quinta-feira, julho 26, 2018

A INFEDILIDADE DOS ESPELHOS

imagem-distorcidaOs espelhos da vida, mais do que exibir, representam. Afinal, é neles que nós obstinadamente nos espelhamos. Os seus semeados e difundidos reflexos saciam os nossos olhares lamentavelmente viciados. Na procura de ser, distraímo-nos, afinal, do que queremos ser e, de modo igual, descuidamos de que não somos os mesmos todos os dias. Com razão, ou sem ela, as afeições nem sempre se mostram concertadas no tempo ou nas circunstâncias da vida que se vive. Bem como, por vezes, mais vezes do que achamos, o nosso pensamento, e a imaginação que o assiste, ao abandonar o necessário, deserta apressado de nós próprios. Desencaminhada assim a natural vontade, fazemo-nos desprotegidos inventando ilusórias forças. A intrusiva ressonância dos espelhos atrai inconfiáveis energias, condição conveniente à exaurição da remanente languidez da nossa já insegura liberdade e inteireza. Com os nossos corpos espartilhados nesta abetumada envolvência, que só a custo cede a diferentes promessas, o nosso ser social adoece, e assim se esmaece. Acordar os nossos corpos dormentes obriga lembrar-lhes os poderes vitais sumidos, entorpecidos que estão, quer ao serviço da tirania de uma ideologia fundada na superfície do desperdício, quer afundada na asfixiante financeirização de uma sociedade que a agracia. Para tal, muitos desses poderes vitais são, por esta muda sujeição, suspensos e paralisados, quando não mutilados. Os apregoados e proliferados espelhos retiram-nos, certeira e penetrantemente, a profundidade e a transparência da vitalidade crítica dos olhares. Desvio que nos confunde as emoções, raízes de sentires que se plasmam, pela sua letargia, numa cultura de massas arrastada por esta mercante e padronizada trivialização cultural. Mais do que o manejo da democracia, de um modo tópico, hoje importa-me relevar as cínicas formas de autoritarismo dos espelhos que, bem arrumados, servem as artimanhas deste poder diverso que nos abafa e brutaliza. Uma obscura mesmidade, se bem que eficiente, vicia e contamina a absurdez do nosso olhar que, assim perturbado, vai divisando ilusórias singularidades. Eis aqui um chão, nem sempre ressaído, donde medram muitas das raízes da silenciosa perfídia dos reportados espelhos e espelhamentos.

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