domingo, outubro 19, 2025

NÃO SIRVO? TALVEZ, MAS EXISTO E SINTO-ME VIVO

“Pequeno texto sobre a arte de não cumprir com dignidade”

Já não tenho fantasias, pois o mundo tem-se tornado um mercado de vidas em saldo. Quem não rende, não presta, e quem não reluz, perde brilho. Mas eu, birrento e de má sorte, continuo persistente, mesmo agora de pilhas gastas. Fala-se em meritocracia, produtividade e excelência, palavras que servem para inocentar a indigência de terceiros. Eu, por mim, prefiro o luxo da imperfeição, pois o não me mover bem tornou-se o meu pequeno ato de indisciplina.

A vida sempre me quis capaz e, se possível, eficaz. Eu ofereci-lhe apenas a qualidade de ser demorado. Quer-me animado e eu proporciono-lhe a irónica oposição. Quer-me por inteiro, eu proponho-lhe frações e, se possível, não deixo de embolsar caro. Enquanto eles medem sucesso em cifras e seguidores, eu coleciono perdas com o mesmo cuidado de quem guarda provas de uma espécie em vias de extinção. Ou, melhor dizendo, a dos que ainda sentem decência em não vencer à custa de tudo.

Poder-me-ão imaginar, afinal, muito grosseiro, ultrapassado e de muito blá-blá-blá. Aceito, evitando o achincalho. É bem mais aceitável isso do que servir de estatística ao aludido progresso. Prefiro, pois, sobrar como vestígio sem relevo do que alinhar no desfile dos bem-sucedidos. Sinto-me, certamente, uma brecha consciente, teimando persistir cidadão. Não sirvo alguns, todavia existo e sinto-me bem e bem vivo.

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