Desde o início, o ser humano aprendeu a sobreviver não pela
força, mas pelo encontro. A fraqueza física tornou-se vantagem evolutiva quando
descobrimos o poder da cooperação. Falar, compreender, cuidar e enganar foram
artes que nos ergueram acima das outras espécies. A nossa inteligência é, antes
de tudo, inteligência social, um órgão da convivência. Como penso, William Von
Hippel sugere que o salto evolutivo que nos formou foi menos biológico do que
comunitário.
Mas é aqui que o paradoxo começa: o mesmo laço que nos
salvou é o que agora nos aperta. A vida em comum, que outrora garantia
sobrevivência, converteu-se em fonte de inquietação. A consciência, produto da
relação com o outro, tornou-se também ferida que nunca cessa de sangrar.
Vivemos num mundo cada vez mais interligado e, paradoxalmente, nunca estivemos
tão sós.
Freud viu nesta ferida o preço da civilização. O sujeito
moderno é herdeiro das pulsões recalcadas que a cultura exige para manter-se de
pé. A cooperação social implica a renúncia do desejo, e o mal-estar instala-se
como eco dessa troca desigual. A felicidade paga-se com culpa, e o laço social
tece-se de repressões necessárias. Assim, o progresso técnico, moral e político
não elimina o sofrimento, apenas o refina.
Marx, por sua vez, reconheceu na mesma história um desvio mais cruel. Aquilo que em nós era partilha, como o trabalho comum e o gesto solidário, foi transformado em mercadoria. O humano tornou-se instrumento do lucro, e o vínculo social, reduzido à concorrência. A natureza cooperante do homem foi colonizada pela lógica da produção. Se Freud via o sofrimento como destino cultural, Marx via-o como resultado histórico, ou seja, não sofremos por natureza, mas por sistema.
Foucault, recordo, desmontou a ideia de um sujeito que se
emancipa libertando-se das amarras sociais. Para ele, somos feitos das mesmas
forças que nos oprimem. A linguagem, a moral, a ciência e até o desejo tornam-se
produtos de dispositivos de poder. A nossa autonomia é uma forma de vigilância
interior. O “eu” moderno não é tanto conquista, mas invenção, melhor dizendo, o
efeito de um olhar que nos molda por dentro.
Diante destas três inquietações de pressentimento, o
paradoxo social de Von Hippel parece-me acrescentar uma nova, mas intensa luz.
O que a biologia descreve como herança da cooperação, a cultura transforma em
tensão. O homem vive dividido entre a nostalgia da tribo e a vertigem da
liberdade; entre a voz do grupo e o silêncio do pensamento. O mesmo impulso que
o leva a construir pontes fá-lo também erguer muros.
Somos, talvez, a única espécie que se desafia por ser
social. Precisamos do outro para nos reconhecer e, ao mesmo tempo, ansiamos por
libertar-nos dele. A nossa evolução trouxe-nos linguagem, consciência e
imaginação, mas também comparações, invejas e solidão. O espelho do outro, que
nos dá forma, devolve-nos igualmente a sombra.
O paradoxo social é, pois, a condição trágica do sujeito
moderno, pois nascemos da comunidade, não obstante sonhamos com a autonomia. É
nesse intervalo que se inscreve tanto a nossa angústia como a nossa
criatividade. Cada gesto humano, do amor à política, da arte à revolta, tenta
reconciliar o insanável, ou seja, o desejo de pertença e o desejo de liberdade.
Talvez seja nessa perturbação que ainda hoje se joga o que chamamos humanidade, ou seja, não procurando a perfeição da espécie, mas sim a sua imperfeita busca de sentido.
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