sábado, julho 05, 2025

O RETROVISOR DO MORALISMO

Há escritos que expelem, pela palavra, as ideias com que se enjoam. Cavam, com a sachola do passado, os escombros de um passado poetizado, fabulizando que ali se encontra a verdade, a ordem e o lugar modelar. O capítulo 5 do livro em questão (Workismo e sexualidade: identidade, polaridade e conjugalidade) é precisamente um desses burlescos escritos. Não se trata de um tino reflexivo, mas sim de uma exercitação clericalista, simulada de uma humana reanálise cultural. E o que mais assombra não é tanto o sentimento melancólico do preceito, mas o seu propósito de se transformar, de novo, em obrigação.

Sob a aparência de uma cantiga sobre identidade e conjugalidade, o que se exibe é um claro conservadorismo que busca reacomodar, como se fossem eternas, hierarquias de género que a dignidade humana já não consente. Confere-se ao homem e à mulher atribuições invariáveis, naturais e estruturais, como se a história, a luta feminista, a investigação científica e o pensamento crítico não tivessem existido. É um texto que inspira piedade ao recusar reconhecer que as atribuições de género não são intimidações da natureza, mas construções históricas, sociais, económicas e simbólicas.

O conceito de "polaridade sexual", fundamental no texto, ressoa, talvez, à ciência do século XIX, seduzida pelas vozes eloquentes das pregações do moralismo conservador. A diferença entre o homem e a mulher é metamorfoseada num contraste utilitário: o homem gere, a mulher recolhe; o homem abriga, a mulher toma conta; o homem determina, a mulher advinha. Esta dualidade reducionista não só empobrece a prova humana, como ratifica desigualdades e abusos estruturais. Não há liberdade possível quando os corpos nascem com uma sequência descrita.

O quadro familiar costumeiro, exposto como abrigo contra o alvoroço contemporâneo, não dá atenção a tudo o que a crítica sociológica já revelou, ou seja, que a família não é uma coisa sem fim, mas uma forma histórica de organização relacional, adaptada por conveniências económicas, religiosas e familiares. A obsessão, nem sempre compreensível, em preservar esta configuração única serve, não raras vezes, para negar a existência e a legitimidade de outras formas de vida, tais como famílias monoparentais, homoparentais, relações não normativas, uniões outras, não codificadas pelo casamento. E, sobretudo, quando não serve para recuperar o domínio do homem sobre o corpo e o fadário da mulher.

O que este capítulo em análise sinaliza é mais do que conservadorismo: é uma assustadora moral disfarçada de saber cultural. Perante as mudanças das últimas décadas, tais como a maior visibilidade LGBTQ+, as redefinições dos papéis parentais e a abertura das identidades de género, certos campos ideológicos insurgem-se como se estivessem sob ataque. Mas o que está em causa não é o seu direito de viver como preferirem, mas sim a sua determinação de impossibilitar os outros de viver de forma diferente.

Todavia, este tipo de palavreado não é inofensivo. Sustenta o despropósito de um ressaibo difuso e perigoso, que se volta contra tudo o que a modernidade trouxe de libertador, bem como contra a ideia de que ninguém deve ser propriedade de ninguém, de que os papéis de género não são destino e de que a família não é uma captura, mas sim uma entre muitas compleições possíveis.

Declinar este tipo de pensamento não é propagandear o caos nem a desordem amorzeira. É, somente, assegurar que a dignidade humana impõe, como condição, a liberdade, a igualdade e o reconhecimento da diferença. Que ser mulher ou ser homem hoje não é aceitar um prenúncio, mas sim um poder de se descobrir. Que amar, cuidar, conviver e criar filhos são experiências humanas demasiado significativas para serem reguladas por dogmas arcaicos. A verdadeira crise não é a da família ou da identidade: é a incapacidade de certas “lábias” em aceitar a diversidade como valor, e não como prenúncio do mal. Essa crise não se resolve com nostalgia; resolve-se com a coragem crítica que a dignidade humana exige.

Para terminar, diria que este capítulo aqui tratado, como outros tantos que tentam ressuscitar a velha ordem sob o disfarce do pensamento, deve ser lido com o olhar crítico que a história nos ensinou a aperfeiçoar. Defender a igualdade, a liberdade sexual, a diversidade de famílias e o fim das hierarquias de género não é ceder à moda, nem render-se ao “politicamente correto”. É, simplesmente, continuar o caminho da justiça e da dignidade para todos os seres humanos e da humanidade que se busca. 

Sem comentários:

Enviar um comentário