

Assim sendo, o distanciamento, que o tempo vem alongando, sequestrou a inteireza da entrega e, daí, a consequente ressignificação contextualizada dos possíveis e das prioridades, por ora aqui exposta um tanto ou quanto remissa. Certo é que o vigorante e dogmático artifício da empregabilidade, ao liquefazer o direito à educação com a atual marcha do tempo político, hospedou em seu lugar uma suspeitosa necessidade de reação ao afazer profissional, decretando um caminho perverso de preceituada obrigação de se merecer um emprego. O valor da cidadania educativa não pode deixar de ser aqui invocado, e quiçá reinventado, como um rumo a observar neste quadro de análise ideologicamente concorrido e, por conseguinte, exposto a influências contrastantes por parte de diferentes e múltiplas perspetivas, grupos e sectores sociais. Nesta atmosfera progressiva de adesão imponderada à fragilização da cidadania a favor do jugo da empregabilidade, os futuros possíveis têm vindo a ser forçados a deslocarem-se para acessos duvidosos, estreitamente bitolados e selecionados. É onde nos encontramos. Lamentavelmente.

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