Continuando o tema do texto anterior, importa reafirmar que vivemos sob o domínio de uma lógica capitalista que, mais do que à sua articulação com a economia e modos de produção, adentra no mais íntimo do sujeito e da sua subjetividade. A ideologia, para além das ideias políticas ou arrazoados de poder explícito, age enquanto habilidade silenciosa no que à colonização interior do humano diz respeito. Libertando o encorpado das ideias e relações económicas e sociais, a presença capitalista mostra-se como neutra, inevitável e natural, embutindo no campo cultural um sedimento de identificações cujo valor central situa-se no fetiche da mercadoria.
Nesse processo, os elementos culturais oferecidos como
referenciais identificatórios já não têm por base laços comunitários, éticos ou
históricos, mas sim a promessa de uma certa figura social nos objetos de
consumo. A obra subjetiva passa, então, a realizar-se em torno de ausências
encobertas por presenças ilusórias, dissonância essa que provoca trapaceira
tristeza. Um alienado sofrimento sutil, embora persistente, que decorre de uma
discordância entre o que se deseja e o que é apresentado como desejável. Trata-se
de uma inquietação contínua que não encontra descanso, porque a compra nunca
satisfaz plenamente o desejo que ela mesma produz.
Esse mal-estar estimula o sujeito na busca por suavização
imediata, ainda que passageira. E é precisamente essa urgência que as doutrinas
capitalistas estudam, exibindo saídas imediatas para angústias que, na verdade,
são estruturais. O ruído ideológico, nesse sentido, atua como uma invocação
sedutora: consome-se para pertencer, consome-se para ser, consome-se para não
sentir a dor do vazio. A adesão ao consumo, portanto, não é um ato puramente
racional, mas uma resposta emocional, quase compulsiva, ao sofrimento psíquico
que a própria lógica capitalista ocasiona.
Neste conjunto de circunstâncias, torna-se fundamental pensar a função da fantasia na constituição da subjetividade. A fantasia, longe de ser um devaneio infantil ou mera fuga à realidade, forma-se como uma arte inconsciente onde se simulam desejos que, por sua natureza incestuosa ou proibida, não podem ser realizados. Sob o olhar psicanalítico, a fantasia é a tentativa do sujeito de organizar seu desejo frente à interdição simbólica, representada pela repressão.
Ora, essa arte fantasmática tanto pode proporcionar uma
satisfação simbólica, através da imaginação, quanto persuadir o sujeito a
realizar alguma coisa no mundo real. É essa duplicidade que converte a fantasia
numa terra arável ao lucrativo proveito das crenças ideológicas. A palavra
capitalista, ao aprisionar essas ocorrências inconscientes, regala objetos de
consumo como se fossem compatíveis com os objetos de desejo. O desejo é, assim,
aprisionado, desencaminhado, tornado vazio e reencenado num conjunto de
incondicionais frustrações e recomeços.
Interpretamos, assim, a realidade através da lente bicôncava
das nossas fantasias, constantemente colonizadas por discursos ideológicos,
causando uma própria realidade tornada distorcida. A perceção é, deste modo
sarcástico, contaminada por esperanças sem recheio, perdendo o sujeito a
capacidade de discernir entre o que deseja e o que lhe é posto como desejo.
Essa intrusão na descuidada perceção é, talvez, a pista mais pérfida da
doutrina cultural contemporânea, pois ela não apenas diz ao sujeito o que deve
querer, mas também como fazer sentir-se no imediato da sua relação a isso.
A minha experiência permite-me dizer que a subjetividade
moderna é atravessada por uma inquietação vulgarizada, um incómodo persistente
que não se transforma, deslocando-se de objeto em objeto, de esperança em
esperança. O sobressalto não é apenas confuso: é ocasionado, fomentado e
reaproveitado pela própria e insistente ideologia que garante remediar. Eis o
ilogismo da subjetividade em tempos de um capitalismo extraviado, que se
conforma por aquilo que faz sofrer.
Sem comentários:
Enviar um comentário