sábado, junho 09, 2012

“CHEGO A CASA, TOMO BANHO, SOU OUTRA PESSOA”

 

Título retirado de um testemunho de um operário, inserido no artigo em apreço

operarios__Tarsila_thumb[1]O sociólogo Bruno Monteiro, no Le Monde Diplomatique (edição portuguesa do corrente mês), num artigo intitulado “Armar estrondo”, escreve a respeito da forma como os jovens, enquanto novos operários, se apresentam perante a comunidade na sua relação com as marcas sociais por eles supostamente vividas “de invisibilização, inferiorização e desqualificação” e que (experiencialmente) tramam os seus sentimentos enquanto pessoas. Trata-se de uma temática relevante com múltiplos desenvolvimentos e ramificações possíveis.

Nele se referem os tópicos das marcas de classe, dos sentimentos de inferioridade e do valor funcional das aparências, não ignorando (como é natural) o quadro social e cultural das seduções, das incitações e dos arrebatamentos atuais na sua relação com o “consumo, a novidade e a aparência”, designadamente junto dos jovens operários. Neste entrelaçado de tópicos, procura-se suscitar indicações para a compreensão de comportamentos (discursivos e de atuação) através de “usos diferenciados e diferenciadores” de estratégias por parte daqueles que não se apaziguam à tradicionalidade da envolvência oficinal.

Ao espaço do trabalho opõe-se, em jeito de rutura, um outro que (por rivalidade) desobriga e liberta, todavia pelo conflito e não pela afirmação, o que (como é óbvio) importa diferençar. Neste se intenta então a reparação “por práticas derrogatórias dos vestígios físicos e estatutários impostos pelo trabalho fabril sobre a carne”. Com a permanência da revolta sempre inquieta, os “danos físicos e psicológicos da fábrica” fazem-se sentir suscitando a indispensável regeneração de um corpo e de um espírito “maculado” pelo mundo do trabalho. Inventam-se, a partir daqui, “tentativas de inversão ou de suspensão da dominação” de forma a encobrir (em público) “os sinais caraterísticos da condição operária”.

Na emergência da reinvenção a fazer-se (e sentida como essencial), ganham maneiras imaginativas as “formas de autoapresentação” percebendo-se da importância que “os gestos, as poses ou as palavras” têm “como sinais de reconhecimento e pretensão”. No entanto, a naturalidade (sobrepondo-se à teatralidade encenada) deixa por vezes escapar algumas revelações que, “despidas de intenções deliberadas e programadas”, possibilitam a crueza dos “veredictos sociais, (dos) julgamentos sobre a verdade de alguém e, (muito provavelmente de) uma sentença sobre o seu destino”.

É desta (e nesta) permanente disputa (onde o ser se busca no parecer e se soltam as imagens, os investimentos e os eufemismos) que o ter procura (aí, na agitação dessa desordem) um estatuto (in)devido. Surgem assim as “práticas de estilização dos jovens operários” num mapa diverso que se alarga em tentativas de reinvenções admitidas, sejam elas “exageradas”, “falsificadas” ou “desgraciosas”. Importa aparecer, ser visto, ser reconhecido, sair do anonimato da fábrica e da sua severa condição, um propósito (aliás) bem legítimo de se sentir considerado.

Ao invés, há quem adote a inferioridade social como destino, construindo (através dessa disposição ou aculturação) uma traiçoeira naturalização que, para além de sustentar o surgimento de quadros relacionais de indiferença e de desqualificação, acrescenta à realidade o incremento equivocado de “sentimentos de auto irrisão e autopunição”. Os sinais visíveis daí decorrentes, sejam eles de embaraço, de desconforto ou de inadaptação, acabam assim por confirmar as representações de inabilidade e de insociabilidade “que antecipadamente possam ter sido criadas sobre eles”.

Muitas pistas de reflexão se colocam através do texto aqui referido. O problema da autoapresentação como mediação é um deles e com a convocação deste muitos outros são suscitados, tais como as questões da imagem, da afirmação e da legítima consideração social. Vive-se hoje um tempo de escolaridades prolongadas e de tardias entradas no mundo (da fábrica e) do trabalho. Habita-se uma sociedade de forte apelo consumista, onde o consumo (também) cumpre a sua força e presença sublimativa. As tentativas de estilização das vidas e dos sentimentos constituem, nesta trama, realidades possíveis de “resistência à desqualificação simbólica”. Sem ambição de superiores juízos de valor ou políticos, a questão terminante mantém-se; como lidar (valorizando) esta condição operária, ou melhor, a condição operária sentida como inferior.

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