sexta-feira, outubro 10, 2025

O PODER DE ABRIR OS OLHOS

Sinto viver um tempo em que o meu íntimo se desloca. Tudo o que me parecia seguro e estável, como obrigação, costume, urgência e precisão, vai perdendo confiança e mérito. A vida, esse desgastado espelho de convénios, parece-me desunir-se em silêncio. E não só, pois surge algo diferente, não porque se ofusque, mas sim porque se vê de um outro jeito.

Durante muito tempo fomos aprendendo a viver segundo o olhar dos outros. O tempo sempre medido, o amor catalogado e o corpo regulado. A vida, no que lhe pertence, reduzida ao cálculo e à respiração do proveito. Mas por baixo dessa excêntrica sagacidade de normalidade há sempre um murmúrio, um apelo surdo da intenção de reiniciar.

Mudar a perceção torna necessário perceber e apreender esse murmúrio. Torna-se inevitável transfigurar o ponto de vista da submissão pela ideia da criatividade e inspiração. Torna-se necessário alcançar a ideia e o sentido de que o prazer não é um luxo, mas o modo natural do ser quando já não sente receio pelo mundo e pela vida que o estimula.

Viver, sendo uma palavra simples, existe quase esquecida. Torna-se um viver sem finalidade, sem limite, sem cenário e representação. Um viver como quem entrega à vida o que lhe foi furtado, ou seja, a sua alegria, dinamismo e surpresa.

A contraversão de ângulo não se faz uma doutrina, mas sim um gesto, um fácil e ágil movimento do olhar que transfigura a paisagem na sua totalidade. Quem o faz, mesmo não o reconhecendo, já despertou a indignação. Porque o verdadeiro poder, o único que liberta, é o de abrir os olhos e ver esse mundo às claras.

Sem comentários:

Enviar um comentário