Sinto viver um tempo em que o meu íntimo se desloca. Tudo o que me parecia seguro e estável, como obrigação, costume, urgência e precisão, vai perdendo confiança e mérito. A vida, esse desgastado espelho de convénios, parece-me desunir-se em silêncio. E não só, pois surge algo diferente, não porque se ofusque, mas sim porque se vê de um outro jeito.
Durante muito tempo fomos aprendendo a viver segundo o olhar dos outros. O
tempo sempre medido, o amor catalogado e o corpo regulado. A vida, no que lhe pertence,
reduzida ao cálculo e à respiração do proveito. Mas por baixo dessa excêntrica sagacidade
de normalidade há sempre um murmúrio, um apelo surdo da intenção de reiniciar.
Mudar a perceção torna necessário perceber e apreender esse murmúrio.
Torna-se inevitável transfigurar o ponto de vista da submissão pela ideia da
criatividade e inspiração. Torna-se necessário alcançar a ideia e o sentido de que
o prazer não é um luxo, mas o modo natural do ser quando já não sente receio
pelo mundo e pela vida que o estimula.
Viver, sendo uma palavra simples, existe quase esquecida. Torna-se
um viver sem finalidade, sem limite, sem cenário e representação. Um viver como
quem entrega à vida o que lhe foi furtado, ou seja, a sua alegria, dinamismo e surpresa.
A contraversão de ângulo não se faz uma doutrina, mas sim um
gesto, um fácil e ágil movimento do olhar que transfigura a paisagem na sua
totalidade. Quem o faz, mesmo não o reconhecendo, já despertou a indignação. Porque
o verdadeiro poder, o único que liberta, é o de abrir os olhos e ver esse mundo
às claras.
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