Somos catequizados a pensarmo-nos como livres. Desde cedo, aprendemos a nos ver como propulsores de nossas escolhas, senhores da nossa vontade, arquitetos do nosso destino. Mas essa ideia de liberdade, tão sedutora quanto confortável, disfarça um enredo mais profundo que opera silenciosamente sob a superfície da consciência, ou seja, a conspiração da ideologia.
A ideologia não é apenas informação política manipulada, nem
um conjunto de ideias que se escolhe ou rejeita. Ela é o campo simbólico onde o
sujeito se constitui. É o que nos chama, nos nomeia, nos oferece um lugar no
mundo. E é ao responder a esse apelo que nos tornamos sujeitos, sujeitos
intimados a responder, como diria Althusser. O paradoxo é evidente: só nos
tornamos sujeitos ao nos submetermos. É nessa curvatura, entre liberdade e
sujeição, que a ideologia age com mais impulso.
Mas essa sujeição não se dá apenas no plano da consciência.
Como sublinha Leila Longo, há uma ordem inconsciente que nos força a ordenar.
Desejamos o que, talvez, nem saibamos, e ainda assim perseguimos o que nunca se
estabiliza. Nosso desejo é deslizante, insatisfeito, sempre orientado para um
“outro” que nunca se entrega por completo. E é justamente esse desejo,
instável, insubmisso, inexplicável, que a ideologia captura e se ajusta em
práticas materiais, em atos que acreditamos nossos, mas que respondem a lógicas
alheias.
Essa moldura teórica ajuda a compreender o que estamos vivendo hoje nas democracias europeias. Em meio ao medo, à instabilidade e ao desencanto com as promessas não cumpridas do Estado democrático, emerge com força o discurso da extrema-direita, não como uma rutura irracional, mas como uma forma precisa de interpelação ideológica. Esses discursos oferecem sentido ao sujeito fragilizado. Convocam-no como cidadão ameaçado, patriota humilhado, corpo cercado por inimigos internos e externos. O inimigo torna-se funcional, canalizando o desejo inconsciente, encarnando o obstáculo à plenitude, legitimando a violência simbólica e, muitas vezes, como a história nos lembra, servindo-se da brutalidade física.
É aí que a democracia revela sua vulnerabilidade, pois ao
perder sua capacidade simbólica e representativa de nomear o sujeito, de
acolher suas faltas, angústias e desejos, ela deixa espaço para que outros
discursos o façam. E a extrema-direita cumpre esse papel com ríspida perícia
retórica. Seu apelo não é racional, é, sim, visceralmente emocional. Ela
promete totalidade onde há falha, identidade onde há ambiguidade, segurança
onde há complexidade. E o sujeito, desejante e desamparado, acolhe.
O mais inquietante é perceber que essa resposta não é
consciente. Não se trata de simples adesão a um programa, mas de uma
identificação inconsciente com lugares simbólicos que oferecem uso, fruição e
pertença. A ideologia, nesse ponto, mostra a sua face mais eficiente, ou seja,
não convence, captura.
Pensar o sujeito nessa hibridação, livre e sujeitado,
consciente e inconsciente, é reconhecer a fragilidade daquilo que chamamos de
determinação. E talvez o desafio político do nosso tempo seja justamente
reinventar um espaço democrático capaz de falar ao desejo, sem cedê-lo ao
autoritarismo. Porque, se não nomearmos o sujeito, outros o farão, e nem sempre
em nome da liberdade. Em síntese, apetece-me dizer que a fragilidade
democrática começa no sujeito e na cultura política que o envolve.
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