Vivemos um tempo curioso, ainda que profundamente indesejável. A extrema-direita ergue a voz como se fosse a única capaz de nomear o desassossego do mundo presente. Assinala, com afetação, uma sociedade que terá aniquilado o destino e onde a palavra “liberdade” se esbate em exortações de palavras de ordem - onde tudo se reduz à superfície das identidades e do consumo.
Acusações que, embora se alimentem de indícios reais, são,
em grande medida, profundamente enganadoras. Não procuram reerguer o sentido da
vida coletiva, mas apenas restaurar uma ordem opressiva - e perpetuamente
ilusória - onde a dignidade humana é privilégio de poucos.
O problema que vivemos não se resume a um confronto cultural
entre progressistas e conservadores. Trata-se de algo bem mais intricado: a
perda da densidade ética da vida social, substituída pela lógica do consumo, do
desempenho e da mercadorização generalizada. A extrema-direita, com o seu
discurso inflamado contra o chamado "wokismo", procura capturar o
desagrado popular. Mas fá-lo não para romper com este sistema perverso - pelo
contrário, pretende intensificá-lo. Ambiciona um capitalismo mais autoritário,
mais cínico, mais desigual. Oferece à crise da liberdade uma caricatura de
ordem, e ao vazio da política, uma estética de violência e identidade.
Assim, a liberdade, outrora horizonte das lutas emancipatórias, foi reduzida a um gesto solitário de consumo, escolha ou autoafirmação. A autonomia confunde-se agora com a capacidade de comprar, seguir ou cancelar - esvaziada do seu sentido social, ético e transformador. O neoliberalismo, ao promover essa mutação, criou uma esquerda domesticada, centrada em causas simbólicas, desvinculadas do conflito estrutural entre capital e vida.
Não surpreende, por isso, que a extrema-direita tenha
encontrado terreno fértil para prosperar, oferecendo uma aparência de sentido a
uma sociedade fragmentada, onde até a justiça social se transformou em
mercadoria.
Todavia, a resposta a este beco sem saída não nascerá da
nostalgia do poder, nem da alienação do consumo identitário. A única saída
digna está na reconstrução de uma esquerda estrutural, crítica e ética. Uma
esquerda que recuse o capitalismo como modo natural de vida; que reconheça que
a cultura só é libertadora quando conjugada com justiça social e redistribuição
material; que reconquiste a liberdade como prática coletiva - e não como
obsessão individualista; que coloque a dignidade humana, e não o proveito, como
referência inegociável da política.
A extrema-direita é, talvez, o nome do desespero travestido
de autoridade. O neoliberalismo cultural é o nome da esperança transformada em
espetáculo. Nenhum desses caminhos serve àqueles que ainda acreditam que a
política é uma tarefa de justiça e reconstrução ética da vida comum.
Precisamos, pois, de um novo horizonte. Um que não aceite a
miséria como destino, nem a estética como substância. Um que recoloque o humano
no centro - com tudo o que isso implica: inquietação, solidariedade, conflito,
partilha e transformação.
É essa a esquerda em que acredito. Não como lema, mas como empreendimento.
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