Neste mundo de narcisismo generalizado, a divergência não
frutifica – e muito menos orienta – a luta contra o poder. Incentiva, isso sim,
a apatia, a impotência e a indiferença.
O ser humano não nasce sujeito: vai-se fazendo, passo a passo, no delicado trabalho de dar forma à força bruta da pulsão em um desejo que se possa futurar. A pulsão é sinónimo de ímpeto, fogo sem direção. O desejo, pelo contrário, exige um rosto, um objeto, um alvo, ainda que parcial e fugidio. Todavia, essa mudança só acontece quando o que distintamente sentimos se deixa inscrever na palavra, no símbolo, na consonância social e política que nos antecede.
Entre o que pulsa em nós e o que podemos dizer ou desejar abre-se um caminho nem sempre claro. Nele, o sujeito aprende a deslocar a sua vitalidade, invertendo um sentimento no seu contrário, voltando contra si a agressividade que não ousa lançar ao mundo e empurrando para as sombras do inconsciente aquilo que não pode admitir. Melhor, ou seja, elevar a pulsão à dignidade da sublimação, fazendo dela arte, ciência, criação, militância. É nesse jogo de desvios, recalcamentos e reinvenções que cada um se vai cinzelando da matéria dura da vida.
Mais que certo, o dito “eu” nunca se faz, e fará, sozinho. O que em nós reside procura sempre um outro lugar para pousar, seja um mestre, um amigo, uma causa, um líder, uma comunidade. É o movimento da deslocação, desse lançar de afetos e imaginações para além de nós, que entrelaça as relações e nos aproxima a outros ou mesmo a inerentes coletivos. Assim, os desejos íntimos encontram eco e forma na cena humana, e o que era apenas impulso solitário torna-se avizinhamento, pertença e ação que, com outros, alcança.
Por isso, o sujeito, seja individual, seja coletivo, não é uma natureza fixa, mas um labor em curso, ou seja, a lenta e incessante inscrição daquilo que sentimos no decurso da expressão e da cultura, onde desejo, dever e ideal se descobrem, se entrelaçam e se unem. Assim sendo, poderá o sujeito transformar a premência, desviando a pulsão para a palavra, para o vínculo e para um futuro comum.
Num tempo em que o individualismo e a fragmentação parecem corroer os laços sociais, importa, pois, regressar à pergunta fundamental: como se constitui o sujeito? A calada psicanálise vai-nos revelando que não nascemos nem livres nem completos, mas que nos vamos fazendo ao converter impulsos em palavras, assim como firmezas toscas em desejos compartilháveis. É nesse decurso de representação, simbolização e de encontro com o outro que se forma, não apenas o “eu”, mas esse decurso comum, e possível, a que chamamos cultura, porventura uma cultura idealmente livre e democrática.
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