sábado, maio 26, 2012

APONTAMENTOS COM RUMO INCERTO POIS INCERTAS SÃO AS DÚVIDAS

 

educacaoadultos_190Começo por dizer que sou daqueles otimistas, que alicerçado em testemunhos intensamente vividos, entendo que o processo Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC) favorece (ou pode favorecer) a criatividade identitária. Todos nós reconhecemos que essa capacidade de nos descobrirmos está estreitamente ligada ao nível e à diversidade dos recursos de que cada um de nós dispõe ou pode dispor. Sejam eles económicos, sociais ou culturais. A fraqueza dos recursos (como toda a gente sabe, até por experiência própria) limita naturalmente a quantidade e a variedade dos si mesmos possíveis.

Esta desmultiplicação de si mesmo, apoiada por recursos suficientes, permite acrescentar novas identidades a um conjunto aberto já diversificado, tornando (assim) a estrutura das personalidades mais ricas e subtis. Pelo contrário, os que têm menos recursos percebem e sentem (com frequência) estas imposições como fatores de intensos incómodos. Qualquer processo identitário supõe distanciamentos (por vezes dolorosos) face às socializações que nos determinaram ou determinam. Esses distanciamentos pressupõem (como é fácil de admitir) pontos de apoio, horizontes de identificação possíveis e recursos adequados que os possam proporcionar.

Sou também daqueles (talvez ingénuos) que acredita que o processo de RVCC pode, neste domínio, produzir trabalho válido. E é neste sentido que vos apresentarei alguns apontamentos em que me apoiarei para alargar um olhar sobre a educação de adultos e do papel que o RVCC pode aqui assumir, na convicção de que para nos fazermos temos de duvidar de algumas certezas e (sobretudo) não recear caminhar para novos rumos, procurando as respostas mesmo que através da incerteza das próprias dúvidas.

1. APONTAMENTO

Os pontos de apoio a um olhar sobre a educação de adultos

Como pontapé de saída, permitam-me que vos exponha uma leitura (minha, naturalmente) de um prefácio de António Nóvoa a um livro de Rui Canário sobre a temática da Educação de Adultos. Ao longo da leitura desse texto senti-me provocado a encaminhar a minha atenção para três elementos que considero fulcrais enquanto pontos de apoio à convocação de um olhar sobre esta realidade, facultando uma visão mais ampla, talvez mais necessária e (sem dúvida) mais disponível para a compreensão e alcance do tema (hoje) aqui em debate.

Quais são, afinal, esses três elementos? Precisamente os elementos tempo, lugar e saberes.

§ Sobre o elemento tempo, o autor leva-me a admitir que a época em que se distinguia o tempo de escola do tempo de vida (ou tempo de trabalho) é um passado que o presente obriga a repensar e, através dessa ponderação, alcançar, imaginar e fazer emergir novas e necessárias ideias e perspetivas sobre as exigências que se colocam à educação em geral e, muito em particular, à educação e formação de adultos.

§ Sobre o elemento lugar, ele incita-me a inquirir como deve a escola, na sua afirmação institucional (aliás) legítima, com um estatuto socialmente justificado e com responsabilidades reconhecidas no campo dos saberes e das qualificações, relacionar-se com outros lugares de educação e de formação, onde as oportunidades educativas acontecem, mais do que se imagina, de um modo igualmente intensivo, útil e marcante sob o ponto de vista pessoal e social.

§ Sobre o elemento saberes, António Nóvoa previne-me, que há muitos saberes e procedimentos que, aparentando ser semelhantes, são claramente desiguais na sua natureza, formando dissemelhanças que convém considerar e reconhecer nas suas diferenças e extensão. Capta-se, de modo intuitivo (e sem correr riscos de aventuras epistemologicamente desnecessárias), que nem todos os saberes cabem no livro da escola nem se produzem nos seus métodos, sem contudo querer diminuir o livro escolar na sua importância, utilidade e autoridade.

2. APONTAMENTO

O homem não é, faz-se … desejavelmente em autonomia, em liberdade e em responsabilidade

Prosseguindo neste desafio dos tempos, dos lugares e dos saberes que fazem (e onde se faz) a nossa formatividade, permitam-me que me reporte agora a José Barata Moura, quando ele afirma que o homem não é, faz-se. Concordando com o essencial da asserção (mas correndo o risco de ofender a sonoridade aprazível da expressão), ousaria acrescentar que não me parece insensato afirmar que o que somos ocorre de uma historicidade feita de muitas coisas, de incontáveis acontecimentos e de distintas circunstâncias que se relacionam e se interligam entre si aparentando (naturalmente) uma homogeneidade que (de algum modo) acoberta os elementos que a arquitetam.

Por isso, nem sempre é claro que, ao longo desses sinuosos caminhos de venturas e adversidades que fazem a nossa história, somos determinados, determinamos e nos determinamos. Ou seja, ante as hesitações deste jogo cruzado de deliberações que nos foi fazendo gente (e que continuará no porvir a fazer-se na presença de novas rotas e improváveis reptos), importa atender e (mais do que isso) reconhecer e estimar esta marcha relacional, contínua e aberta, que incontornavelmente dá forma à orientação do nosso viver.

Ora, a este trabalho de dar forma à orientação do nosso viver julgo que podemos, sem correr riscos de fantasia semântica, chamar de educação. Ou seja, aquela educação que no seu âmago (e de modo incessante) nos conduz e nos compromete frente à sucessão de possíveis que acolhem as nossas opções e realizações. Citando Barata Moura diria que “… a educação é o conjunto interativo de processos formativos que refletem, moldam, perspetivam e (no limite) transformam a reprodução do nosso viver”. Com liberdade, com poder de autodeterminação, no fundo com a capacidade e a possibilidade de se destinar a si próprio.

Assim sendo, a educação ao promover o livre exercício da autodeterminação, não pode ela própria deixar de se constituir num fator revigorante de liberdade. Só assim se pode compreender e com isso aprender a estar em relação consigo, com os outros e com o mundo com autonomia, liberdade e responsabilidade. É nesta perspetiva que educar para não pode realizar-se em desrespeito com o educar em autonomia, em liberdade, em responsabilidade.

3. APONTAMENTO

Das certezas prontas às dúvidas incertas

Exprimir ideias ou pensamentos sobre a temática muito particular da educação de adultos, das suas avaliações e dos seus impactos humanos e sociais, exige o reconhecimento certo de que se invade um universo feito de múltiplos poderes e racionalidades (com os seus dispositivos e mecanismos próprios), constituindo-se numa realidade que, no interesse de a prospetar e analisar, se mostra complexa nas suas operações, natureza e formas de disposição. Deste modo, permitam-me que confesse a desproporção por mim sentida (pela negativa) das minhas insuficiências face à vontade e à necessidade que me anima em querer contribuir, ainda que modestamente, para uma aclaração proveitosa da problemática que hoje aqui nos junta.

Apesar disso, não me parece desmedido ou mesmo imprudente chamar a atenção, numa perspetiva histórica mais alargada, que a escola tem funcionado neste nosso mundo ocidental, como um lugar vocacionado para estruturar íntima e habilmente os saberes com os poderes no sentido de realizar e cumprir esse silencioso propósito de criação de ordens e de representações convenientes para eficientemente educar e socializar o outro (pese embora as suas diferentes formas) e, neste campo, relevar as legitimidades institucionalizadas e convencionadas que se vão estabelecendo (em especial) na construção da relação educativa sobre esse outro.

É deste acinzentado panorama estribado em quietudes de profundidade que surgem as certezas prontas dos múltiplos dogmatismos e, de modo diverso, as certezas prontas das novidades que à superfície sugerem uma visão alternativa da urdidura educativa, de fisionomia aliás sedutora por que firmada e afirmada na sua bondade social e humanista. Assim me situando – e tendo por pressão estas molduras de certezas prontas mas avisado por um saber profissional feito de empenhadas e ponderadas experiências de resistência e de vigilância àqueles apelos de uso fácil – procurarei, como profissional e cidadão, ou seja, com estas dimensões que me fazem o avaliador externo que procuro ser, mais do que afirmar, proponho-me apresentar um conjunto interpelante de questões que busca (na sua intenção) agitar, aclarar e litigar estas esferas das Novas Oportunidades e, em particular, o processo de RVCC.

Mas antes do questionamento, permitam-me uma nota adicional sobre um olhar avaliativo das narrativas autobiográficas. Utilizando uma linguagem específica do campo técnico da avaliação, diria que os seus referidos (enquanto produtos de uma natural e progressiva referencialização) tomam (por vezes e abusivamente) de assalto os próprios referentes dos quais provêm e substituem-nos. De indicadores representativos transmudam-se em pobres essencialidades usurpadas. No processo de RVCC, o diálogo entre os seus referenciais e as suas evidências, organizados numa matriz necessariamente fragmentada, convidam pelo tempo que urge à padronização do processo que tem, como se sabe, princípios orientadores que em nada apelam para esse sentido, tais como, a adequação e relevância, a abertura e flexibilidade e a articulação e complexidade.

UM QUESTIONAMENTO INACABADO

Das dúvidas incertas à incerteza das próprias dúvidas

1. Em primeiro lugar, como se entende a adesão massiva dos adultos à INO (Iniciativa Novas Oportunidades), designadamente no que respeita ao processo RVCC? O que tem até hoje acontecido ou está ainda a acontecer? Com que impactos, com que ganhos e com que perdas? Estar-se-á, como bem questionou (à tempos) o Professor Luís Rothes, em presença de uma revolução silenciosa no mundo das aprendizagens? É justa a crítica quando se afirma que as NO (Novas Oportunidades) apenas apresentam um êxito estatístico sem correspondência substantiva no que concerne à sua qualidade educativa e formativa?

2. Neste contexto, de expressiva adesão (em que o Estado aparece tem aparecido como potencial aliado junto da população menos escolarizada) como se perceciona hoje a evolução próxima, em particular tendo presente o que se vai conhecendo como sendo as grandes linhas do atual Governo naquilo a que ele designa de uma aposta na qualificação real? Como resolver de modo diligente mas responsável os nossos défices estruturais de qualificação e certificação (também no campo escolar) do conjunto da população portuguesa? O que se pode, neste contexto, entender por reconhecimento social (com expressão na certificação) de um percurso experiencial? Falar de equivalência é (semanticamente) ajustado a esse reconhecimento?

3. A produção massiva de certificados escolares constitui um mecanismo renovado de confirmação e reforço das desigualdades ou (diferentemente) poderá favorecer mudanças de natureza social mais comprometidas com os apelos à democratização do campo educativo e formativo, designadamente no que toca à educação e formação dos cidadãos mais desfavorecidos e à referência sempre presente de uma educação que se pretende permanente? Não se estará, nesta Iniciativa, na presença de uma metanarrativa neoliberal indutora da nova ordem educacional assente na hipervalorização de projetos individuais?

4. Sob o ponto de vista institucional deve a Educação de Adultos ser uma margem do sistema ou constituir-se numa modalidade igual às outras? Dever-se-á (então) considerar a Educação e Formação de Adultos como parte integrante do Sistema Educativo, dando-lhe escala que permita essa clara e articulada inclusão? Que avaliação se faz do dinamismo desejável (e supostamente lógico) entre o processo de RVCC e a rede de oferta educativa a ele mais diretamente associada?

5. Na Educação de Adultos (e porque não também no próprio RVCC escolar) deve prevalecer um olhar e uma orientação relativista das competências ou um outro olhar e uma outra orientação que neles inscreva um outro tipo de saberes mais de carácter basilar (que serve de base), transversal e transferencial? Como situamos, no contexto destas controvérsias, as problemáticas que lhe são adjacentes (e subjacentes) da proximidade, da territorialização e da mobilidade?

6. A Educação de Adultos (e aqui claramente o próprio RVCC) deve ou não afirmar-se como um lugar social desafiante de uma cidadania capaz de promover a reflexividade pessoal, trabalhando e apurando as consciências nos planos do social e do político ou a sua ambição encerra-se no meramente técnico e instrumental, balouçando entre um individualismo radicalizado e a ficção globalizada da economia?

7. Como se deve (então) equacionar e problematizar o processo de RVCC tendo em atenção a imperativa dinâmica da sua relação com as aprendizagens e com as formações futuras no quadro mais amplo de uma Educação e Formação que se pretende permanente? Como perspetivar o RVCC enquanto relação e ponto de passagem com (e para um) processo educacional mais amplo e contínuo capaz de (trans)formar as pessoas e as suas condições de existência? Como se entende a acusação crítica do facilitismo reinante e a sua insuficiente resposta no que toca à empregabilidade?

8. Não será desejável, certamente, valorizar o processo RVCC, otimizando a riqueza (in)formativa do balanço de competências (que também o é), tendo em vista futuros projetos pessoais, sociais e coletivos? Não será, por sua vez, desaconselhável o zelo da imobilidade crítica assente na ideia fixa (ou fixada) da avaliação sumativa que se expressa com excessivo enfoque nos diplomas e nas certificações?

9. Como estimamos os referenciais e as evidências que os estabelecem? O que revelam eles e elas (referenciais e evidências, enquanto suporte) que possam favorecer ou inibir novas formas de perceber, perspetivar e agir no âmbito das múltiplas relações de si consigo próprio, com os outros e com o mundo? Que saberes e competências devem ser trabalhados? Saberes e competências necessários a quem e para quê?

10. Como promover a ocorrência de autonomias, neste domínio dos saberes e das competências, tendo em conta as naturais e legítimas dificuldades de nível e qualidade educativa e cultural inerente aos percursos escolares reduzidos da grande maioria dos adultos que se inscrevem na INO e em particular no processo de RVCC?

11. Neste contexto, como percecionamos o fator tempo enquanto recurso decisivo no que respeita ao desenvolvimento e à qualidade do trabalho organizativo, metodológico e pedagógico a realizar, tendo em conta não só as dificuldades antes referidas na sua complexa multiplicidade de aspetos como na sua constrangedora associação à pressão das metas e da respetiva execução ante um financiamento necessário e que dessa mesma execução decorre?

12. Será possível aos CNOS trabalhar com verdade os referenciais de competências-chave (independentemente dos juízos que deles possamos fazer) neste sentido crítico e transformador das pessoas e dos seus contextos de existência? A instância das narrativas autobiográficas não inscreve, pelos propósitos que a validam como método, a exigência simbiótica da reflexividade e da historicidade? Como trabalhar em benefício mútuo estas dimensões fazendo jus à qualificação das autobiografias de reflexivas de aprendizagens?

Aguardam-se respostas neste futuro (também ele) incerto.

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