Entre a fragmentação e a pertença, pensar quem somos
neste tempo instável
Ao ler Stuart Hall em A Identidade Cultural na
Pós-Modernidade, vou encontrando mais do que uma observação académica. O
que me vai seduzindo é a oportunidade de encarar a identidade não como uma
fatalidade definida, mas como uma construção em movimento. Hall mostra que o
sujeito moderno, outrora imaginado como único, racional e coerente, divide-se e
reinventa-se no mundo contemporâneo. Essa transição da identidade enquanto
essência para a identidade como processo restitui-me uma interrogação íntima: quem
somos nós, afinal, quando o chão da certeza se desvanece?
A sua resposta não é uma convenção social, mas sim uma
descoberta: somos feitos de narrativas, de pertenças, de diálogos e também de
interrupções e quebras. O “eu” não está fechado numa resiliência imutável, mas
abre-se ao jogo das relações sociais, dos discursos que nos atravessam e das
mudanças do tempo histórico. Essas ruturas, que à primeira vista podem parecer
perda, revelam-se, afinal, oportunidades. Se já não podemos ser definidos por
uma unidade inteiriçada, podemos ser múltiplos, mudáveis e abertos.
Neste mundo globalizado, onde as culturas se cruzam, onde as
fronteiras se esbatem e ao mesmo tempo se erguem com violência, a identidade
tornou-se um campo de batalha. Nela se joga tanto o poder de impor narrativas
dominantes como a resistência dos que não aceitam ser reduzidos ao silêncio. A
identidade é, hoje, linguagem de conflito e também de reconhecimento. Das
contendas de género às de etnia, das lutas locais às redes sociais globais, não
há arena onde ela não se manifeste.
Por isso o conceito vem adquirindo uma relevância fulcral. Reconhecer o referencial identitário é admitir que todos precisamos de pertenças e narrativas que nos deem sentido, mas é também aceitar que essas pertenças são atravessadas por contradições e deslocamentos. A identidade não se reduz a um “quem sou”, mas abre-se sempre a um “como me torno com os outros”.
Ler Stuart Hall é, assim, reconhecer que pensar a identidade
é cuidar da própria condição humana nos tempos de hoje e do futuro. Vivemos uma
época instável, de mudanças rápidas e de conflitos intensos, mas também um
tempo fértil em criatividade e reinvenção. É nesse espaço entre pertença e
abertura, entre memória e evolução, que podemos viver o presente com mais
clareza. E talvez aqui resida a maior e melhor leitura: não temer a
fragmentação, mas aprender a viver com ela como parte do que somos.
É por tudo isto que, mais do que um conceito teórico, a
identidade tornou-se hoje um verdadeiro campo de batalha. Nela se confrontam
narrativas que procuram impor uma visão única do mundo e vozes que reclamam o
direito à diferença. Nela se jogam estratégias de poder e experiências de
resistência. Pensar a identidade, neste tempo, é reconhecer que estamos sempre
no meio dessa luta, entre forças que tentam reduzir e forças que tentam
libertar. E talvez a tarefa maior seja a de transformar a batalha da identidade
num espaço de criação, onde nos possamos reinventar - a nós mesmos e ao comum
que ... nos une.
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