… UM GESTO SIMPLES, UMA EXIGÊNCIA HUMANA
Em tempo de Natal, sinto-me deliberadamente num lugar sem
fronteiras. Um momento onde a convicção não se apronta em separação, a dúvida
em rejeição, mas simplesmente o espírito humano procura reconhecer-se. Ao longo
do tempo fui aprendendo a escutar o Natal para além da sua inscrição religiosa,
não como preceito a repetir, experiência a viver ou simples memória ritual, mas
sim como uma instância presente.
O que este tempo nos devolve, antes de mais nada, é relembrar
a consciência da nossa fragilidade. O humano começa sempre pequeno: exposto,
dependente e entregue. Não é apesar dessa fragilidade que merece cuidado, mas
exatamente por causa dela. A figura da criança, incessantemente repetida, pese
embora tantas vezes esquecida, relembra-nos que ninguém se cuida por si e que a
vitalidade carece de cuidado para persistir no tempo.
Talvez seja aqui que o Natal se aproxima de uma verdade
humana mais funda, sobretudo quando a fragilidade deixa de ser lida como desvio
e passa a ser reconhecida como vínculo. Quando o simples, o rejeitado, o velho
e o emigrante deixam de figurar como problemas a gerir e passam a valer-se como
rostos a não abandonar.
O Natal não surge para desmentir o mundo tal como ele se
apresenta, nem para o reabilitar por negação. Antes, e brevemente, abre um
intervalo no tempo em que o outro pode deixar de ser abstrato e tornar-se
próximo, não por semelhança, mas precisamente pela diferença. Nesse instante
descontínuo, somos chamados à responsabilidade antes da avaliação, à atenção
antes do juízo. O rosto do outro fala primeiro e a sua presença basta para nos tornar
necessários.
O Natal não nos exige vaidades nem gestos teatrais. Pede
contenção, pede que não acrescentemos peso ao peso do sofrimento, que não formalizemos
a crueza, assim como não abandonemos o humano por tédio ou desprezo. O Natal já
não pertence apenas a uma tradição religiosa, pese embora nela tenha tido
origem. Ao longo do tempo, o Natal, tornou-se uma herança comum, claramente aberta
solicitando um horizonte mais amplo e compartilhável. É nesse sentido que, para
mim, o Natal não é um credo a professar, mas uma prática a assumir. Melhor dizendo,
um gesto simples e exigente que reconfirma que ninguém é dispensável, nenhuma
vida é irrelevante e que a humanidade só existe quando é continuamente
reconhecida, cuidada e exercida. Logo, sejamos simples e exigentes a caminho de
um Natal feliz.
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