terça-feira, outubro 16, 2018

ANTÓNIO COIMBRA DE MATOS, NO “PRÓS E CONTRAS”, O BRILHO DO SABER E DA SIMPLICIDADE


antonio-coimbra-de-matosAcompanhei com muito interesse, ontem, o “Prós e Contras”, dedicado ao tema #MeToo (Out, 2018 | Episódio 30). Tópico obviamente disputável onde as lídimas ideias se debateram, apesar de algumas outras (felizmente poucas) contaminadas pela vaidade e afirmação pessoal, acrescidas pelo vulgaríssimo (por incalculado) interesse politiqueiro. O ciúme de Isabel Moreira, atraiçoou-a. Raquel Varela tem igualmente presença e ideias. Podemos não concordar com ela, mas o argumento da belicosidade fácil não colheu, e do meu ponto de vista, Isabel Moreira desaproveitou a circunstância. Neste cenário, Coimbra de Matos avantajou-se. Pela simplicidade do seu sinótico mas substancial discurso, sensatamente somado à estética recatada e natural dos seus gestos. Um senhor…

Socorrendo-me de uma entrevista sua, aqui vos deixo, através de algumas das controversas passagens, uma imagem  impressiva dessa figura nobiliária, nomeadamente enquanto intelectual/psicanalista.


Hoje as pessoas estão talvez menos disponíveis para se preocupar com os outros, para cuidar dos outros. A sociedade é mais egoísta”. Ao ser questionado se vivemos hoje numa sociedade mais feliz, Coimbra de Matos é claro. “Não. (…) criou-se este espírito de egoísmo… Antes, se passávamos por alguém que parecia estar em apuros, parávamos para ajudar. Hoje, se passamos por alguém que parece atrapalhado, aceleramos, não nos vá chatear”.

Porque a competição é necessária, mas a competição mais normal é aquela que cada um faz consigo, para tentar superar-se, não para ser melhor do que o colega. Criou-se esta ideia de que é a competição que nos faz evoluir. Errado, não é a competição que nos faz evoluir”.

Sobre as distâncias relacionais, Coimbra de Matos, refere que há umanecessidade de criar uma distância… (O relacionamento) é um aspecto importante das sociedades neoliberais, a concorrência, a competição. E - por isso – (a importância) da distância”.

Quanto à relação particular do homem com o poder, ele sublinha, de modo provocador, que se tem  “… uma relação complicada com o poder quando ele próprio não se sente suficientemente capaz. Aí a relação é difícil. Vou dizer uma coisa que se costumava dizer aos alunos no tempo da minha passagem pelo ensino: só puxa dos galões quem não tem colhões. Quem é seguro de si não precisa disso para nada”.

No que concerne ao superficial das superfícies (indumentárias e quejandos), menciona e comenta; “Há uns anos fui a um congresso internacional e convidaram-me para dar uma conferência. Era verão e muitos colegas criticaram um americano que apareceu de sandálias, quando já em parte nenhuma do mundo isso é relevante. Outra vez estava um calor horroroso e todos vestiam casaco e gravata. Nisto somos muito provincianos e isso conta contra nós. Também já estive almoços inteiros com alguém a fazer comentários sobre as meias do outro, que era um parolo… Nisso somos um país tradicionalista”.

Somos ou não um país traumatizado? Coimbra de Matos responde; “A nossa história tem vários aspectos, um deles é que somos um país pobre. Outro é que tivemos um poder 100% centralizado. Foi dos poucos países da Europa onde praticamente não houve feudalismo e, o mais significativo de tudo, tivemos quase 400 anos de inquisição – e agora o cardeal vem dizer que os recasados não devem ter relações… Repare, é como o presidente da República: também o vemos a dar um beijinho na testa dos velhotes e das velhotas. E dar uma beijinho na testa é humilhante para o outro. Suponho que isto não fosse possível em França ou coisa parecida. O próprio presidente não se atreveria a fazê-lo”.

Mas um gesto amoroso, de afeto, não é bem visto? Responde o entrevistado; “Mas é inferiorizante. Vou contar-lhe uma história passada com um indivíduo que veio de Moçambique. Ele contava que lá, quando se perguntava a um branco pelos filhos ele respondia, virando a palma da mão para baixo, que estavam a crescer. Quando se perguntava a um negro pelos filhos ele respondia, com a palma da mão para cima, que estavam a crescer. Dizendo isto, disse tudo. Os brancos enterravam, puxavam os filhos para baixo, enquanto os negros elevavam, puxavam os filhos para cima. Isto tudo lembra-me a minha primeira guerra, em Santa Margarida, onde estive em 1974 e 1975. Houve lá umas manobras da NATO e vieram uns americanos assistir. No fim, o general americano cumprimentou o português e depois daquilo cumprimentou as tropas todas com um aperto de mão. O general português ficou ofendidíssimo: "Cumprimentar os soldados com um aperto de mão?!” Achou escandaloso. É a tal coisa de gostar de manter as distâncias, quando uma coisa é a cerimónia, outra o à-vontade que se tem depois”.

Sobre os tempos de hoje, acrescenta; “No princípio dos anos 70 o que se pensava é que se iria trabalhar menos horas. Acontece que cada vez se trabalha mais. É preciso ter tempo e as pessoas não o têm. Perdem-no em transportes, em deslocações, no trânsito, e depois não têm tempo para estar com a família, para se divertir. Isto cria frustrações, mal-estar, etc. A qualidade de vida também melhorou, há agora mais velhos e mais velhos saudáveis. Há 40 anos a maior parte dos velhos eram doentes. Hoje chega-se a idades mais avançadas e com uma relativa saúde. Tem de haver um maior aproveitamento, a maior parte das pessoas pode trabalhar até tarde. Não estou a ver um primeiro-ministro com 80 e tal anos num governo, mas um presidente da República, não vejo porque não, não é o mesmo que andar a cavalo ou ter reuniões até às tantas da manhã”. Mais à frente, adianta ainda; Mas vivemos nesta sociedade de consumo que tem um remédio para tudo; o sapato que não faz calos, os óculos que não fazem reflexo… Desgasta-se a si própria”.

À questão, hoje fala-se muito na solidão, que é um problema terrível. Mas não se fala no tédio. O ócio também é necessário ou não? Coimbra de Matos diz; “Toca num ponto. Porque a solidão importante é a solidão interior. A minha mulher morreu há dois anos e tenho momentos de solidão. Mas tenho os meus filhos, os amigos, o trabalho. Aqui há tempos, uma colega sua telefonou-me por causa da solidão e da senhora Theresa May, que queria criar o ministério para a solidão. E eu pensei: é mais uma prova da incompetência da senhora May. Isto não se resolve com a criação de um ministério, as pessoas precisam de conviver, de ter espaços de discussão, de distração. Há pessoas que vivem em prédios e não conhecem os vizinhos. Há até a história de um senhor já com uma idade avançada, casado, que tinha uma relação extraconjugal com uma mulher também casada. Ao fim de dois anos descobriram que viviam no mesmo prédio. A solidão não é boa, mas é bom ter a capacidade de estar só e de estar livre de estímulos e do exterior, que tem excessos incomodativos. Até porque se não se adquire a capacidade de estar só, a tendência é procurar companhias a qualquer preço, selecionando-as mal. É preciso escolher as companhias convenientes. Tem de haver momentos para não sermos perturbados, para podermos pensar, estar com o nosso íntimo”.

É católico, pergunta-se? Não, mas tive uma educação católica. Aos 13 anos decidi que não era católico”. Porquê? “Suponho que foi a ida para o Porto, aos nove anos. Comecei a conviver com outras coisas... A minha mãe era muito católica, o meu pai nem tanto, ia à missa uma vez por ano, a Missa do Galo. O meu pai também era antimilitarista e perguntava-me: “Que curso vais fazer? Se quiseres ir para padre ponho-te fora de casa, se quiseres ir para o Exército deixo de te pagar a pensão.

Porque diz que a sua mãe misturava sexualidade e religião?Porque vinha da igreja cheia de histórias. A vizinha não sei das quantas que era amante do outro e o padre que tinha namoradas... Mas era bem disposta quando não estava com a veneta. Há muitos anos foi lá para a aldeia um padre de quem eu gostava muito, o padre Nunes. A determinada altura o padre Nunes zangou-se com o bispo, que era de Vila Real e que começou a puxá-lo para outro lado. Ele disse que não saía. O bispo lá o deixou estar mais um ou dois anos, mas depois mandou para lá outro padre. Mas o padre Nunes não saiu: fazia baptizados, sermões, tirava o diabo do corpo e até comprou um jipe e fazia de motorista. Um domingo fomos almoçar a minha casa na aldeia e convidei o padre Nunes. A minha mãe também estava e começou com as coisas dela até que a certa altura ele diz: “Pois fique sabendo, minha senhora, que eu sou o único padre deste país, o único, que vive da clínica privada.”

Sobre os problemas lhe trazem normalmente os pacientes, ele declara; Os dois grandes problemas, que depois derivam nas patologias, são a ansiedade e a depressão. A ansiedade é o medo em relação a qualquer coisa do futuro, ao que se vai passar. Todos nós temos uma dupla reacção em relação ao desconhecido, se somos mais saudáveis, o fascínio, se somos mais doentes, o receio. A depressão é um perigo, algo que já aconteceu. Depois há diversos arranjos dentro disto. A depressão devido à perda de alguém, se é alguém que morreu ou que nos deixou – porque uma coisa é o luto, a reacção a alguém que morreu, outra é rejeição, os problemas com os filhos, com os pais, os problemas amorosos, de trabalho... Mas tudo conflui em ansiedade e ou depressão.

Quando se cita Alexandre O'Neill  “Às dores inventadas prefere as reais, doem muito menos ou então muito mais” e se pergunta a Coimbra de Matos o que tem a dizer sobre isso ele é sintético; Em resumo, costumo dizer que é bom ter a cabeça na lua e os pés assentes na terra. Os dois tabuleiros são importantes”.

A entrevistadora (Isabel Tavares) lembra~lhe que esteve recentemente num congresso no Porto, onde foi falar sobre o vazio e a criatividade. Perguntou se tem para tal uma definição? Responde; “Não é fácil de definir... Todos nós somos criativos na relação, não se é criativo sozinho. Quando estou a escrever, estou a pensar em quem me vai ler, no que me vai achar inteligente, no que vai dizer que sou um banana, no que vai rir de mim... Uma pessoa só não existe, só existe numa relação. Tenho uma teoria: a unidade biológica é o ser, a unidade psicológica é o par e a unidade social é o trio. Eu e o outro, sempre. O resto são variações disto”.

A propósito de criatividade, dos sonhos e da sua interpretação, e do seu significado, dos pesadelos, ele avança;  “…Sabe, eu tenho sobre essa matéria uma opinião diferente de outros psicanalistas. Acredito que os sonhos não têm grande significado, os sonhos tratam memórias. O que aparece nos sonhos é de fácil análise, está mais ou menos explicitado. Mas mais importante que os sonhos a dormir são os sonhos projectivos: gostaria de ter uma casa à beira-mar, umas férias em Nova Iorque, tirar um curso em Londres. Sonhar acordado, mas como projecto, não é estar a olhar para as nuvens e ver passarinhos ou comboios. Isso é bom”.

Sem comentários:

Enviar um comentário