Um caminho entre a crítica e a ideologia
Pensar a genealogia não como a simples descoberta linear de
algo já conhecido no passado, mas como um processo ativo de reinterpretação,
reapropriação e disputa de sentidos, implica reconhecer que toda a genealogia
é, simultaneamente, um ato de participação e de partilha. Não se trata apenas
de recuperar origens esquecidas, mas de interrogar os modos como essas origens
foram silenciadas, distorcidas ou instrumentalizadas, quase sempre em função de
interesses sociais, políticos ou simbólicos. A genealogia, nesse sentido, não é
neutra: ela serve sempre um todo, uma comunidade, um projeto, uma causa ou uma
posição subjetiva.
Partindo desta perspetiva, importa reconhecer que os
diferentes patamares do pensamento contemporâneo assentam frequentemente em
raízes omitidas ou seletivamente evocadas. É nesse quadro que se torna
pertinente uma leitura genealógica, ainda que necessariamente simplificada, do
percurso que vai do pós-estruturalismo ao que hoje se designa, de forma
polémica e imprecisa, como pós-modernismo real.
O pós-estruturalismo surge, desde logo, como uma rejeição
explícita da ideia de totalidade estável, fundada em estruturas fixas e
universais. Mais do que uma escola de pensamento coesa, ele constitui um campo
heterogéneo de aproximações teóricas que partilham alguns traços fundamentais:
a instabilidade do significado, a crítica das metanarrativas, a articulação
entre poder e conhecimento, a conceção do sujeito como fragmentado e a
centralidade de metodologias de desconstrução.
De forma sumária, o significado deixa de ser concebido como
algo fixo ou garantido, passando a ser entendido como fluido, disputado e
dependente da interpretação. As grandes narrativas explicativas, filosóficas,
políticas ou históricas, são colocadas sob suspeita, enquanto o conhecimento é
pensado como inseparável das relações de poder que o produzem e legitimam. O
sujeito moderno, coerente, racional e autónomo, cede lugar a um sujeito
fragmentado, constituído por múltiplas forças sociais, simbólicas e
discursivas. É neste contexto que se multiplicam as dicotomias através das
quais se organizam as identidades e as diferenças.
A teoria crítica pós-moderna, herdeira da Teoria Crítica
clássica, irá integrar elementos do pós-estruturalismo e do pós-modernismo,
produzindo uma combinação ambígua: por um lado, mantém uma crítica vigorosa ao
capitalismo; por outro, conserva ainda uma confiança residual na razão, na
objetividade e numa perspetiva de emancipação universal, ancorada tanto no
marxismo como no legado iluminista que sustenta as democracias liberais
modernas.
Num desenvolvimento mais recente, e particularmente visível
no espaço cultural anglo-americano, emerge aquilo que tem sido designado como
ativismo identitário woke. Este caracteriza-se por uma atenção
sistemática às injustiças estruturais, por um foco acentuado nas identidades
dos grupos marginalizados e por uma vigilância constante das linguagens e dos
discursos enquanto lugares privilegiados de exercício do poder. A crítica aos
privilégios, a promoção de terminologias consideradas inclusivas e a disputa
ativa por reconhecimento, representação e acesso a espaços de decisão
tornaram-se marcas centrais deste ativismo. Os campos da Inclusão e da
Diversidade passam, assim, a funcionar como arenas de luta simbólica e
institucional.
É neste ponto que Žižek introduz a noção, implícita mais
do que sistematizada, de pós-modernismo real. Não se trata apenas de um
conjunto de teorias académicas, mas de um modo de funcionamento efetivo do
espaço social, cultural e político: um verdadeiro software ideológico
que estrutura práticas, sensibilidades e formas de legitimação moral. Embora
frequentemente associado ao woke, Žižek recusa uma relação causal
direta e simplista, criticando sobretudo o seu carácter moralizante, a sua
redução da política a gestos simbólicos e a sua fragilidade teórica.
Contra a leitura que apresenta o pós-modernismo como puro
abandono da verdade, rejeição da racionalidade ou celebração de um subjetivismo
absoluto, Žižek insiste que essa representação resulta, em grande medida, da
chamada “guerra cultural” norte-americana. Trata-se de um conflito entre grupos
sociais que disputam a autoridade simbólica sobre valores, crenças, práticas e
narrativas legitimadoras da ordem social.
Para Žižek, o pós-modernismo deve ser entendido menos como
uma rendição ao irracionalismo e mais como uma resposta à crise das grandes
narrativas da modernidade. Ele funciona como um diagnóstico das novas formas de
poder difuso, associadas à proliferação de mecanismos subtis de controlo,
influência e normalização social. Simultaneamente, abre espaço para novas
formas de pensar o sujeito, o conflito político e a ideologia, ainda que,
muitas vezes, o faça de modo insuficiente ou contraditório.
Nada disto equivale, contudo, a uma adesão ao irracionalismo filosófico. Žižek não abandona a razão nem a crítica racional; pelo contrário, procura reinscrevê-las numa análise que reconhece os limites do racionalismo clássico sem ceder à ideia de que a realidade social possa ser compreendida apenas através da emoção, da intuição ou da moralização imediata. O seu gesto crítico visa precisamente recuperar a densidade teórica e política perdida quando a crítica se reduz a performances simbólicas ou a juízos morais descontextualizados.
O pós-modernismo real, tal como Zizek o interpela, não é, portanto, uma filosofia a rejeitar em bloco, mas um campo de tensões que exige análise rigorosa; entre política e ideologia, entre emancipação e gestão simbólica da diferença, entre a promessa de libertação e a sua captura pelos dispositivos contemporâneos de poder. Pensemos, pois, neste exigente tópico...
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