Há escritos que expelem, pela palavra, as ideias com que se
enjoam. Cavam, com a sachola do passado, os escombros de um passado poetizado,
fabulizando que ali se encontra a verdade, a ordem e o lugar modelar. O
capítulo 5 do livro em questão (Workismo e sexualidade: identidade,
polaridade e conjugalidade) é precisamente um desses burlescos escritos.
Não se trata de um tino reflexivo, mas sim de uma exercitação clericalista,
simulada de uma humana reanálise cultural. E o que mais assombra não é tanto o
sentimento melancólico do preceito, mas o seu propósito de se transformar, de
novo, em obrigação.
Sob a aparência de uma cantiga sobre identidade e
conjugalidade, o que se exibe é um claro conservadorismo que busca reacomodar,
como se fossem eternas, hierarquias de género que a dignidade humana já não
consente. Confere-se ao homem e à mulher atribuições invariáveis, naturais e
estruturais, como se a história, a luta feminista, a investigação científica e
o pensamento crítico não tivessem existido. É um texto que inspira piedade ao
recusar reconhecer que as atribuições de género não são intimidações da natureza,
mas construções históricas, sociais, económicas e simbólicas.
O conceito de "polaridade sexual", fundamental no
texto, ressoa, talvez, à ciência do século XIX, seduzida pelas vozes eloquentes
das pregações do moralismo conservador. A diferença entre o homem e a mulher é
metamorfoseada num contraste utilitário: o homem gere, a mulher recolhe; o
homem abriga, a mulher toma conta; o homem determina, a mulher advinha. Esta
dualidade reducionista não só empobrece a prova humana, como ratifica
desigualdades e abusos estruturais. Não há liberdade possível quando os corpos
nascem com uma sequência descrita.
O quadro familiar costumeiro, exposto como abrigo contra o alvoroço contemporâneo, não dá atenção a tudo o que a crítica sociológica já revelou, ou seja, que a família não é uma coisa sem fim, mas uma forma histórica de organização relacional, adaptada por conveniências económicas, religiosas e familiares. A obsessão, nem sempre compreensível, em preservar esta configuração única serve, não raras vezes, para negar a existência e a legitimidade de outras formas de vida, tais como famílias monoparentais, homoparentais, relações não normativas, uniões outras, não codificadas pelo casamento. E, sobretudo, quando não serve para recuperar o domínio do homem sobre o corpo e o fadário da mulher.
O que este capítulo em análise sinaliza é mais do que
conservadorismo: é uma assustadora moral disfarçada de saber cultural. Perante
as mudanças das últimas décadas, tais como a maior visibilidade LGBTQ+, as
redefinições dos papéis parentais e a abertura das identidades de género, certos
campos ideológicos insurgem-se como se estivessem sob ataque. Mas o que está em
causa não é o seu direito de viver como preferirem, mas sim a sua determinação
de impossibilitar os outros de viver de forma diferente.
Todavia, este tipo de palavreado não é inofensivo. Sustenta
o despropósito de um ressaibo difuso e perigoso, que se volta contra tudo o que
a modernidade trouxe de libertador, bem como contra a ideia de que ninguém deve
ser propriedade de ninguém, de que os papéis de género não são destino e de que
a família não é uma captura, mas sim uma entre muitas compleições possíveis.
Declinar este tipo de pensamento não é propagandear o caos
nem a desordem amorzeira. É, somente, assegurar que a dignidade humana impõe,
como condição, a liberdade, a igualdade e o reconhecimento da diferença. Que
ser mulher ou ser homem hoje não é aceitar um prenúncio, mas sim um poder de se
descobrir. Que amar, cuidar, conviver e criar filhos são experiências humanas
demasiado significativas para serem reguladas por dogmas arcaicos. A verdadeira
crise não é a da família ou da identidade: é a incapacidade de certas “lábias”
em aceitar a diversidade como valor, e não como prenúncio do mal. Essa crise
não se resolve com nostalgia; resolve-se com a coragem crítica que a dignidade
humana exige.
Para terminar, diria que este capítulo aqui tratado, como outros tantos que tentam ressuscitar a velha ordem sob o disfarce do pensamento, deve ser lido com o olhar crítico que a história nos ensinou a aperfeiçoar. Defender a igualdade, a liberdade sexual, a diversidade de famílias e o fim das hierarquias de género não é ceder à moda, nem render-se ao “politicamente correto”. É, simplesmente, continuar o caminho da justiça e da dignidade para todos os seres humanos e da humanidade que se busca.
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