sábado, dezembro 13, 2025

GENEALOGIA DE UM PRESENTE FRAGMENTADO

Um caminho entre a crítica e a ideologia

Pensar a genealogia não como a simples descoberta linear de algo já conhecido no passado, mas como um processo ativo de reinterpretação, reapropriação e disputa de sentidos, implica reconhecer que toda a genealogia é, simultaneamente, um ato de participação e de partilha. Não se trata apenas de recuperar origens esquecidas, mas de interrogar os modos como essas origens foram silenciadas, distorcidas ou instrumentalizadas, quase sempre em função de interesses sociais, políticos ou simbólicos. A genealogia, nesse sentido, não é neutra: ela serve sempre um todo, uma comunidade, um projeto, uma causa ou uma posição subjetiva.

Partindo desta perspetiva, importa reconhecer que os diferentes patamares do pensamento contemporâneo assentam frequentemente em raízes omitidas ou seletivamente evocadas. É nesse quadro que se torna pertinente uma leitura genealógica, ainda que necessariamente simplificada, do percurso que vai do pós-estruturalismo ao que hoje se designa, de forma polémica e imprecisa, como pós-modernismo real.

O pós-estruturalismo surge, desde logo, como uma rejeição explícita da ideia de totalidade estável, fundada em estruturas fixas e universais. Mais do que uma escola de pensamento coesa, ele constitui um campo heterogéneo de aproximações teóricas que partilham alguns traços fundamentais: a instabilidade do significado, a crítica das metanarrativas, a articulação entre poder e conhecimento, a conceção do sujeito como fragmentado e a centralidade de metodologias de desconstrução.

De forma sumária, o significado deixa de ser concebido como algo fixo ou garantido, passando a ser entendido como fluido, disputado e dependente da interpretação. As grandes narrativas explicativas, filosóficas, políticas ou históricas, são colocadas sob suspeita, enquanto o conhecimento é pensado como inseparável das relações de poder que o produzem e legitimam. O sujeito moderno, coerente, racional e autónomo, cede lugar a um sujeito fragmentado, constituído por múltiplas forças sociais, simbólicas e discursivas. É neste contexto que se multiplicam as dicotomias através das quais se organizam as identidades e as diferenças.

A teoria crítica pós-moderna, herdeira da Teoria Crítica clássica, irá integrar elementos do pós-estruturalismo e do pós-modernismo, produzindo uma combinação ambígua: por um lado, mantém uma crítica vigorosa ao capitalismo; por outro, conserva ainda uma confiança residual na razão, na objetividade e numa perspetiva de emancipação universal, ancorada tanto no marxismo como no legado iluminista que sustenta as democracias liberais modernas.

Num desenvolvimento mais recente, e particularmente visível no espaço cultural anglo-americano, emerge aquilo que tem sido designado como ativismo identitário woke. Este caracteriza-se por uma atenção sistemática às injustiças estruturais, por um foco acentuado nas identidades dos grupos marginalizados e por uma vigilância constante das linguagens e dos discursos enquanto lugares privilegiados de exercício do poder. A crítica aos privilégios, a promoção de terminologias consideradas inclusivas e a disputa ativa por reconhecimento, representação e acesso a espaços de decisão tornaram-se marcas centrais deste ativismo. Os campos da Inclusão e da Diversidade passam, assim, a funcionar como arenas de luta simbólica e institucional.

É neste ponto que Žižek introduz a noção, implícita mais do que sistematizada, de pós-modernismo real. Não se trata apenas de um conjunto de teorias académicas, mas de um modo de funcionamento efetivo do espaço social, cultural e político: um verdadeiro software ideológico que estrutura práticas, sensibilidades e formas de legitimação moral. Embora frequentemente associado ao woke, Žižek recusa uma relação causal direta e simplista, criticando sobretudo o seu carácter moralizante, a sua redução da política a gestos simbólicos e a sua fragilidade teórica.

Contra a leitura que apresenta o pós-modernismo como puro abandono da verdade, rejeição da racionalidade ou celebração de um subjetivismo absoluto, Žižek insiste que essa representação resulta, em grande medida, da chamada “guerra cultural” norte-americana. Trata-se de um conflito entre grupos sociais que disputam a autoridade simbólica sobre valores, crenças, práticas e narrativas legitimadoras da ordem social.

Para Žižek, o pós-modernismo deve ser entendido menos como uma rendição ao irracionalismo e mais como uma resposta à crise das grandes narrativas da modernidade. Ele funciona como um diagnóstico das novas formas de poder difuso, associadas à proliferação de mecanismos subtis de controlo, influência e normalização social. Simultaneamente, abre espaço para novas formas de pensar o sujeito, o conflito político e a ideologia, ainda que, muitas vezes, o faça de modo insuficiente ou contraditório.

Nada disto equivale, contudo, a uma adesão ao irracionalismo filosófico. Žižek não abandona a razão nem a crítica racional; pelo contrário, procura reinscrevê-las numa análise que reconhece os limites do racionalismo clássico sem ceder à ideia de que a realidade social possa ser compreendida apenas através da emoção, da intuição ou da moralização imediata. O seu gesto crítico visa precisamente recuperar a densidade teórica e política perdida quando a crítica se reduz a performances simbólicas ou a juízos morais descontextualizados. 

O pós-modernismo real, tal como Zizek o interpela, não é, portanto, uma filosofia a rejeitar em bloco, mas um campo de tensões que exige análise rigorosa; entre política e ideologia, entre emancipação e gestão simbólica da diferença, entre a promessa de libertação e a sua captura pelos dispositivos contemporâneos de poder. Pensemos, pois, neste exigente tópico...


terça-feira, dezembro 09, 2025

CAPITALISMO, UMA GRAMÁTICA DE FALCATRUA

Não é só na vida privada que a verdade e a hipocrisia aumentam em tamanho. Na vida pública e, sobretudo, na política, a patranha generaliza-se com avidez e técnica. A mentira vai-se tornando parte de uma tecnologia de domínio e de regime. Diga-se que, no conflito de ideias, esta música toca a todo o gás. A catequese fantasia-se em conjetura, a conjetura mascara-se de facto e o facto surge dissolvido numa diversidade que torna difícil tomar uma decisão clara. É aqui que se vislumbra a máscara da verdade na sua disputa incessante e, como tal, a crítica cultural e filosófica que se impõe. Não para apregoar purezas morais, mas para denunciar a ferramenta metodológica que converte a falcatrua em paz social do capital.

sábado, dezembro 06, 2025

O PAULO QUE FICA EM NÓS

 


Carlos Paula, um colega professor, um amigo de confiança, de afeição e de lealdade, partiu. Já não está entre nós, mas não deixará de estar sempre presente nas nossas vidas, para todo o sempre a sua luz tranquila, o seu gesto generoso e a marca discreta da amizade que nos uniu.
Hoje não me é possível estar presente no seu funeral, mas estou com ele e com todos os que o estimam, no pensamento e no coração.


sexta-feira, dezembro 05, 2025

A LIBERDADE CAPTURADA, EIS A FRAQUEZA DEMOCRÁTICA

A liberdade, no seu sentido pleno, torna-se uma experiência dura: exige consciência, responsabilidade e uma certa agitação ética. Contudo, no nosso tempo, tornou-se habitual confundir liberdade com conveniência, escolha sem cuidado, opinião sem pesquisa, reação sem implicação. Esta forma empobrecida, que passa por liberdade oportuna, tornou-se hoje um abalo filosófico e político demolidor, empobrecendo o indivíduo e debilitando a democracia.

A filosofia ensinou-nos que a liberdade só assume verdade quando o sujeito se reconhece como autor das próprias determinações. Sócrates falava do “cuidado da alma”, Kant da autonomia da vontade, Foucault das práticas de si. Em todos eles, a liberdade surge inseparável de um trabalho exigente e contínuo. A liberdade ajustada de hoje exclui esse esforço: desvia-nos da clareza, troca o pensar pela ilusão cómoda de que tudo está claro e reduz a controvérsia à ordem das certezas imediatas. Chamemos-lhe, então, a liberdade como consumo de certezas.

Politicamente, esta compreensão atrofiada da liberdade é terreno fértil para a ascensão de retóricas simplificadoras. A extrema-direita de hoje dela se serve com precisão: não se compromete com a liberdade autêntica, promete antes um atrevimento emocional conveniente, ou seja, libertar o enraivecido do incómodo de pensar, da complexidade das diferenças, da densidade da história e da responsabilidade perante as consequências comuns. A liberdade que convém é, assim, a porta de entrada de uma submissão voluntária, em que alguém se sente livre enquanto entrega a autonomia a enredos que o conduzem.

quinta-feira, dezembro 04, 2025

A MELODIA HUMANA, ENTRE O PENSAR E O CRIAR

Entre o caminho filosófico e a incumbência cultural, há uma espera que o coração estima. É aí que surge o recanto onde a dúvida se faz pausada e o invento responde com um esgar de luz.

O pensamento ascende como um laivo de melodia, e a cultura acompanha o ritmo remoto dos passos humanos. Dessa harmonia, serena e imprevista, abre-se um leque de possibilidades por onde caminhamos.

Nesse lugar, cada ideia torna-se um som que se prolonga, e cada gesto, uma nota que encontra o seu lugar. E nós, sintonizados pelo tempo, vamos afinando a vida: um pouco de silêncio, um pouco de coragem, um pouco do mistério que não se explica - apenas se escuta.

No fim, o horizonte não se esconde: é a música que nos envolve quando pensamos com verdade e criamos com esperança.

quarta-feira, dezembro 03, 2025

DA EMOÇÃO AO CAMINHO

O decurso da evolução psicológica e emocional de alguém ao longo da vida não é um ganho súbito nem fruto exclusivo da experiência acumulada. É, antes, a formação lenta de uma subjetividade que se vai depurando no tempo, à medida que compreende as perceções, as obrigações e os desenvolvimentos que a envolvem, sejam eles cognitivos, emocionais ou morais.

Trata-se, naturalmente, de uma metáfora poética que descreve a conversão de uma intenção, desejo ou energia interna, o impulso, num gesto concreto, visível ou expressivo.

Muitas outras faces acompanham o curso dessa transformação de atitude e de comportamento: o medo que se torna postura, a vulnerabilidade que se revela estilo, a inquietação que amadurece em ética. É essa tessitura que sustenta a essência de uma pessoa no meio social, mesmo em ambientes distantes ou adversos.

A constância da condição humana, a sua presença obstinada, lembra-nos que não somos apenas aquilo que sentimos, mas aquilo que, sentindo, exige de nós a coragem de assumir uma inclinação, quando não um caminho. O tempo, provavelmente hoje muito incerto, exige de nós superar medos e incerteza para agir, reagindo pela e com LIBERDADE.

sábado, novembro 29, 2025

O BLÁ-BLÁ-BLÁ DO SENHOR VENTURA

O senhor, esse jocoso cavalheiro, não entra no Café: invade-o. Empinado, fragoroso, saúda as gentes em voz alta e, sem demora, instala-se no imaginário palco onde só ele se reconhece ator principal. Exibe ironias arrogantes — sempre sobre este e aquele, sobre rotinas gastas e calamidades que apenas os outros lavram, pois ninguém, exceto ele, parece gozar da sanidade que julga possuir por natureza.

Ventura de nome, ator público de aparências, artificioso irritado e enfurecido, desfruta das suas momices emotivas, dos bodes expiatórios que fantasia e dos muitos remédios que ele próprio disfarça. Muito conhecido pelas rixas futebolísticas, sempre apostou nas algazarras para garantir plateia. E, para sua surpresa nenhuma, costuma consegui-la.

No fundo, o seu blá-blá-blá é sempre o mesmo: caótico, ruidoso, seguro de si ao ponto de não dar por um centímetro de ridículo quando interpela alguém. O senhor Ventura, com as suas arengas panfletárias, é apenas a versão ampliada daquela pequena tirania doméstica que todos já viram em miniatura. A diferença é que, no café, ainda provoca risos — mas no espaço público, convenhamos, a piada esvai-se depressa.


domingo, novembro 23, 2025

O INCÓMODO DA VERDADE

A autenticidade, sendo uma honestidade, não deixa de expressar a possibilidade de uma situação importuna. Sabemos bem que viver sem mentiras tem dificuldades sérias. Não obstante, sabemos também que conviver dissimulado exige uma necessidade falsificada e, sobretudo, acrescida.

A coragem, reconheço, não deixa de ser uma determinação moral perseverante, uma resiliência que se vai alicerçando sem pedir aprovação à nossa espontânea vontade. Concerne, sim, a um momento em que negamos a mentira meiga - não por maldade, mas porque o silêncio da vida se faz existindo.

Ser autêntico é sempre acessível; todavia, requer valor e coragem. Implica, pois, aceitar a agitação do real: considerando mais fácil desprezar a circunstância do que permanecer inteiro quando a sociedade nos pede variantes arrumadas.

Todos nós enaltecemos a entrega à verdade, todavia bem poucos resistem ao conforto do que é mais fácil assumir. A coragem moral é, na sua essência, concisa, insensível e cruel e, como tal, torna-nos resgatadores. Eis aqui o embaraçoso e singular remoque da conduta humana. O preço de viver inteiro não é, pois, claramente “popular” …

terça-feira, novembro 18, 2025

ESCOLHER NÃO BASTA

A LIBERDADE não é apenas o preceito de escolher, ignorando a coragem de reconhecer o que cada preferência convoca. E a responsabilidade, por sua vez, não se esgota na luz do querer nem se reduz ao simples cumprimento do dever. A LIBERDADE é, e sempre será, a claridade que dá forma ao que ela própria inicia.

Sem a busca da responsabilidade, a LIBERDADE dilui-se em capricho; e sem a LIBERDADE, a responsabilidade cai facilmente na obediência. Juntas, porém, transfiguram o agir humano num gesto mais completo, capaz, consciente e digno.

Em síntese, somos verdadeiramente livres quando respondemos pelos nossos atos, e somos verdadeiramente responsáveis quando acompanhamos e ajudamos a LIBERDADE a fazer o seu caminho. A responsabilidade da diferenciação não pode, assim sendo, desligar-se de um mundo comum, ou seja, desconsiderando o corpo social como um todo.

segunda-feira, novembro 17, 2025

A IRONIA DO EVIDENTE

O sentido da vida é sempre uma ideia singular. Procura-se como quem procura as chaves que já estão na mão, acreditando que só aparecem quando a imaginação decide colaborar. Mas Yalom relembra o inverso: “o sentido nasce do encontro com a existência real, não da fantasia”. Eis a pancada. Afinal, a vida não nos pede uma qualquer inventividade utopista, mas apenas suplica que não a falsifiquemos com compreensões insensatas de nós mesmos.

Ironia das ironias: passamos décadas a inventar sentidos engenhosos enquanto a existência, tranquila, persiste em exibir-nos o evidente - a respiração, o riso, a perda, o amigo que visita ou o disparate que nos irrita. O sentido, esse atrevido, não está oculto; apenas nos solicita que lhe abramos a porta sem filtros.

Talvez o segredo sério seja, afinal, este: viver com rigor suficiente para não nos esquivarmos da realidade, e com leveza e destreza para não ficarmos soterrados por ela. Entre estes dois opostos, nasce algo simples e silencioso que alguns chamam de sentido e outros, com mais humor, dizem que é apenas a vida a acontecer. 

sábado, novembro 15, 2025

O MEU TEMPO, SEM PRESSA

Distraem-se, por vezes, dizendo-me que estou envelhecendo, como quem me aconchega num cobertor agradável. Sinto-me, de imediato, num pequeno quarto onde a vida se retrai. Mas logo surge a outra face: a vida vivida que me chama, me aproxima e me mostra o alcance do seu tempo, esse tempo onde aprendi o valor de pensar sem pressa.

O sentimento de insignificância, apesar de tudo, ainda não despontou em mim, nem me prendeu àquela cultura fatigada de pensar, precipitada em sentenciar, que nos faz esquecer a astúcia de reconhecer valores recônditos perdidos ao longo dos anos. À pobreza humana acrescenta-se essa outra pobreza, mais funda, que molda vontades, aperta rumos e nos incita ao conforto absurdo do cinzento das sombras.

Pensar exige gestos de claridade, gestos acompanhados de uma luminosidade capaz de desobscurecer horizontes. Não para provar nada a ninguém, mas para manter acesa a liberdade íntima de escolher, de discernir e de não ceder à contração. Pensar é rejeitar a obediência afável que tantos esperam.

Se algo envelhece o humano, talvez seja apenas a mediocridade das ideias irrisórias que nos querem sempre simpáticos, sim, mas pequenos. Porque o juízo da maturidade, quando se lhe dá a palavra, não se retrai: ilumina o caminho. E cada vida que pensa é uma vida que, mesmo em silêncio, continua a expandir-se no vasto mundo do humano.

quinta-feira, novembro 13, 2025

PAVOR EM DEBATER?

Vive-se um tempo, dito democrático, em que pensar se tornou ousadia e opor-se, quase um pecado cívico. A emoção senta-se ao comando, e o discernimento, tímido, pede perdão antes de se pronunciar. Já não se discutem ideias, apenas se medem feridas em coro de sensibilidades ofendidas.

A ignorância, hoje, repousa em sofás confortáveis, navegando na rede social que lhe ajustaram à medida. Ninguém quer sair: é mais cómodo chamar “agressão” ao simples gesto de pensar diferente.

Recordo Strenger, que ainda nos convida à coragem da fala racional, essa antiga rebeldia que um dia chamámos argumentar. Porque, no fundo, talvez a mais grave das ofensas contemporâneas seja, justamente, usar a cabeça sem pedir licença.

quarta-feira, novembro 12, 2025

PASSEIOS DO MEU TEMPO

Sinto-me idoso, todavia não envelhecido. O corpo cumpre o dever, mas a alma perdeu o pêndulo. Desprezo a psicologia do vazio, essa rotina taciturna de quem converte o nada em hábito.
Velho? Não sei. Envelhecido? Procuro contrariar a eventualidade. É o mundo, esse sim, que vejo cansado, sem sequer saber porquê.
Desloco-me, sim, devagar, para que o tempo me faça companhia. Ainda assim, com vitalidade, tropeço em ideias, e é nelas que vou convivendo com a incógnita de não desistir.

Eis, afinal, os aprazíveis passeios deste meu tranquilo e simpático tempo. 

terça-feira, novembro 11, 2025

A INTIMIDADE DA OFENDIDA ESTÓRIA

O casório entre o Chega e o Reconquista não é um imprevisto político, é uma conveniente e simples ocorrência. Irrompe da confluência entre a indignação e a saudade, entre o populismo do alarido e o sebastianismo do regresso. Um e outro revelam a mesma morfologia afetiva: o pavor do presente e a poetização de um passado que nunca aconteceu.

Este enlace, que se anuncia patriótico, é, na verdade, uma resposta à desagregação de certezas. Quando o mundo se torna variado e plural, há sempre quem procure resguardo na miragem de uma pureza original, seja ela religiosa, cultural ou moral. É esse refúgio imaginário que o Reconquista cavaqueia com o Chega, no sentido de uma ecologia simbólica onde o ódio se disfarça de virtude e a incultura se apresenta como sapiência popular.

O íntimo da “reconquista” de que falam não é apenas político, é sobretudo psicológico pois trata-se de uma tentativa de reconstruir uma identidade perdida, de devolver à história o que o tempo e a liberdade inevitavelmente perverteram. Mas, como é claro, aquilo que se pretende recuperar não é o país, é sim o poder de o escolher. O que está em jogo é, pois, o açambarque da palavra “Portugal” e da sua exclusividade. Em suma, a reconquista é apenas o disfarce nobre de uma rendição antiga, melhor dizendo, a da inteligência ao conforto das certezas.

domingo, novembro 09, 2025

O ESPAÇO CULTURAL ENTRE O DIZER E O SER

A solta cultura política apoia-se no reconhecimento da instabilidade que percorre toda verdade, nunca a mentira. Não há política viva onde se força a geometria imposta entre o argumento e a realidade, pois aí germina a ideologia, o dogma, a brutalidade do sentido único.

A liberdade, ao contrário, exige a aceitação da falha, ou seja, o saber de que o humano é incompleto, de que a palavra não esgota o real e de que a diferença não é perigo, mas alento. Só nessa consciência da falha se torna possível a comunicação, o pensamento crítico e a criação de novas gentes.

A oscilação entre o que pensamos e o que é, não nos desvaloriza, bem pelo contrário, humaniza-nos. E é nesse intermédio, inquieto, fecundo e inacabado, que a política reencontra a sua dignidade. Ou seja, não como perícia de domínio, mas como arte de coexistir no que em tempo algum se ajusta. 

sexta-feira, novembro 07, 2025

O capitalismo vive do cansaço das ideias. A política tornou-se arte de conter, e o possível, armadilha que nos cerca. É nesse crepúsculo que germina o desespero. O homem, afinal, esqueceu-se de sonhar outro mundo.

terça-feira, novembro 04, 2025

DA COMPAIXÃO À OBSCENIDADE

Nem toda a lágrima é humana. Algumas brilham ao sol da indiferença. A pobreza parece já não causar dor, apenas se afigura comover por empatia. Tornou-se, com o tempo, um tranquilo espelho limpo onde o conforto burguês aparece. A compaixão, quando não altera, corrompe e o gesto piedoso vai-se tornando, por hábito, a forma simpática e possível. Com facilidade se esquece, então, que o sofrimento dos outros não é matéria de consolo, mas de justiça. Que maçada...

A LIBERDADE DE EXPRESSÃO REQUER DECÊNCIA

Neste tempo em que o debate público se mistura com ruídos e grosserias, importa recordar que a liberdade de expressão é inseparável da responsabilidade ética e do respeito pela palavra. Procuro aqui dar um parecer, ainda que sumariamente, sobre a dignidade da palavra política e o dever de quem a exterioriza em nome da democracia.

Assim sendo, começo por dizer que a liberdade de expressão é talvez a mais atrativa das conquistas democráticas, porque permite ao pensamento uma presença pública e à diferença uma forma de coexistência. Mas, como toda a conquista civilizacional, exige cuidado e honradez. A palavra livre não é uma palavra incólume; é, sim, um valor que se responsabiliza pelo que semeia no espaço social e comum.

No Parlamento, a palavra não é propriedade privada. Cada deputado fala em nome próprio, é certo, mas fala também em nome da democracia que o delega. Sendo um privilégio, é, sobretudo, um dever: o de tratar a palavra como causa cívica, não como recurso de aparato ou escarcéu.

Há quem confunda liberdade com desinibição, coragem com tumulto, franqueza com desrespeito. Mas a liberdade de expressão não se mede pela intensidade da voz: mede-se, sim, pela essência do sentido. A palavra que ofende, rebaixa ou falseia não é expressão de liberdade, dado que se torna, sim, na sua caricatura.

A democracia não se afirma no caótico ruído, mas sim na evidência; não na injúria, mas no debate; não na teatralidade do insulto, mas na clara convicção do pensamento. A palavra democrática é, por natureza, um modo de zelo e de responsabilidade - cuidando do outro, da verdade e da própria língua em que o comum se torna possível.

Por isso, quem foi eleito para falar em nome de todos outros deveria recordar-se de que a palavra é responsabilidade, não munição. Falar livremente supõe debater com dignidade, ou seja, cumprindo de forma viva e necessária com coragem política e democrática. Em síntese, diria que a liberdade de expressão pede decência e conformidade participativa. 

domingo, novembro 02, 2025

UM TOLO NARCISISMO

Num café, como em tantos outros lugares, entre a essência do explícito e o ruído dos bate-papos, esboça-se sempre a imagem mais rotineira do nosso tempo, ou seja, a das criaturas achegadas disputarem, com exaltação, pequenas e tolas diferenças. Um olhar naturalmente fingido, quiçá meigo, eis a farsa da rotina onde cada um se esforça, no íntimo, por se distinguir do seu próprio espelho.

Freud há muito já nos falava do “narcisismo das pequenas diferenças” como uma curiosa tendência humana para repelir o que nos é quase igual. Esta inclinação humana olha, atentamente e com ironia, o palco-café onde os costumes se ensaiam todos os dias e revelam como o eu e o outro persistem atados ao mesmo bailado de espelhos.

É um facto, uma realidade, pois vivemos encurralados em imaginários de opiniões e em brumas de semelhanças e de convicções que se confundem e disputam a mínima diferença como se fosse uma inestimável bandeira. O “Café das Pequenas Diferenças” é, pois, um retrato irónico do nosso tempo, civilizado na forma, todavia bem tosco na desprezível e tola vaidade.


quinta-feira, outubro 30, 2025

CHEGA DE TRETA GROSSEIRA

Vive-se um tempo em que pensar é obra de resistência. Agimos num espaço público tomado pelo alarido, pelo obstáculo e pelo grotesco, momentos estes em que a grosseria se confunde com coragem e a boçalidade se veste de virtude. Mas não chega, pois troca-se o assunto pelo enxovalho, o diálogo pelo alvoroço e a verdade pelo espetáculo.

A extrema-direita não tem tido êxito propriamente pelas suas ideias, mas pela sua teatralidade, escarcéu e violência simbólica. Daí que resistir exija restituir à palavra a sua dignidade, à razão a sua qualidade e à crítica a sua coragem. Argumentar tem sempre por missão aprofundar e refazer a conversa humana. Desconstruir, por sua vez, procura impedir que a razão se torne opressiva. Ironizar, como é óbvio, procura desvendar a comédia da ignorância triunfante.

Estes três procedimentos - argumentar, desconstruir, ironizar - revelam que a crise política de hoje é também uma crise das alocuções. Contra a regra dos ruidosos paspalhões, pensar não é luxo nem retórica: torna-se, sim, uma generosa insubmissão. Pensar, nestas circunstâncias, é dizer não à cegueira organizada, não à banalização do ódio, não ao ruído que se faz passar por verdade.

Corre-se o risco de viver num tempo em que se excluem os melhores para que os idiotas continuem a conduzir cegos. É a regra tácita de uma cultura que confunde espontaneidade com verdade e agressividade com autenticidade. Acredite-se, pois, que a palavra pode ter sentido, mesmo quando parece que o mundo a perdeu.

terça-feira, outubro 28, 2025

CHEGA DE GROSSERIAS

O debate do Orçamento de Estado deveria apresentar-se o espaço maior da responsabilidade e da inteligência política. Mas o que hoje se ouviu (e viu) da bancada do Chega foi o contrário: ofensa em vez de argumento, injúrias em vez de diálogo, afrontas em vez de confronto democrático.

Não se trata de divergências partidárias, trata-se sim de dignidade. A democracia vive da pluralidade e do debate entre ideias, não da injúria pessoal nem da humilhação dos adversários. O Parlamento é um lugar de serviço público, não um palco para a exibição de egos feridos e ressentimentos travestidos de coragem.

Quando o Chega reduz a política a um espetáculo de ofensas, está a corroer em silêncio os pilares do regime democrático que diz insistentemente defender. A violência verbal é o ensaio, um começo da violência política. A banalização do insulto é o começo da destruição do respeito mútuo que sustenta qualquer comunidade.

Como é óbvio, não é apenas a educação que está em causa, mas sim a dignidade da representação democrática. O país precisa de deputados que saibam pensar e dialogar, nunca de vozes que procuram desordenadamente baralhar o alarido com a verdade.

ESCUTAR O INCONSCIENTE SERÁ POSSÍVEL?

Obrigado Byung – Chul Han

Com o tempo, aprendemos, se disponíveis estivermos para isso. A subjetividade, no seu intrínseco, quando crítica, cuida do nosso espontâneo. Não o controlando, nem o civilizando, mas antes dele nos socorrendo. Sermos exigentes connosco compromete-nos a compreender as vozes que nos atravessam, as que falam antes de nós e, por vezes, contra nós. O inconsciente é esse presente clandestino que nos assiste; e a exigência é o gesto premente que tenta ler, sem violência, o que nele se inscreve.

Cuidar do inconsciente, julgo eu, não é impedi-lo de agir, mas dar-lhe espaço para se apresentar, impedindo, sim, que ele se torne ruído e que a sua linguagem se degrade em pressentimento. Uma subjetividade minuciosa não é aquela que se força a modelos, mas a que nutre o olhar, suporta a incógnita e explora a convicção de que o inconsciente, como o tempo, não se domina: apenas se considera, escutando.

É nesse paciente cuidado que se pode caminhar no percurso dessa ética silenciosa e seletiva. A exigência não é moral, mas uma vigilância poética, minuciosa na atenção ao que se move na sombra. Diria, talvez apressadamente, que uma cultura, ao perder essa exigência, desampara o inconsciente, entregando-o à publicidade, às redes, às manipulações que capturam o desejo e o devolvem em forma de mercadoria. O inconsciente sem cuidado torna-se um espelho partido onde já não se vê, com clareza, o humano.

Por isso, sermos exigentes connosco é um ato político: é recusar a dispersão, a superficialidade e o ruído. É aceitar o trabalho paciente da escuta, do que em nós resiste, do que em nós deseja, do que em nós ainda não encontrou palavra. Só assim o inconsciente pode tornar-se aliado da criação, e não cativeiro da repetição. Cuidar do inconsciente é cuidar do pensamento. E cuidar do pensamento é cuidar do mundo e, com ele, da vida humana. Em síntese, diria que escutar o inconsciente é devolver à subjetividade a sua profundidade perdida.

domingo, outubro 26, 2025

A POLÍTICA À LUZ DO ESPETÁCULO

A política de hoje vive uma mudança comunicativa para o vasto e luminoso espaço dos meios de comunicação. É na televisão e nas redes sociais que a prolongam e amplificam, que se joga também a exposição do poder, a dinâmica da autoridade e até a própria definição do que é “realmente político”.

No entanto, essa migração, que se apresentou como um simples movimento estratégico, revelou-se também uma forma de submissão. Os políticos acreditaram poder dominar o recinto mediático, controlar a arenga pública e impor a sua agenda. Todavia, o que sucedeu foi o inverso, ou seja, foram eles os colonizados. A lógica mediática substituiu a racionalidade política. As imagens rápidas, as frases curtas e as emoções superficiais ocuparam o lugar da reflexão, do debate, da contradição e da memória.

O resultado é uma política reduzida ao desempenho e à execução. Já não se governa a partir de ideias, mas de chavões; já não se debate e argumenta, encena-se o confronto. Já não se pensa o futuro, administra-se o presente com gestos televisivos e estratégias de marketing. O palco político tornou-se estúdio, e o eleitor, mero espectador.

sábado, outubro 25, 2025

ENTRE A PALAVRA E O GESTO

 

"O simples é o instante em que o silêncio se torna voz - não fala para ser ouvido, mas para deixar pressentir o que o silêncio guarda. Entre o que é dito e o que permanece, o simples respira: é pensamento que se faz aragem, palavra que regressa sempre à sua origem.”

Escrevo estas palavras procurando dar sentido a um gesto simples, sem presunção, apenas com verdade. A amizade, quando é intensa e profunda, não precisa de se elevar: é suficiente o silêncio que alcança, o olhar que acolhe, a presença que em nada obriga.

Assim sendo este texto conciso, surge desse sentimento modesto de gratidão, pelo tempo partilhado, pelas informais e sinceras conversas, assim como pelos silêncios que se justificam por si. O simples, para mim, torna-se isso, ou seja, a forma de afirmar o essencial sem o querer forçar, enquanto respiração natural do que é humano.

Vivemos um tempo em que o excesso de palavras tende ao esvaziamento das ideias e dos seus sentidos. Por isso, a simplicidade entre o silêncio e a fala apresenta-se uma forma de resistência e de verdade. Na amizade, como na linguagem, o essencial, para mim, não se impõe; revela-se, sim, discretamente, num gesto, numa palavra breve, num olhar que compreende. A experiência levou-me a reconhecer o humano nesse território de pertença em que compreendo o peso existencial do seu ser.

Eis, sim, a possibilidade do poder do gesto e da palavra encontrarem o sentido da vida, o seu silêncio e a sua simplicidade. Viver o simples torna-se viver plenamente um instante em que o silêncio se torna voz. Não por vaidade de dizer, mas por necessidade de partilhar o que o silêncio acolhe. Entre o que pensamos e o que conseguimos dizer, o simples revela-se. É aí que a amizade encontra a sua verdade e realidade. Através do gesto sincero, da palavra breve e do olhar atento.

terça-feira, outubro 21, 2025

A ÉTICA DO RESTO

Vou envelhecendo; ainda assim, a lucidez dá-me a atraente ideia que me acompanha. Vivemos um tempo saturado de ideias, modas e defesas - quiçá inconscientes. Tudo parece estudado, dito, prometido, pese embora a frustração nos mostre o quanto somos incompletos. É neste sentido que acompanho, com alguma empatia, no palco beckettiano, a sua ética que resta, sobretudo quando ele nos convida a recusar a lógica figurativa da utilidade, do progresso deturpado e da produtividade enganosa. Sinto e vivo esta recusa como um modo de resistência ética, impossibilitando, tanto quanto possível, que o poder se alimente da coerência e da eficiência simbólica. Nada de especial se torna; apenas se vai abrindo um renovado e exigente campo ético e político, pois "nada é mais produtivo do que o medo do nada".

segunda-feira, outubro 20, 2025

IRONIA, NÃO ESCÁRNIO

No duelo da política, Gonçalo Capitão não corta nem rasga - contorna, arredonda, suaviza. E bem…


A ironia, quando nasce da inteligência e do bom senso, não magoa - ajuda a esclarecer. O âmago da sua crítica não necessita, pois, de voz alta; basta sorrir, iluminando o discernimento e a expressão. Há quem, por dificuldade, use a voz ruidosa e dela procure proveito próprio. Por outro lado, há quem, com serenidade e humor, esclareça o enredo, dando valor e ganho ao duelo. A estes últimos devo apreço, pois fazem do riso um gesto de empatia, transparência e respeito. A democracia nada perde ao suavizar vozes intensas alimentadas por emoções - sobretudo quando arrastadas por falsas e fingidas febres.

domingo, outubro 19, 2025

NÃO SIRVO? TALVEZ, MAS EXISTO E SINTO-ME VIVO

“Pequeno texto sobre a arte de não cumprir com dignidade”

Já não tenho fantasias, pois o mundo tem-se tornado um mercado de vidas em saldo. Quem não rende, não presta, e quem não reluz, perde brilho. Mas eu, birrento e de má sorte, continuo persistente, mesmo agora de pilhas gastas. Fala-se em meritocracia, produtividade e excelência, palavras que servem para inocentar a indigência de terceiros. Eu, por mim, prefiro o luxo da imperfeição, pois o não me mover bem tornou-se o meu pequeno ato de indisciplina.

A vida sempre me quis capaz e, se possível, eficaz. Eu ofereci-lhe apenas a qualidade de ser demorado. Quer-me animado e eu proporciono-lhe a irónica oposição. Quer-me por inteiro, eu proponho-lhe frações e, se possível, não deixo de embolsar caro. Enquanto eles medem sucesso em cifras e seguidores, eu coleciono perdas com o mesmo cuidado de quem guarda provas de uma espécie em vias de extinção. Ou, melhor dizendo, a dos que ainda sentem decência em não vencer à custa de tudo.

Poder-me-ão imaginar, afinal, muito grosseiro, ultrapassado e de muito blá-blá-blá. Aceito, evitando o achincalho. É bem mais aceitável isso do que servir de estatística ao aludido progresso. Prefiro, pois, sobrar como vestígio sem relevo do que alinhar no desfile dos bem-sucedidos. Sinto-me, certamente, uma brecha consciente, teimando persistir cidadão. Não sirvo alguns, todavia existo e sinto-me bem e bem vivo.

sexta-feira, outubro 17, 2025

O HUMANO PERDIDO ENTRE A COMUNIDADE E O CAOS

Desde o início, o ser humano aprendeu a sobreviver não pela força, mas pelo encontro. A fraqueza física tornou-se vantagem evolutiva quando descobrimos o poder da cooperação. Falar, compreender, cuidar e enganar foram artes que nos ergueram acima das outras espécies. A nossa inteligência é, antes de tudo, inteligência social, um órgão da convivência. Como penso, William Von Hippel sugere que o salto evolutivo que nos formou foi menos biológico do que comunitário.

Mas é aqui que o paradoxo começa: o mesmo laço que nos salvou é o que agora nos aperta. A vida em comum, que outrora garantia sobrevivência, converteu-se em fonte de inquietação. A consciência, produto da relação com o outro, tornou-se também ferida que nunca cessa de sangrar. Vivemos num mundo cada vez mais interligado e, paradoxalmente, nunca estivemos tão sós.

Freud viu nesta ferida o preço da civilização. O sujeito moderno é herdeiro das pulsões recalcadas que a cultura exige para manter-se de pé. A cooperação social implica a renúncia do desejo, e o mal-estar instala-se como eco dessa troca desigual. A felicidade paga-se com culpa, e o laço social tece-se de repressões necessárias. Assim, o progresso técnico, moral e político não elimina o sofrimento, apenas o refina.

terça-feira, outubro 14, 2025

O ESPELHO DAS ELEIÇÕES

As eleições refletem não apenas opções políticas, mas também o estado da nossa consciência democrática. Este breve escrito nasce do desalento e da incerteza, interrogando o que ainda subsiste do ideal que um dia tomámos por coletivo.


Nem sempre a democracia cumpre o que promete. O seu valor definha quando se deixa enredar em arengas vãs e manipulações doutrinárias. Fala-se de mudança, mas o sonho democrático vai-se consumindo, reduzido a uma técnica de consenso, onde a divergência se reprime e o pensamento crítico se perde no hábito.

Em nome da estabilidade, o político cede campo ao económico, e o cidadão converte-se em simples consumidor de direitos. A democracia, privada do sopro da sua energia viva - a faculdade de objetar e de transformar -, arrisca tornar-se mera administração do possível.

O seu vazio não é apenas verbal: é também moral e político. Falta-lhe a chama do inconformismo, o gesto ético de dizer não, a coragem de reabrir o espaço da igualdade e da justiça. Por isso, mais do que celebrar o que possuímos, importa recordar o que falta: uma democracia capaz de reencontrar o seu lume inicial - o da esperança, da crítica e da liberdade.

segunda-feira, outubro 13, 2025

UM ABRAÇO, JOÃO NEVES

Há caminhos que, mesmo sem o aplauso das urnas, guardam em ti a claridade dos gestos justos. O teu é um desses percursos: firme na coerência, sereno na entrega, habitado por uma fé discreta que faz da política uma forma de consciência.

A tua história, pessoal e familiar, é um lugar de memória onde o serviço prevalece sobre o desejo de poder, ou seja, esse cobiçável modo de estar que resiste ao cansaço e às sombras do tempo.

Aceita, pois, este sinal de apreço por continuares a acreditar quando tudo parece dispersar-se. Há verdades que se revelam apenas na paciência dos dias, e há causas que florescem tarde, mas florescem.

Porque o tempo, esse juiz sem pressa, acaba sempre por reconhecer o que nasceu de um coração inteiro.

Aqui te deixo, amigo João, um sincero abraço.


domingo, outubro 12, 2025

EM DIA DE ELEIÇÕES

Para além do voto, não me afasto da cultura da argumentação e sua inspiração. Bem pelo contrário. Será a circunstância onde o humano, ao votar, se reconhece na diferença. Ela torna-se o exercício da escuta e da crítica, indispensável a qualquer vida democrática. Quando o discurso político se reduz ao grosseiro insulto e à sua manipulação eletrizante, como sucede nas atuais estratégias populistas, com as suas promessas simplistas e demagógicas, perde-se a própria ideia de política como espaço de palavra partilhada. Defender a palavra e a argumentação, hoje com o voto, será, certamente, defender a civilização do diálogo contra a atual barbárie da desmedida berraria.


sexta-feira, outubro 10, 2025

O PODER DE ABRIR OS OLHOS

Sinto viver um tempo em que o meu íntimo se desloca. Tudo o que me parecia seguro e estável, como obrigação, costume, urgência e precisão, vai perdendo confiança e mérito. A vida, esse desgastado espelho de convénios, parece-me desunir-se em silêncio. E não só, pois surge algo diferente, não porque se ofusque, mas sim porque se vê de um outro jeito.

Durante muito tempo fomos aprendendo a viver segundo o olhar dos outros. O tempo sempre medido, o amor catalogado e o corpo regulado. A vida, no que lhe pertence, reduzida ao cálculo e à respiração do proveito. Mas por baixo dessa excêntrica sagacidade de normalidade há sempre um murmúrio, um apelo surdo da intenção de reiniciar.

Mudar a perceção torna necessário perceber e apreender esse murmúrio. Torna-se inevitável transfigurar o ponto de vista da submissão pela ideia da criatividade e inspiração. Torna-se necessário alcançar a ideia e o sentido de que o prazer não é um luxo, mas o modo natural do ser quando já não sente receio pelo mundo e pela vida que o estimula.

Viver, sendo uma palavra simples, existe quase esquecida. Torna-se um viver sem finalidade, sem limite, sem cenário e representação. Um viver como quem entrega à vida o que lhe foi furtado, ou seja, a sua alegria, dinamismo e surpresa.

A contraversão de ângulo não se faz uma doutrina, mas sim um gesto, um fácil e ágil movimento do olhar que transfigura a paisagem na sua totalidade. Quem o faz, mesmo não o reconhecendo, já despertou a indignação. Porque o verdadeiro poder, o único que liberta, é o de abrir os olhos e ver esse mundo às claras.

quinta-feira, outubro 09, 2025

A PALAVRA E AS SUAS SOMBRAS

Eu, como tantos outros, recuso a ideia de um sujeito indiferente à linguagem e ao discurso, alheio à história e à ideologia que o atravessam. O sujeito não fala a partir do nada nem de um ponto zero da expressão; fala a partir de lugares marcados por criações imaginárias e por posições ideológicas que o orientam e o definem. A palavra que profere é, assim, já habitada por outras vozes, por memórias sedimentadas, por ausências que lhe dão forma. Esta deslocação teórica implica abandonar o espelho simplificador da psicologia, onde o sujeito se via inteiro, e substituí-lo por uma compreensão em que o inconsciente e a ideologia se entrelaçam na singular invenção do dizer.

Mas esse percurso simbólico não se projeta no vazio. As criações imaginárias são porosas às desigualdades sociais, às pertenças culturais e às vivências afetivas que desenham o horizonte de cada sujeito. Ninguém fala fora do mundo, fala-se a partir dele, com o seu peso e com as suas feridas. O modo como alguém se representa - a si, ao outro e ao real - depende tanto das condições materiais da vida quanto das inscrições simbólicas e inconscientes que o acompanham. O sujeito da palavra e do discurso é, pois, uma figura de travessia, entre o social e o psíquico, entre o vivido e o representado. Cada palavra que enuncia transporta, tornado difícil a compreensão, o enredo humano da história que a faz existir.

Em síntese, diria que tal pensamento conduz à compreensão de que o sujeito, ao comunicar, é inseparável das condições históricas, ideológicas e culturais que o moldam. Longe de ser uma consciência livre, ele é efeito de entrelaçamentos entre língua, ideologia e inconsciente, habitado por formações imaginárias que refletem as desigualdades e pertenças que o constituem. É nesse ponto de confluência entre o social e o íntimo, entre o dito e o silenciado, que o sujeito encontra a sua voz, uma voz nunca inteiramente sua, mas sempre marcada pela história que a precede e pela humanidade que a sustenta.


terça-feira, outubro 07, 2025

NINGUÉM FALA SOZINHO

Nem sempre é fácil falar com um outro. Há sempre um incerto, um entremeio onde o sentido oscila, pois quem fala nunca o faz a partir de uma circunstância neutra. Cada palavra carrega consigo o traço distintivo de uma pertença, de uma história, de um modo de ver o mundo. O sujeito, ao falar, oscila entre o que partilha com todos - a língua, enquanto universalidade que o atravessa - e o que lhe é inteiramente próprio, isto é, a sua irredutível singularidade. Entre esses dois polos ergue-se ainda uma zona intermédia: o particular, onde os sujeitos se reconhecem entre si numa mesma posição social, cultural ou ideológica.

É aí que o conceito de “sujeito ideológico” ganha corpo. Nenhum de nós se situa fora dos meandros do sentido que o precedem. Dizemos “eu”, mas o que em nós fala é também o que o mundo nos transmitiu. A ideologia não é um ornamento da consciência, mas a forma pela qual ela se institui.

Compreender um discurso é, por isso, compreender essa interseção: a língua como estrutura que possibilita o dizer; o contexto social e histórico que o torna inteligível; e o sujeito que, entre ambos, tenta inscrever o seu gesto singular através da palavra. O discurso é sempre um lugar de tensão - entre a regularidade e o desvio, entre o instituído e o que tenta despontar como novo.

Talvez seja essa a razão pela qual falar com um outro nunca é apenas comunicar, mas entrar num campo de forças onde o que somos, o que pensamos e o que nos excede se confrontam no mesmo movimento das palavras.

No fundo, falar é sempre mais do que trocar palavras: é deixar que em nós ressoem vozes, memórias e sentidos que nos antecedem. A palavra nunca nos pertence inteiramente; somos nela atravessados pelo que o mundo nos ensinou a dizer - e também pelo que ainda não sabemos dizer. É por isso que, mesmo quando julgamos estar a falar sozinhos, importa alertar que, contrariamente ao que se espera, ninguém fala sozinho. 

domingo, outubro 05, 2025

O BLÁ-BLÁ-BLÁ DA DIREITA FESTIVA

O “Blá-Blá-Blá” significante desta direita de ruidosa e intensa verbosidade, obstinadamente exagerada e de procedência onomatopeica, solta-se de um engenhoso manejo simbólico, repisando palavras que soam a valores, contudo, exauridas de simples e humana verdade. Não tagarela para esclarecer, mas, pelo contrário, para mover afetos e identificações, papagueando para dividir, ludibriar e juramentar.

Significar sujeitos implica reconhecê-los enquanto sujeitos de desejo, de conflito e de contradição, e não apenas como entidades abstratas usadas para justificar juízos. A sua força não reside na figura simbólica, mas na emoção que a persistente e deslavada mentira provoca. Por isso, o seu discurso transpira sarcasmo e hipocrisia, simulando amor ao povo enquanto o empobrece e encurta o bater produtivo do seu coro de obediência.

Como todo o poder que teme o sujeito, prefere a palavra inócua e vazia, fugindo da voz livre. Essa raia da direita tornou-se arguta na idolatria dos seus significantes - pátria, liberdade, povo - temendo, porém, os sujeitos reais que essas palavras poderiam libertar. O seu discurso faz-se, assim, sarcástico, apresentando-se em nome do povo para o manter “festivamente” emudecido. A ironia do termo desmonta, assim, a seriedade desta exaltada direita, barulhenta, superficial e “autocelebratória”. Pelo seu ridículo e caricatura do “Blá-Blá-Blá” do seu discurso com assento na mentira emocional.

domingo, setembro 28, 2025

CHEGA DE ARROGÂNCIA ABSOLUTISTA

A palavra política nunca é neutra. Sempre que é dita, arrasta consigo memórias, disputas e sentidos em conflito. Não tem uma essência fixa: vive numa rede de significados que se cruzam, transformam e desafiam mutuamente. Falar de política é, pois, lidar com termos como democracia, poder, Estado, liberdade, povo, ideologia. Cada um deles abre novos caminhos de interpretação. A política não é um sentido puro, mas uma construção permanente, feita de debate e diferença.

É justamente aí que se revela o cinismo destas direitas fanfarronas e extremas. Tentam bloquear a pluralidade, reduzindo a política a slogans simplificadores, tais como “nação”, “ordem”, “identidade”, “inimigo”. Usam a arrogância do discurso único, recusam a diversidade e embrutecem a linguagem, ao mesmo tempo que pervertem por dentro a vitalidade democrática. Onde existe desacordo criador, instalam uma falsa unidade. Onde há diferença, semeiam a ideia de ameaça. Onde surge divergência, colam o rótulo de traição.

Contra esta apropriação autoritária, torna-se vital lembrar que a política vive, em permanência, da sua condição inacabada. Não é prisão: é abertura possível. A democracia é o regime que acolhe essa abertura, transformando-a em espaço de criação e decisão coletiva. Quem tenta reduzir a política a uma palavra fechada, homogénea e excludente não defende a sociedade. Pelo contrário, destrói-a, explorando a sua neutralização ou até a sua anulação.

sábado, setembro 27, 2025

A LIBERDADE TRAÍDA PELO DESEJO

A linguagem nunca é apenas um espelho da realidade. A psicanálise mostra que nela ressoa o desejo, esse motor secreto que nos move sem que dele tenhamos pleno domínio. O sujeito fanfarrão julga falar em nome da sua convicção, mas o seu dizer evita sempre o que não lhe convém. É nesse intervalo - entre o que pensa afirmar e o que recusa deixar ouvir - que se revela a dissonância própria do exercício da liberdade.

Todos sabemos que não há liberdade que não seja atravessada por equívocos, deslizamentos e restos de desejo. A convicção de ser livre confunde-se, assim, com a marca inconsciente de sermos falados pela língua que nos constitui.

Nos tempos que correm, a retórica da direita radical veste-se de convicção, mas encobre a sua falsidade: entre a convicção e o equívoco, a sombra do desejo afunda-se na petulância de um discurso que trai, em nome da democracia, a própria ideia de liberdade. A convicção simulada, entranhada na incoerência, busca apenas ecos de um humano desatento, embora legítimo. Cuidemos, então, dos nossos verdadeiros desejos…

quarta-feira, setembro 24, 2025

CARTOGRAFIA DA INCERTEZA

O meu tempo de leitura, atento ao interesse que deposito no pensamento, procura-se através da compreensão dos fenómenos e dos estudos sociais e culturais a eles aplicados e, naturalmente, entre eles relacionados. Sinto, progressivamente, que me atrai uma metodologia que não promete o domínio do real nem a completude do saber, mas que se unifica no inacabado através da força crítica que emerge do diálogo entre diferentes campos de conhecimento. Considero que a complexidade do presente não se reduz a um discurso único, mas antes exige o encontro de representações, disciplinas e olhares. É neste espaço de estudo, leitura e escrita que me vou situando e entretendo: não para propor verdades acabadas, mas para interpelar os modos como pensamos, sentimos e nos estruturamos enquanto sociedade. Em síntese, um exercício de participação crítica no entendimento do presente. 

sábado, setembro 20, 2025

UMA EVIDÊNCIA DA FALTA

O sujeito não é aquilo que, quase sempre, supomos ser. Não nos envolvemos na vida social acabados, com uma identidade concluída, unificada e coerente. O nosso papel relacional não se define apenas na troca de ideias com os outros. O sujeito é sempre dividido, atravessado pela falta. Identidades genuínas ou seguras não existem: estão sempre em construção, nutridas de contradições intrínsecas.

O sujeito apresenta-se, sempre, dentro da linguagem, da cultura e da tradição, nunca fora delas. A palavra, a posição e a representação estabilizam-no e fixam-no na rede do social. O significante representa aí um sujeito para outro significante. O sujeito mostra-se, portanto, como consequência do que as coisas significam. Do mesmo modo, os protagonistas coletivos existem porque se organizam em torno de símbolos, discursos e opiniões.

Ao entrar na ordem simbólica, o sujeito reconhece que não pode ser tudo nem ter tudo. Daí a procura necessária de reservas múltiplas e imaginárias. A psicanálise ensina que é justamente da perda que nasce a exuberância da estrutura do desejo. Perante a falta, a identidade desponta e atreve-se a conviver com ela. Os atores coletivos encontram aqui o seu papel: sustentam-se em fantasias e sublimidades que, embora exíguas, mantêm o movimento.

quarta-feira, setembro 17, 2025

PARA UMA CULTURA DE INCITAÇÃO AO COMUM

Neste mundo de narcisismo generalizado, a divergência não frutifica – e muito menos orienta – a luta contra o poder. Incentiva, isso sim, a apatia, a impotência e a indiferença.

O ser humano não nasce sujeito: vai-se fazendo, passo a passo, no delicado trabalho de dar forma à força bruta da pulsão em um desejo que se possa futurar. A pulsão é sinónimo de ímpeto, fogo sem direção. O desejo, pelo contrário, exige um rosto, um objeto, um alvo, ainda que parcial e fugidio. Todavia, essa mudança só acontece quando o que distintamente sentimos se deixa inscrever na palavra, no símbolo, na consonância social e política que nos antecede.

Entre o que pulsa em nós e o que podemos dizer ou desejar abre-se um caminho nem sempre claro. Nele, o sujeito aprende a deslocar a sua vitalidade, invertendo um sentimento no seu contrário, voltando contra si a agressividade que não ousa lançar ao mundo e empurrando para as sombras do inconsciente aquilo que não pode admitir. Melhor, ou seja, elevar a pulsão à dignidade da sublimação, fazendo dela arte, ciência, criação, militância. É nesse jogo de desvios, recalcamentos e reinvenções que cada um se vai cinzelando da matéria dura da vida.

Mais que certo, o dito “eu” nunca se faz, e fará, sozinho. O que em nós reside procura sempre um outro lugar para pousar, seja um mestre, um amigo, uma causa, um líder, uma comunidade. É o movimento da deslocação, desse lançar de afetos e imaginações para além de nós, que entrelaça as relações e nos aproxima a outros ou mesmo a inerentes coletivos. Assim, os desejos íntimos encontram eco e forma na cena humana, e o que era apenas impulso solitário torna-se avizinhamento, pertença e ação que, com outros, alcança.

segunda-feira, setembro 15, 2025

A AMIZADE, ENTRE A PALAVRA E A VERDADE

Um amigo, um real amigo, não é um Outro. A palavra nem sempre é genuína ao encontrar-se com um Outro, não com ele, o amigo. A amizade, nestas circunstâncias, tudo faz para não se expor dividida. O não-sentido precipitadamente escapa assim à consciência constituindo-se numa brevidade do poder do instintivo. Os significantes chamados a dar sentido falham e são substituídos sem fim. Os propósitos não encontram, então, respostas convincentes. Facilmente se invade o domínio da fantasia conjugando o imaginário e o simbólico. Nela, na fantasia, colhemos representações e imagens que imaginam a história propriamente possível. Todavia, insuficientes para encontrar o centro, a origem e a essência da verdade.

sábado, setembro 13, 2025

O MERCADO COMO PALCO DO HUMANO

O nosso tempo está condenado a contradições profundas. Nunca houve tantos fluxos culturais, tantas supostas compensações entre povos, tantas representações em distribuição. Contudo, nunca o decurso cultural esteve tão colonizado pelo regular encadeamento do consumo. Aquilo que poderia ser edificante encontro criador e diálogo de diferenças torna-se, sob a soberania do capital global, mercadoria uniformizada, pronta a ser comprada.

O consumismo capitalista não apenas apresenta, quiçá, utilizáveis proveitos. Vai bem mais longe, presenteando modos de vida, modelos de desejo, representações de identidade. A cultura, que em si poderia ser defesa, memória, inspiração ou herança, é tomada como simples matéria. O espetáculo toma o lugar do pensamento, a imagem espezinha a palavra e o valor de troca impede a respiração do valor simbólico.

Assim sendo, as identidades nacionais e culturais não se retiram por si mesmas; são metamorfoseadas porque se demudam em matéria-prima para o mercado. Tornam-se marcas, slogans, simples atrativos ou clichés publicitários. O sujeito, ao contrário de se pensar livre e criador, é intimado como cliente vitalício, aquele que “é” apenas medida que compra, consome, exibe.

sexta-feira, setembro 12, 2025

PATRIOTISMO COM BOLOR

Nada de raças: chamam-lhe pátria, cultura e tradição. A manha enrola-se na intolerância, entrelaçando hinos e bandeiras, fardas e fronteiras. O racismo silencia-se deslizando na dolência da nacionalidade, do patriotismo e da exaltação dos seus pátrios valores. A reprovação ganha terreno sob o nome de amor à pátria, mascarando o ódio e disfarçando-o no abrigo da honrosa cultura. Mas o artifício finório depressa se torna cristalino no traçado das suas linhas: dentro e fora, os que merecem e os que permanecem estranhos. Quando a “nação unificada” se ergue, é sempre para expulsar, excluir e marcar os que não cabem no retrato. Velha doença, novo uniforme. O racismo veste-se de bandeira e canta hinos. Expulsa, exclui, divide. E o obsceno capitalismo? Esse, claro, manter-se-á afinal silencioso, pois esse ódio chegar-lhe-á a ajustar convenientemente a conta.

quarta-feira, setembro 10, 2025

PALAVRAS HERDADAS, SENTIDOS EMPRESTADOS

Quando falamos, nada apresentamos pela primeira vez. As nossas palavras já vêm encobertas de rumores, de memórias ou de frequências antecipadas. Saussure recorda-nos que não somos autores absolutos do que dizemos. Somos, sim, sucessores de uma língua que nos antecede e nos conforma.

Cada dito que utilizamos é, assim e em certo sentido, emprestadado. Recebemos palavras como se herdássemos mobília antiga, já usada, marcada e impregnada de significados que não escolhemos. E ao mesmo tempo, é com esses materiais que procuramos arquitetar algo de novo, tais como pequenos refúgios, deslocações ou alterações que elucidem gretas dentro do já-dito.

O descentramento daí se revela, pois não falamos de um “eu” soberano, mas sim de uma circunstância trespassada por códigos, convenções e teorias culturais. O que julgamos original não passa de um arranjo no interior do dilatado repertório que a língua nos torna disponível.

E é nessa língua emprestada que habita tanto a nossa delimitação quanto a nossa oportunidade. As palavras não sendo nossas, é no seu uso que podemos com elas inventar novos modos de pensar, viver e intervir, mudando identidades. Podemos tagarelar sempre com palavras dos outros, ainda assim a ousadia medra em como as disciplinamos.


terça-feira, setembro 09, 2025

IDENTIDADE: ENTRE O SER E O REINVENTAR-SE

Entre a fragmentação e a pertença, pensar quem somos neste tempo instável

Ao ler Stuart Hall em A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, vou encontrando mais do que uma observação académica. O que me vai seduzindo é a oportunidade de encarar a identidade não como uma fatalidade definida, mas como uma construção em movimento. Hall mostra que o sujeito moderno, outrora imaginado como único, racional e coerente, divide-se e reinventa-se no mundo contemporâneo. Essa transição da identidade enquanto essência para a identidade como processo restitui-me uma interrogação íntima: quem somos nós, afinal, quando o chão da certeza se desvanece?

A sua resposta não é uma convenção social, mas sim uma descoberta: somos feitos de narrativas, de pertenças, de diálogos e também de interrupções e quebras. O “eu” não está fechado numa resiliência imutável, mas abre-se ao jogo das relações sociais, dos discursos que nos atravessam e das mudanças do tempo histórico. Essas ruturas, que à primeira vista podem parecer perda, revelam-se, afinal, oportunidades. Se já não podemos ser definidos por uma unidade inteiriçada, podemos ser múltiplos, mudáveis e abertos.

Neste mundo globalizado, onde as culturas se cruzam, onde as fronteiras se esbatem e ao mesmo tempo se erguem com violência, a identidade tornou-se um campo de batalha. Nela se joga tanto o poder de impor narrativas dominantes como a resistência dos que não aceitam ser reduzidos ao silêncio. A identidade é, hoje, linguagem de conflito e também de reconhecimento. Das contendas de género às de etnia, das lutas locais às redes sociais globais, não há arena onde ela não se manifeste.

quarta-feira, setembro 03, 2025

NO CLARÃO DA RUÍNA, O SONHO DA LIBERDADE

Quando o cinzento se ilumina pelo fogo da destruição, nasce o desejo secreto de outro mundo.

Neste tempo cinzento, regressivo e sem vitalidade, não vejo a catástrofe como a última festa do eu. Apesar da interdição súbita de um tempo vital, a cor, a paixão e o calor não se perderam por completo. A vida nunca deixa de se celebrar lutando. Até o fracasso, arquitetado inconscientemente, transforma-se em ocasião para sentir de novo o real.

O cinzento sonha com cores que regressam apenas no clarão da ruína. A festa última acende-se inevitavelmente no fogo da destruição. Comunidades, inconscientes entre luto e festa, acabam por desejar em segredo esse fim desastroso, como único caminho para reencontrar emoções que o habitual afoga. Incapazes de festejar ou reagir a tempo, resta-nos a espera fácil pelo desprezo - esse artifício gratuito onde todos podem gritar, chorar e aplaudir sem arrependimentos.

Não me sinto historiador, mas aproximo-me da ideia de José Saramago, imaginando-me criador atrevido de outro mundo, capaz de distinguir um passado dividido e separar o que importa do que não merece atenção. Só assim poderia vislumbrar onde se situará o mundo habitável.

Como escreve Carlos Nogueira, a “ideia saramaguiana não existe fora de cada um de nós e fora das coisas; existe dentro de cada pessoa, e é aí que se desenvolve e se materializa em atos e coisas”. O mundo ideal de Saramago, mesmo que inalcançável, inclui uma moral digna de uma conduta em que o material e o espiritual se estruturam através do ideal da liberdade.


Nota final

Este texto nasceu da inquietação perante o presente: um tempo marcado pelo desencanto, pelo peso das rotinas e pela sensação de que a vida perdeu a sua força criadora. O recurso à catástrofe não é desejo mórbido, mas metáfora do limite: só quando tudo ameaça ruir é que se revela o que ainda pode ser salvo.

A ruína, paradoxalmente, torna-se ocasião de despertar. Foi neste ponto que encontrei em Saramago uma inspiração: a capacidade de imaginar outros mundos, de desconfiar do óbvio, de procurar a justiça mesmo quando parece inalcançável. Aproximar-me dele é procurar também uma ética mínima -  onde material e espiritual não se oponham, mas se organizem na busca da liberdade.

Se estas linhas emergem da angústia, emergem também do desejo: desejo de não deixar que o cinzento mate a esperança, e de afirmar que o humano só se realiza quando se abre ao sonho da liberdade.

O SER DO SELF TOTALITÁRIO

Eis que chega a grandeza suprema: a humanidade, perdida entre dúvidas inúteis e desejos ridículos, finalmente se ajoelha perante o SELF PURO E ABSOLUTO.

A espontaneidade faz-se crime. A privacidade torna-se luxo burguês. A pluralidade, como é óbvio, reduz-se a achincalhe do UNO digno.

O GRANDE EU vê tudo. Tudo mesmo. Um suspiro fora de hora. Um riso traiçoeiro. Uma fantasia desalinhada. Tudo vai para a lixeira crítica da pátria. A ordem não tolera atrevimentos. A ordem não suporta sequer entusiasmos.

Curioso, não? Tanta mestria exige vigilância. O TODO treme diante da meiguice. O ABSOLUTO assusta-se com o menor defeito. Herói frágil? Poder fragilíssimo.

O riso será sempre proibido. Se insiste, resta-lhe a clandestinidade: bicha-se nas sombras da alma, ali onde o SELF SUPREMO ainda não instalou as suas câmaras.

Cada gesto é fiscalizado. Cada emoção, medida. Cada pensamento, incessantemente vigiado. O SELF TOTALITÁRIO: divino, absoluto, mas ridiculamente temeroso do humano.

quarta-feira, agosto 27, 2025

SIM, SIM! A COERÇÃO DAS CONDIÇÕES SOCIAIS

Prolongo, com toda a satisfação, a leitura de Porque sou COMUNISTA, de Pedro Tadeu. Aqui sublinho, em particular, a afirmação de que “os heróis e os vilões podem existir, é claro, mas são consequência e não causa”, pois encontro nela algo que me ajuda a compreender melhor o fundamento do chamado materialismo histórico. O que aqui se exprime, assim deduzo, é a ideia de que a história não se reduz a sujeitos isolados, mas sim à disputa permanente das contradições sociais e das lutas de classes. Os protagonistas podem destacar-se, mas o seu papel ganha sentido apenas nas entranhas das condições materiais e sociais mais vastas, que lhes entregam a possibilidade de agir ou de se impor.

Esta perspetiva tem, para mim, algo de essencial: retira peso à tendência - tão comum, aliás - de reduzir a explicação da história a responsáveis ou a libertadores, submetendo à consideração um olhar mais total, evidente e realista. Relembre-se que Napoleão não criou sozinho o Império, Salazar não inventou o Estado Novo, assim como as figuras que admiramos só emergem porque há, atrás delas, lutas e aspirações coletivas que exigem a sua presença.

Não pretendo, porém, negar de todo o relevo da ação individual, pois o materialismo histórico não é um determinismo cego. O que ele revela é que a força dos indivíduos depende sempre da rede de contradições e forças sociais em que se apoiam e atuam. É nesse entrelaçado que alcançam eficiência e poder ou, pelo contrário, se tornam inofensivos.

Por isso, convence-me a exposição de Pedro Tadeu ao deslocar o foco da culpa ou da glória pessoal para as estruturas sociais, relembrando que compreender a história é apreender as forças que a moldaram e continuam a representar o nosso presente. É, pois, claramente através dessa interpretação que se vai descobrindo e encontrando um olhar mais sereno e esclarecedor, ou seja, um olhar que não se perde em vilões e heróis, mas se orienta na alteração das condições que os tornam possíveis. Em síntese: um olhar diferente, que nos compromete com a verdade do real.

terça-feira, agosto 26, 2025

A NOBREZA ATREVIDA DE PEDRO TADEU

Portugal tornou-se, penso eu, um país onde a “isenção jornalística” é a maior das ficções. Comentaristas que se repetem de canal em canal como papagaios de cartilha, notícias cozinhadas à medida do patrão e uma neutralidade tão casta que só serve para proteger os fortes e calar os fracos. Eis o jornalismo conservador que temos: obediente, previsível e com o brilho crítico de um apagador de quadros.

No entanto, eis que surge Pedro Tadeu, sem cobardias, incómodo, assumido, comunista. No seu livro Porque sou COMUNISTA, relembra o óbvio que todos fingem ignorar: não existe jornalista neutro. A neutralidade é apenas a ideologia dominante disfarçada de batina branca. Fingir que se olha o mundo sem ideologia é o truque, talvez, mais gasto da propaganda.

O que pode existir, mas que raramente vemos, é independência: a coragem de reconhecer as próprias lentes e, ainda assim, procurar uma verdade que não seja apenas a fotocópia do discurso oficial. Utopia? Talvez. Mas sem utopias a profissão não passa de boneco articulado.

A opinião não é notícia, nem reportagem, nem análise. Mas em Portugal tornou-se tudo ao mesmo tempo, ou, mais claramente, um circo onde o comentador faz de repórter, o repórter faz de moralista e o moralista faz de cão de guarda do patrão.

Pedro Tadeu, pelo contrário, não se esconde. Assume o que pensa, expõe as suas convicções e, sem medos nem receios, é aí que exprime a sua verdadeira liberdade. Muitos outros, pelo contrário, vão-se ajoelhando perante a fábula da isenção, enquanto Pedro Tadeu mostra que a ética não é afastamento de ideias, mas sim clareza, coragem e rigor.

Neste tempo em que grande parte do jornalismo português se tornou caixa de ressonância do conservadorismo, confundindo ponderação com cobardia e imparcialidade com sabujice, Pedro Tadeu torna-se uma raridade: não mais uma voz que dá relevo ao poder, mas uma voz que, certamente, o incomoda e desassossega. 

O INCONSCIENTE E AS NOSSAS IDIOTICES

Todos temos problemas, mas não é mau insistirmos em tê-los: uns inevitáveis, outros necessários, alguns até fecundos, pois forçam-nos a crescer. Mas há também contratempos insólitos, aqueles que não nos acontecem, mas que persistimos em cultivar. Curiosamente, viver parece exigir essa estranha necessidade de complicar a própria verdade. No entanto, o valor humano da simplicidade continua a ser uma lição esquecida: viver pode ser, também, aprender a clarear o que complicamos, a deixar que a vida seja menos intrincada do que a nossa mente deseja.

O nervo da psicanálise, todavia, avisa-nos de que tais achados não são, de todo, indiferentes. Essas criações assinalam a persistência do inconsciente em nos prender naquilo que não compreendemos de nós mesmos. Assim, o estorvo imaginado não é mera idiotice, mas antes a encenação de uma disputa íntima que busca juntar o hábil artifício com o encenado jogo do desejo e do medo. Reconhecer este vício de jogar pode ser, evidentemente, o primeiro passo para regenerar a tolice em consciência, procurando, tanto quanto possível, dar-lhe um sentido mais enraizado.

É bom entendermos que muitos dos nossos problemas são inventados, fruto dessa estranha e imbecil necessidade de complicar. E talvez a grande sabedoria resida, afinal, em reaprendermos a simplicidade, não a do simplismo ingénuo, mas a da clareza que nos devolve ao essencial.

domingo, agosto 24, 2025

NÃO DEITEMOS FORA O BEBÉ COM A ÁGUA DO BANHO

Pedro Tadeu, no seu livro Porque sou COMUNISTA, toca numa ferida incómoda: a esquerda, com as suas melhores intenções, tropeça frequentemente nos próprios pés. O wokismo é o exemplo acabado disso. Quer abolir todas as marginalizações, e quem ousaria levantar-se contra tal desígnio? O problema começa quando a boa intenção se transforma em catecismo e a política em sermão.

O “politicamente correto”, em vez de abrir horizontes, constrói trincheiras. Em vez de libertar a conversa, instala um clima de julgamento moral onde cada palavra é suspeita e cada silêncio cúmplice. Resultado? A esquerda deixa de ser força crítica e passa a caricatura de si mesma. E, ironia suprema, quem esfrega as mãos de contente é a extrema-direita: apresenta-se como “defensora da liberdade de expressão”, enquanto, com desfaçatez, espalha medo e rancor com eficácia de mercado.

O erro mais grave é confundir a exceção com a regra, o caso com a causa. Uma injustiça, seja real, pungente ou legítima, não deve ser confundida com o todo da luta política. Quando a esquerda se deixa arrastar pela ocorrência particular, afasta-se do núcleo duro, ou seja, das estruturas que sustentam as verdadeiras opressões.

Daí a advertência certeira de Pedro Tadeu; não deitemos fora o bebé com a água do banho. O combate às discriminações é inegociável, sempre. Mas se for conduzido como ritual wokista, em vez de prática emancipadora, o efeito é perverso; mais uma chupeta para o conservadorismo se entreter e, pior ainda, mais munições para as direitas radicais, sempre bem nutridas e ávidas de pretextos.

Eis a ironia amarga: os que sonham libertar-nos de todas as correntes podem acabar, sem o perceber, a reforçar as velhas algemas. 

sábado, agosto 23, 2025

PEDRO TADEU E O IMPULSO DO COMUM

Comecei a leitura do livro de Pedro Tadeu, Porque sou COMUNISTA, e não podia deixar de revelar o entusiasmo que este achado me vem despertando. O autor, conhecido pela sua militância e pela clareza da sua voz pública, afirma sem embaraço a atualidade do comunismo - fá-lo com uma lucidez que desfaz preconceitos e com uma sinceridade que acende esperanças.

O que mais me impressiona nestas primeiras páginas é a relação profunda que ele estabelece entre o comum e o comunismo. O comum - aquilo que nos pertence a todos: a dignidade, a justiça, os recursos, a solidariedade - não é apenas um conceito abstrato e distante, mas o fundamento de uma vida que se quer partilhada, liberta da lógica da privatização e do mercado total. Nesse horizonte, o comunismo surge como a política do comum, a afirmação de que não nos basta viver isoladamente; precisamos de construir juntos, de resistir à desigualdade, de defender o que é de todos.

Pedro Tadeu escreve não como quem repete fórmulas feitas do passado, mas como quem afirma que o comunismo é uma necessidade do presente. A sua palavra ressoa, ao mesmo tempo, como memória e como futuro. E eu, leitor atento, não posso deixar de me sentir, desde já, envolvido. Ler este livro é reencontrar a força de uma ideia que insiste em não morrer, porque é inseparável daquilo que nos torna verdadeiramente humanos - o comum.

Falo, pois, de um comum que não limita a liberdade, mas a enobrece; de um comum que vive da liberdade e da sua grandeza; em síntese, de um comum que engrandece a liberdade. 

quinta-feira, agosto 21, 2025

ENTRELAÇOS

Folheando frases feitas de António Coimbra de Matos, de título Se me implico, transformo, ele escreve: “O homem é um animal social, relacional. Produto da relação, o seu destino cumpre-se na relação. Nasce da relação, vive para a relação e na relação." Antes de meditar sobre o achado, logo pensei: nasci da relação, dela sou enlace e transição e, num outro, me encontro. Em encontros que me deslocam, o eu se vai sujeitando e, no seu envolvimento, me comprometo. Desta forma, no encontro me transformei, no crescer me impliquei e nesse envolvente contínuo me transformo, afinal, e no meu ser assim vivendo.

Em resumo: vejo-me nascido da relação, medrado na relação e habitando a relação. No olhar do outro, sou. No gesto do outro, mudo. No encontro, aconteço. Relação é origem, é destino, e permanece, afinal, o caminho dos entrelaços.

terça-feira, agosto 19, 2025

ENTRE O SILÊNCIO E A VIDA

A felicidade não se compra, nem se exibe, cultiva-se. O que o consumo chama felicidade é apenas montra, o que a vida chama felicidade não passa de um silêncio que em nós habita. A felicidade é menos um fim do que um repouso atuante, uma serenidade que se enriquece nos interlúdios e não se alimenta dos proveitos das esperanças efémeras. Não há uma felicidade universal. Ela é sempre singular, florescendo no enlace das relações. Ser feliz não é imitar alegorias abastadas, mas resistir à sedução fácil delas. O assombro quer que a felicidade se divulgue; a vida, porém, exige que ela se viva. A cultura da felicidade não dispensa o ato ético, ou seja, cuidar de si sem se perder no reflexo dos outros. A felicidade é uma resistência discreta, não imitando imagens, mas florescendo no intervalo do vivido. Contra o mostruário do mundo, não escapa ao exercício ético do silêncio. Ser feliz não é mostrar-se, mas tornar-se capaz de se habitar. Em síntese, cultivar a felicidade é menos buscar um objeto do que exercitar uma relação viva consigo mesmo, com os outros e com o mundo, isto é, uma relação que resiste a ser convertida em presunçosa imagem ou mesmo numa ridícula e enganosa mercadoria.

ENTRE MÁSCARAS E ESPELHOS

As nossas imagens sociais deslizam facilmente para a caricatura, numa obstinada tentativa de imitação sem brilho. Ao mascarar representações, aproximamo-nos do lúdico e, em silêncio, competimos, embora a farsa se repita até à resignação. No regresso a casa, arrumamos em silêncio a impostura que mostramos ao olhar do outro. A diversidade de perspetivas, longe de libertar, transforma-se em fardo, num eu despedaçado, exposto num mostruário de aceitação.

Nem sempre nos levámos a sério. Presos às nossas exigentes imitações, tornámo-nos caricaturas de nós mesmos. O burlesco embala a nossa dignidade, preparando-nos para a pose na fotografia. E não há problema, porque a imagem social converte-se numa dissimulação tão sedutora que todos fingem acreditar nela. O eu público encontra-se sempre numa pantomina coletiva, ou seja, cada um representa, todos se elogiam, ninguém se embaraça. O outro olha-nos com espanto, e nós devolvemos o papel com um sorriso bem ensaiado.

O ridículo, pouco a pouco, assim se fez uma segunda pele. Sem percebermos, tornámo-nos máscaras burlescas, sem pudor e sem decoro. A caricatura é já o retrato oficial da sociedade. Ninguém foge ao espelho, apenas se esconde da vergonha. O eu social não pensa, limita-se a exibir-se, afetado e presunçoso. Rir dos outros dá prazer, mas esquecemo-nos de que nos representamos, também, sempre de mal a pior.

A conclusão é simples: a vergonha morreu, e só resta o espetáculo. A caricatura é hoje o retrato fiel de uma comunidade que corrompeu a própria vergonha. Vivemos de máscaras porque tememos a nudez do olhar, pois o ridículo deixou de ser exceção, tornou-se identidade. Assim sendo, a sociedade do grotesco rodopia entre máscaras e espelhos fantasiando essa outra segunda pele do Eu. A ilusão cumpre, então, a sua habilidosa função de proteger o nosso desespero do vazio neste ridículo modo de vida.

sábado, agosto 16, 2025

A ALEGRIA SERENA DO SILÊNCIO

Dou comigo, continuadamente, a ler, servindo-me da meditação que nasce desse precioso lugar do silêncio, que me conduz à vida humana, tanto pessoal como coletiva. A experiência tem-se mostrado positiva, sem restrições, descerrando interioridades, considerações, interseções e, por vezes, novas interpretações. O silêncio tem-me proporcionado distanciamento, favorecendo o pensamento, o encontro comigo próprio e com o que me ultrapassa.

Só, e em silêncio, vou escapando ao excesso do ruído, da informação e da desatenção. O silêncio apresenta-se sempre como resistência, permitindo-me recuperar a particularidade da concentração e da profundidade da vivência. O silêncio, hoje, nunca me faz só, bem pelo contrário, pois aprendi que me dá consistência e tempo para uma veracidade mais humana. Trata-se, pois, de um convite existencial, ao semear o quotidiano para recriar a calma, a criatividade e a liberdade interior. Sinto hoje o silêncio assim como um espaço vital para o pensamento, sensibilidade e espiritualidade, em polifonia com este tempo saturado de ruídos e alvoroços.

O silêncio não é ausência, mas um princípio. É nele que reencontro os traços da vida ativa que me moldaram, agora aperfeiçoados, vistos à distância que ilumina. O passado já não me pesa, repercute-me, comovido, nos descansos que escolho viver. Ao desfolhar o tempo, compreendo que o silêncio é a moldura que dá sentido às minhas palavras e às ações de outrora. Longe do ruído, descubro que pensar é dar vida ao tempo. Cada leitura torna-se, assim, renascimento, cada ideia um fruto silencioso que amadurece no presente. Não é desistência, mas entusiasmo sereno, lado a lado, com uma alegria que cresce sem precisar de se sobrepor. 

APENAS EXPONHO A SIMPLICIDADE

Sim, insisto, a simplicidade não é pobreza. A simplicidade de que falo é uma liberdade diante do excesso que escraviza. Não é, também, negação da complexidade humana, mas sim clareza contra o equívoco inventado neste mundo, e neste tempo, que transforma o consumo em dogma e a simplicidade em resistência. Sim, neste mundo e neste tempo em que o acúmulo de uns se empertiga sobre a miséria de muitos e a simplicidade se mostra justiça. Sim, nesta Terra consumida pela sovinice do lucro e a simplicidade se torna condição de sobrevivência. Daí, a simplicidade reverte-se em ética porque se liberta do supérfluo, a estética revela o belo no essencial e a política abre espaço ao comum, ao justo e ao partilhado. Defender a simplicidade é recusar a mentira do ilimitado, é devolver dignidade ao humano, clareza ao viver e autenticidade à cultura. É fundar um outro horizonte, onde o poder não se mede pelo excesso, mas sim pela justa e salutar medida.