segunda-feira, dezembro 22, 2025

GENEALOGIA DE UM PRESENTE FRAGMENTADO

                                    3. Um caminho entre a crítica e a ideologia

Vivemos um tempo em que a transparência da verdade se obscurece, o desprezo pela racionalidade se aperfeiçoa e a exaltação de um subjetivismo absoluto se exibe orgulhosamente no palco da metáfora teatral. A produção cultural, sobretudo de matriz norte‑americana, difunde‑se no campo da moralidade existencial e dos seus refinamentos, dando voz ao engenho ideológico basilar do capitalismo tardio, marcado pela globalização, pela financeirização extrema e pela expansão do consumo a todas as esferas da vida.

Neste processo, o antagonismo político real é progressivamente deslocado e neutralizado, substituindo‑se a luta de classes por divergências culturais e de valores. A clivagem fundamental entre capital e trabalho é, assim, habilmente silenciada por outras matérias que, não sendo irrelevantes, ocupam o lugar do conflito económico e social efetivo, funcionando como seus substitutos simbólicos. Questões como o aborto, a identidade de género, a raça, a religião, as linguagens ou os costumes acabam por contribuir para que o todo social se conserve submisso, e silencioso, perante a lógica do capital e os seus interesses.

Assistimos, por isso, a múltiplos desacordos que, curiosamente, convergem num ponto essencial: a aceitação do capitalismo como dado lógico e natural. Em campos aparentemente opostos, a economia é tratada como competência técnica e não como terreno de disputa política, sendo reduzida a uma questão moral ou cultural. O resultado é um conflito intenso em aparência, mas estéril em consequências transformadoras. A identidade, enquanto forma ideológica dominante, reorganiza injustiças estruturais sob a forma de exigências de reconhecimento simbólico, funcionando como uma ideologia amplamente compatível com o mercado.

Os conflitos sociais e políticos passam, assim, a ser formulados em termos de valores culturais e morais, nos quais grupos opostos disputam influência sobre a identidade nacional, a educação, a religião ou os costumes, utilizando a “cultura” como principal campo de batalha. Os adversários deixam de ser concebidos como portadores de interesses materiais divergentes e passam a ser representados como incompetentes, perversos ou imorais, isto é, como perigos fundamentais. O resultado manifesta‑se num estado de indignação moral permanente, que bloqueia a possibilidade de uma política emancipatória efetiva.

A chamada guerra cultural designa, deste modo, uma disputa ideológica em torno de modos de vida, hábitos, convicções e valores, na qual diferentes grupos procuram assegurar a hegemonia cultural para influenciar a política e o pensamento social. Não se trata de uma oposição direta no plano material, mas de um confronto situado no domínio das ideias, visível, por exemplo, nos debates sobre família, religião ou direitos. Este processo produz simplificações abusivas, gera envolvimentos emocionais intensos e evita, de forma sistemática, disputas centrais sobre redistribuição, propriedade e trabalho. A governação passa, então, a operar sobretudo pela reação emocional, pelo entusiasmo ou pela agitação simbólica, explorando afetos fortes e mobilizações imediatas.

O paradoxo é evidente. Como observa Žižek, quanto mais intenso se torna o antagonismo cultural, menor é o alcance da verdade política real e concreta. O confronto simbólico, embora pareça radical, preserva intacta a estrutura económica, ao mesmo tempo que consome a energia crítica da sociedade. Eis o teatro ideológico que tendemos a aceitar: uma falsa polarização que funciona como mecanismo de contenção do antagonismo social. Não é o excesso de conflito que define o presente, mas antes a deslocação calculada do antagonismo, cuidadosamente instalado no lugar errado, como substituto do conflito essencial. 

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