"Há quem tema o 'wokismo' por confundir dignidade
com doutrina e respeito com censura. O problema talvez não esteja no outro, mas
na própria sombra."
José Saramago, algures em Buenos Aires, deixou dito: “A
ética de que eu falo é uma pequena coisa laica, para uso na relação com outros.
Passa pela coisa tão simples como o respeito, nada mais. Portanto, se mais
tarde, pelas circunstâncias, a revolução por fim for necessária, então sim. Mas
deixemos a revolução para mais tarde e comecemos pelas pequenas coisas que
podemos fazer sem revoluções. Essas coisas pequenas podem ter consequências
fortes e intensas como as revoluções, que não duram.”
Há nesta afirmação uma singular sensatez, um equilíbrio raro
entre lucidez e humildade, entre a grande política e a modesta ética do
quotidiano. Saramago restitui à palavra “ética” a sua densidade mais concreta:
a do uso, do gesto, da convivência. Não se trata de uma ética dos ilustres
tratados ou das filosofias perfeitas, mas de uma “pequena coisa laica”, livre
de transcendência, apropriada à natureza do ser humano e das suas relações.
A radicalidade da sua sugestão não está na eloquência das
revoluções futuras, mas na exigência mínima e imperiosa do respeito pelo outro - um respeito que se pratica antes de se anunciar e que se vive antes de se
proclamar. A sua ética é, sem rodeios, anterior à política, pois assenta no
solo mínimo da confiança e da dignidade entre seres humanos.
Ao dizer que “essas coisas pequenas podem ter consequências fortes e intensas como as revoluções, que não duram”, Saramago revaloriza o tempo longo da decência e da responsabilidade silenciosa, em contraste com a cena sempre aparatosa das mutações históricas. As revoluções, mesmo quando justificadas, são entusiasmos - ora propícios à compreensão, ora devastadores. Já as pequenas práticas éticas, anónimas e persistentes, são o húmus onde germinam os gestos que tornam a vida possível: escutar, recuar, acolher, ceder, cuidar, resistir sem espetáculo.
Saramago, que nunca se esquivou à crítica do poder e que
conheceu a chama utópica da revolução, propõe aqui uma inversão profunda:
começar pelo que está ao nosso alcance, pelo que depende de nós - e não de um
novo sistema ou de uma tomada de poder. Ao contrário da crença moderna na
salvação pelo futuro, ele convida-nos a pensar que a verdadeira mudança se
inscreve no agora, na ética como atenção concreta ao outro, e não como doutrina
abstrata.
Essa “coisa pequena” é, afinal, uma coisa maior: uma
revolução sem bandeiras, sem barricadas, sem datas comemorativas. Uma revolução
que não se escreve em manuais, mas se vive no olhar com que se trata o próximo.
E talvez, nesse gesto, esteja a verdadeira transformação que resiste - mais
silenciosa, mais demorada, mas também mais duradoura do que qualquer mudança de
regime.
Saramago lembra-nos, assim, que a ética não é o oposto da
política, mas a sua condição. E que, se um dia a revolução vier, será por causa
dessas pequenas coisas que a precederam - ou, então, não se apresentará com o
salutar rosto humano.
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