quarta-feira, agosto 27, 2025

SIM, SIM! A COERÇÃO DAS CONDIÇÕES SOCIAIS

Prolongo, com toda a satisfação, a leitura de Porque sou COMUNISTA, de Pedro Tadeu. Aqui sublinho, em particular, a afirmação de que “os heróis e os vilões podem existir, é claro, mas são consequência e não causa”, pois encontro nela algo que me ajuda a compreender melhor o fundamento do chamado materialismo histórico. O que aqui se exprime, assim deduzo, é a ideia de que a história não se reduz a sujeitos isolados, mas sim à disputa permanente das contradições sociais e das lutas de classes. Os protagonistas podem destacar-se, mas o seu papel ganha sentido apenas nas entranhas das condições materiais e sociais mais vastas, que lhes entregam a possibilidade de agir ou de se impor.

Esta perspetiva tem, para mim, algo de essencial: retira peso à tendência - tão comum, aliás - de reduzir a explicação da história a responsáveis ou a libertadores, submetendo à consideração um olhar mais total, evidente e realista. Relembre-se que Napoleão não criou sozinho o Império, Salazar não inventou o Estado Novo, assim como as figuras que admiramos só emergem porque há, atrás delas, lutas e aspirações coletivas que exigem a sua presença.

Não pretendo, porém, negar de todo o relevo da ação individual, pois o materialismo histórico não é um determinismo cego. O que ele revela é que a força dos indivíduos depende sempre da rede de contradições e forças sociais em que se apoiam e atuam. É nesse entrelaçado que alcançam eficiência e poder ou, pelo contrário, se tornam inofensivos.

Por isso, convence-me a exposição de Pedro Tadeu ao deslocar o foco da culpa ou da glória pessoal para as estruturas sociais, relembrando que compreender a história é apreender as forças que a moldaram e continuam a representar o nosso presente. É, pois, claramente através dessa interpretação que se vai descobrindo e encontrando um olhar mais sereno e esclarecedor, ou seja, um olhar que não se perde em vilões e heróis, mas se orienta na alteração das condições que os tornam possíveis. Em síntese: um olhar diferente, que nos compromete com a verdade do real.

terça-feira, agosto 26, 2025

A NOBREZA ATREVIDA DE PEDRO TADEU

Portugal tornou-se, penso eu, um país onde a “isenção jornalística” é a maior das ficções. Comentaristas que se repetem de canal em canal como papagaios de cartilha, notícias cozinhadas à medida do patrão e uma neutralidade tão casta que só serve para proteger os fortes e calar os fracos. Eis o jornalismo conservador que temos: obediente, previsível e com o brilho crítico de um apagador de quadros.

No entanto, eis que surge Pedro Tadeu, sem cobardias, incómodo, assumido, comunista. No seu livro Porque sou COMUNISTA, relembra o óbvio que todos fingem ignorar: não existe jornalista neutro. A neutralidade é apenas a ideologia dominante disfarçada de batina branca. Fingir que se olha o mundo sem ideologia é o truque, talvez, mais gasto da propaganda.

O que pode existir, mas que raramente vemos, é independência: a coragem de reconhecer as próprias lentes e, ainda assim, procurar uma verdade que não seja apenas a fotocópia do discurso oficial. Utopia? Talvez. Mas sem utopias a profissão não passa de boneco articulado.

A opinião não é notícia, nem reportagem, nem análise. Mas em Portugal tornou-se tudo ao mesmo tempo, ou, mais claramente, um circo onde o comentador faz de repórter, o repórter faz de moralista e o moralista faz de cão de guarda do patrão.

Pedro Tadeu, pelo contrário, não se esconde. Assume o que pensa, expõe as suas convicções e, sem medos nem receios, é aí que exprime a sua verdadeira liberdade. Muitos outros, pelo contrário, vão-se ajoelhando perante a fábula da isenção, enquanto Pedro Tadeu mostra que a ética não é afastamento de ideias, mas sim clareza, coragem e rigor.

Neste tempo em que grande parte do jornalismo português se tornou caixa de ressonância do conservadorismo, confundindo ponderação com cobardia e imparcialidade com sabujice, Pedro Tadeu torna-se uma raridade: não mais uma voz que dá relevo ao poder, mas uma voz que, certamente, o incomoda e desassossega. 

O INCONSCIENTE E AS NOSSAS IDIOTICES

Todos temos problemas, mas não é mau insistirmos em tê-los: uns inevitáveis, outros necessários, alguns até fecundos, pois forçam-nos a crescer. Mas há também contratempos insólitos, aqueles que não nos acontecem, mas que persistimos em cultivar. Curiosamente, viver parece exigir essa estranha necessidade de complicar a própria verdade. No entanto, o valor humano da simplicidade continua a ser uma lição esquecida: viver pode ser, também, aprender a clarear o que complicamos, a deixar que a vida seja menos intrincada do que a nossa mente deseja.

O nervo da psicanálise, todavia, avisa-nos de que tais achados não são, de todo, indiferentes. Essas criações assinalam a persistência do inconsciente em nos prender naquilo que não compreendemos de nós mesmos. Assim, o estorvo imaginado não é mera idiotice, mas antes a encenação de uma disputa íntima que busca juntar o hábil artifício com o encenado jogo do desejo e do medo. Reconhecer este vício de jogar pode ser, evidentemente, o primeiro passo para regenerar a tolice em consciência, procurando, tanto quanto possível, dar-lhe um sentido mais enraizado.

É bom entendermos que muitos dos nossos problemas são inventados, fruto dessa estranha e imbecil necessidade de complicar. E talvez a grande sabedoria resida, afinal, em reaprendermos a simplicidade, não a do simplismo ingénuo, mas a da clareza que nos devolve ao essencial.

domingo, agosto 24, 2025

NÃO DEITEMOS FORA O BEBÉ COM A ÁGUA DO BANHO

Pedro Tadeu, no seu livro Porque sou COMUNISTA, toca numa ferida incómoda: a esquerda, com as suas melhores intenções, tropeça frequentemente nos próprios pés. O wokismo é o exemplo acabado disso. Quer abolir todas as marginalizações, e quem ousaria levantar-se contra tal desígnio? O problema começa quando a boa intenção se transforma em catecismo e a política em sermão.

O “politicamente correto”, em vez de abrir horizontes, constrói trincheiras. Em vez de libertar a conversa, instala um clima de julgamento moral onde cada palavra é suspeita e cada silêncio cúmplice. Resultado? A esquerda deixa de ser força crítica e passa a caricatura de si mesma. E, ironia suprema, quem esfrega as mãos de contente é a extrema-direita: apresenta-se como “defensora da liberdade de expressão”, enquanto, com desfaçatez, espalha medo e rancor com eficácia de mercado.

O erro mais grave é confundir a exceção com a regra, o caso com a causa. Uma injustiça, seja real, pungente ou legítima, não deve ser confundida com o todo da luta política. Quando a esquerda se deixa arrastar pela ocorrência particular, afasta-se do núcleo duro, ou seja, das estruturas que sustentam as verdadeiras opressões.

Daí a advertência certeira de Pedro Tadeu; não deitemos fora o bebé com a água do banho. O combate às discriminações é inegociável, sempre. Mas se for conduzido como ritual wokista, em vez de prática emancipadora, o efeito é perverso; mais uma chupeta para o conservadorismo se entreter e, pior ainda, mais munições para as direitas radicais, sempre bem nutridas e ávidas de pretextos.

Eis a ironia amarga: os que sonham libertar-nos de todas as correntes podem acabar, sem o perceber, a reforçar as velhas algemas. 

sábado, agosto 23, 2025

PEDRO TADEU E O IMPULSO DO COMUM

Comecei a leitura do livro de Pedro Tadeu, Porque sou COMUNISTA, e não podia deixar de revelar o entusiasmo que este achado me vem despertando. O autor, conhecido pela sua militância e pela clareza da sua voz pública, afirma sem embaraço a atualidade do comunismo - fá-lo com uma lucidez que desfaz preconceitos e com uma sinceridade que acende esperanças.

O que mais me impressiona nestas primeiras páginas é a relação profunda que ele estabelece entre o comum e o comunismo. O comum - aquilo que nos pertence a todos: a dignidade, a justiça, os recursos, a solidariedade - não é apenas um conceito abstrato e distante, mas o fundamento de uma vida que se quer partilhada, liberta da lógica da privatização e do mercado total. Nesse horizonte, o comunismo surge como a política do comum, a afirmação de que não nos basta viver isoladamente; precisamos de construir juntos, de resistir à desigualdade, de defender o que é de todos.

Pedro Tadeu escreve não como quem repete fórmulas feitas do passado, mas como quem afirma que o comunismo é uma necessidade do presente. A sua palavra ressoa, ao mesmo tempo, como memória e como futuro. E eu, leitor atento, não posso deixar de me sentir, desde já, envolvido. Ler este livro é reencontrar a força de uma ideia que insiste em não morrer, porque é inseparável daquilo que nos torna verdadeiramente humanos - o comum.

Falo, pois, de um comum que não limita a liberdade, mas a enobrece; de um comum que vive da liberdade e da sua grandeza; em síntese, de um comum que engrandece a liberdade. 

quinta-feira, agosto 21, 2025

ENTRELAÇOS

Folheando frases feitas de António Coimbra de Matos, de título Se me implico, transformo, ele escreve: “O homem é um animal social, relacional. Produto da relação, o seu destino cumpre-se na relação. Nasce da relação, vive para a relação e na relação." Antes de meditar sobre o achado, logo pensei: nasci da relação, dela sou enlace e transição e, num outro, me encontro. Em encontros que me deslocam, o eu se vai sujeitando e, no seu envolvimento, me comprometo. Desta forma, no encontro me transformei, no crescer me impliquei e nesse envolvente contínuo me transformo, afinal, e no meu ser assim vivendo.

Em resumo: vejo-me nascido da relação, medrado na relação e habitando a relação. No olhar do outro, sou. No gesto do outro, mudo. No encontro, aconteço. Relação é origem, é destino, e permanece, afinal, o caminho dos entrelaços.

terça-feira, agosto 19, 2025

ENTRE O SILÊNCIO E A VIDA

A felicidade não se compra, nem se exibe, cultiva-se. O que o consumo chama felicidade é apenas montra, o que a vida chama felicidade não passa de um silêncio que em nós habita. A felicidade é menos um fim do que um repouso atuante, uma serenidade que se enriquece nos interlúdios e não se alimenta dos proveitos das esperanças efémeras. Não há uma felicidade universal. Ela é sempre singular, florescendo no enlace das relações. Ser feliz não é imitar alegorias abastadas, mas resistir à sedução fácil delas. O assombro quer que a felicidade se divulgue; a vida, porém, exige que ela se viva. A cultura da felicidade não dispensa o ato ético, ou seja, cuidar de si sem se perder no reflexo dos outros. A felicidade é uma resistência discreta, não imitando imagens, mas florescendo no intervalo do vivido. Contra o mostruário do mundo, não escapa ao exercício ético do silêncio. Ser feliz não é mostrar-se, mas tornar-se capaz de se habitar. Em síntese, cultivar a felicidade é menos buscar um objeto do que exercitar uma relação viva consigo mesmo, com os outros e com o mundo, isto é, uma relação que resiste a ser convertida em presunçosa imagem ou mesmo numa ridícula e enganosa mercadoria.

ENTRE MÁSCARAS E ESPELHOS

As nossas imagens sociais deslizam facilmente para a caricatura, numa obstinada tentativa de imitação sem brilho. Ao mascarar representações, aproximamo-nos do lúdico e, em silêncio, competimos, embora a farsa se repita até à resignação. No regresso a casa, arrumamos em silêncio a impostura que mostramos ao olhar do outro. A diversidade de perspetivas, longe de libertar, transforma-se em fardo, num eu despedaçado, exposto num mostruário de aceitação.

Nem sempre nos levámos a sério. Presos às nossas exigentes imitações, tornámo-nos caricaturas de nós mesmos. O burlesco embala a nossa dignidade, preparando-nos para a pose na fotografia. E não há problema, porque a imagem social converte-se numa dissimulação tão sedutora que todos fingem acreditar nela. O eu público encontra-se sempre numa pantomina coletiva, ou seja, cada um representa, todos se elogiam, ninguém se embaraça. O outro olha-nos com espanto, e nós devolvemos o papel com um sorriso bem ensaiado.

O ridículo, pouco a pouco, assim se fez uma segunda pele. Sem percebermos, tornámo-nos máscaras burlescas, sem pudor e sem decoro. A caricatura é já o retrato oficial da sociedade. Ninguém foge ao espelho, apenas se esconde da vergonha. O eu social não pensa, limita-se a exibir-se, afetado e presunçoso. Rir dos outros dá prazer, mas esquecemo-nos de que nos representamos, também, sempre de mal a pior.

A conclusão é simples: a vergonha morreu, e só resta o espetáculo. A caricatura é hoje o retrato fiel de uma comunidade que corrompeu a própria vergonha. Vivemos de máscaras porque tememos a nudez do olhar, pois o ridículo deixou de ser exceção, tornou-se identidade. Assim sendo, a sociedade do grotesco rodopia entre máscaras e espelhos fantasiando essa outra segunda pele do Eu. A ilusão cumpre, então, a sua habilidosa função de proteger o nosso desespero do vazio neste ridículo modo de vida.

sábado, agosto 16, 2025

A ALEGRIA SERENA DO SILÊNCIO

Dou comigo, continuadamente, a ler, servindo-me da meditação que nasce desse precioso lugar do silêncio, que me conduz à vida humana, tanto pessoal como coletiva. A experiência tem-se mostrado positiva, sem restrições, descerrando interioridades, considerações, interseções e, por vezes, novas interpretações. O silêncio tem-me proporcionado distanciamento, favorecendo o pensamento, o encontro comigo próprio e com o que me ultrapassa.

Só, e em silêncio, vou escapando ao excesso do ruído, da informação e da desatenção. O silêncio apresenta-se sempre como resistência, permitindo-me recuperar a particularidade da concentração e da profundidade da vivência. O silêncio, hoje, nunca me faz só, bem pelo contrário, pois aprendi que me dá consistência e tempo para uma veracidade mais humana. Trata-se, pois, de um convite existencial, ao semear o quotidiano para recriar a calma, a criatividade e a liberdade interior. Sinto hoje o silêncio assim como um espaço vital para o pensamento, sensibilidade e espiritualidade, em polifonia com este tempo saturado de ruídos e alvoroços.

O silêncio não é ausência, mas um princípio. É nele que reencontro os traços da vida ativa que me moldaram, agora aperfeiçoados, vistos à distância que ilumina. O passado já não me pesa, repercute-me, comovido, nos descansos que escolho viver. Ao desfolhar o tempo, compreendo que o silêncio é a moldura que dá sentido às minhas palavras e às ações de outrora. Longe do ruído, descubro que pensar é dar vida ao tempo. Cada leitura torna-se, assim, renascimento, cada ideia um fruto silencioso que amadurece no presente. Não é desistência, mas entusiasmo sereno, lado a lado, com uma alegria que cresce sem precisar de se sobrepor. 

APENAS EXPONHO A SIMPLICIDADE

Sim, insisto, a simplicidade não é pobreza. A simplicidade de que falo é uma liberdade diante do excesso que escraviza. Não é, também, negação da complexidade humana, mas sim clareza contra o equívoco inventado neste mundo, e neste tempo, que transforma o consumo em dogma e a simplicidade em resistência. Sim, neste mundo e neste tempo em que o acúmulo de uns se empertiga sobre a miséria de muitos e a simplicidade se mostra justiça. Sim, nesta Terra consumida pela sovinice do lucro e a simplicidade se torna condição de sobrevivência. Daí, a simplicidade reverte-se em ética porque se liberta do supérfluo, a estética revela o belo no essencial e a política abre espaço ao comum, ao justo e ao partilhado. Defender a simplicidade é recusar a mentira do ilimitado, é devolver dignidade ao humano, clareza ao viver e autenticidade à cultura. É fundar um outro horizonte, onde o poder não se mede pelo excesso, mas sim pela justa e salutar medida.

quinta-feira, agosto 14, 2025

MONTENEGRO ABRAÇA OS PATRÕES, VIRANDO COSTAS AOS TRABALHADORES

Eugénio Rosa denuncia, num dos seus múltiplos e atuais estudos, que as alterações ao Código do Trabalho propostas pelo governo aumentam a precariedade, enfraquecem os sindicatos e favorecem os patrões. Contratos temporários, intermitentes, que a termo deixam o trabalhador sem estabilidade nem poder de compra, afetando também a economia pela redução do consumo e pelo incentivo à emigração de mão-de-obra qualificada.

A chamada “flexibilidade” esconde abusos, tais como, banco de horas sem remuneração justa, renúncia forçada a direitos e imposição de condições mais duras. O enfraquecimento das negociações coletivas e o alargamento dos serviços mínimos reduzem a capacidade de luta sindical, desequilibrando ainda mais a relação entre capital e trabalho.

Eugénio Rosa sublinha, e bem, que o papel do Estado deveria ser o de proteger quem vive do trabalho, garantindo segurança, estabilidade e dignidade, e não o de facilitar a exploração e aprofundar a desigualdade social. Em síntese, dir-se-ia que a equipendência em Montenegro encontra-se na flexibilidade com que mimoseia os patrões e no avesso enquanto quinhão com que esmola quem trabalha. Todavia, uns outros vão-se "acon...chegando".


segunda-feira, agosto 11, 2025

ENQUANTO PENSO, ELES COBRAM

Não sou das certezas filosóficas, mas sei que, nos seus primeiros escritos, Marx já estava a romper com Hegel. Enquanto Hegel tratava as categorias sociais e económicas como expressões de conceitos filosóficos, Marx fez o inverso: partiu das relações reais - trabalho, propriedade, alienação - como categorias concretas, historicamente determinadas. Contudo, Marx ainda escrevia numa linguagem filosófica, o que abriu espaço para uma confusão duradoura: discutir desigualdade e exploração como se fossem problemas de ideias e não, sobretudo, problemas materiais.

O resultado é visível ainda hoje. Parte significativa do debate político perde-se em abstrações - princípios gerais, disputas ideológicas, “valores” - enquanto as condições concretas de produção, distribuição e apropriação de riqueza são relegadas para segundo plano. Ao deslocar o centro da crítica para o campo filosófico, deixa-se intacta a estrutura económica que sustenta a desigualdade.

Em síntese: trocar a análise da exploração pelo debate de conceitos é oferecer à injustiça a mais confortável das proteções — a de não ser nomeada como tal — deixando-a respirar livremente. Debater abstrações é sempre mais fácil; mudar as condições concretas é que exige luta e trabalho. Eu que o diga — e, por isso mesmo, agradeço ao sindicalismo e a quem o acompanha. A abstração não paga contas, a luta, sim. 

domingo, agosto 10, 2025

A IRONIA ENQUANTO MULETA DO CONSERVADORISMO

Ao ler o capítulo “A noite dos mortos-vivos” no livro WOKE FIZEMOS?, senti-me confrontado com uma provocação fundamental para qualquer espírito crítico: como resistir a um escrito que se propõe pronunciar-se sobre questões sociais urgentes, mas o faz de uma forma mordaz que parece mais excluir do que apreciar? Em tempos que não admitem demoras, reduzir a complexidade do humano a meras caricaturas é o primeiro passo para a exclusão e o silêncio.

É indiscutível que a ironia é um expediente literário e discursivo legítimo, capaz de sinalizar incoerências e desafiar a ponderação. Contudo, quando esta arroga uma matiz presunçosa e um fraseado encoberto por um velado conservadorismo, resulta em atravancar o diálogo denso e plural de que estes temas são dignos. O capítulo, assim sendo, em vez de se abrir ao espaço de debate e à sua complexidade, limita-se a caricaturá-lo e a reduzi-lo a uma chacota leviana que apenas reconcentra preconceitos e estigmas.

Mais inquietante ainda é entender que, nesse exagero cómico, o humano - ou seja, a dignidade, a experiência, a luta concreta de pessoas por justiça, reconhecimento e igualdade - fica escondido e, como tal, esquecido. A humanidade, tantas vezes excluída por palavreados ligeiros e simplistas, sofre, através destas cínicas e fiéis abordagens irónicas, a perda de uma escuta atenta e compreensiva da sua verdade.

O EU É TARDIO

Acabo de ler António Coimbra de Matos que nos lembra, registando que “A relação está antes da substância.” Logo, o “eu” não é, pois, um ponto de partida, mas um efeito do encontro. Buber, pelo lido, chamou-lhe diálogo, Levinas viu nele responsabilidade, Winnicott fez dele berço do sujeito. O individualismo, teimoso, prefere pensar-se inteiro desde sempre. Todavia, a realidade parece ser outra. Antes de sermos substância, fomos e somos relação e é dela que continuaremos a viver.

sábado, agosto 09, 2025

PENSAR JUNTOS OFENDE O DOGMA

Ao emudecer o humano como universal, inicia-se o pensar pelo fim, ou melhor, pelo remate da partilha, da incerteza radical e da possibilidade de arquitetar um futuro comum. O universal, compreendido não como uma essência rígida, mas como uma construção aberta onde as diferenças se podem reconhecer, torna-se condição essencial para que a estima seja preservada e a interação ganhe corpo. É nele que o “nós” se torna possível sem marginalizar o “eu” e o “tu”. Ao negar essa referência, o pensamento arrisca-se a reduzir-se a fragmentos fechados, incapazes de se interrogar mutuamente. A compreensão do ser que assiste e sustenta este universal não se pode, pois, reter numa qualquer forma predefinida. Pelo contrário, testemunha que ser humano é, acima de tudo e em primeiro lugar, estar em relação, exposto ao outro e ao mundo. É esta abertura partilhada que impede o vazio, esse lugar desnaturado onde jamais haverá espaço para o comum pensar e, portanto, assumir a sua responsabilidade, cultural e não só. O universal jamais se pode calar ao encristado, quiçá este cínico e vigente conservadorismo. 

terça-feira, agosto 05, 2025

POR UM MATERIALISMO CRÍTICO, CONTRA ESPANTALHOS E MORALISMOS

No seu texto que faz parte do livro “Woke, Fizemos?”, Alexandre Franco de Sá tenta uma linhagem filosófica do chamado “wokismo”, vinculando-o à memória da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt e ao pós-modernismo francês. A sua leitura torna-se clara, ou seja, o projeto iluminista de razão e universalidade terá sido corrompido por uma crítica cultural que promove a própria ruína, que substitui a realidade pela linguagem, a verdade pelo jogo desconstrutivo e a política por uma afetividade ressentida. Trata-se, no íntimo, de um apelo ao regresso a uma racionalidade resistente, que desaprova o que vê como estilhaçamento moral, identitário e cultural.

Como materialista, essa posição impulsiona-me não só à desconfiança como também ao exercício do entendimento. Não vejo a crítica como um desvio culturalista da política, mas sim uma realização concreta da política em procedimento. Não se trata de pôr a salvo o "woke", seja isso o que for, mas, isso sim, de não ceder ao impulso restaurador que transforma a crítica social numa ameaça civilizacional.

A Teoria Crítica, e nisto a tradição marxista-lacaniana de Slavoj Žižek é essencial, não se desliga à razão, mas interpela a sua função histórica. Censura a razão aparelhada, domesticada pela lógica do capital, pelo seu cálculo e consumo. Não se trata, pois, de renunciar a razão, mas de a libertar do seu aprisionamento tecnocrático. A crítica cultural não pode ser vista como um luxo académico, mas sim como uma forma de tornar claro os engenhos de dominação simbólica que estruturam o quotidiano e o desejo.

sábado, agosto 02, 2025

CHEGA DE INSOLÊNCIA E TEATRO DE OUSADIA

Vivemos um tempo curioso, ainda que profundamente indesejável. A extrema-direita ergue a voz como se fosse a única capaz de nomear o desassossego do mundo presente. Assinala, com afetação, uma sociedade que terá aniquilado o destino e onde a palavra “liberdade” se esbate em exortações de palavras de ordem - onde tudo se reduz à superfície das identidades e do consumo.

Acusações que, embora se alimentem de indícios reais, são, em grande medida, profundamente enganadoras. Não procuram reerguer o sentido da vida coletiva, mas apenas restaurar uma ordem opressiva - e perpetuamente ilusória - onde a dignidade humana é privilégio de poucos.

O problema que vivemos não se resume a um confronto cultural entre progressistas e conservadores. Trata-se de algo bem mais intricado: a perda da densidade ética da vida social, substituída pela lógica do consumo, do desempenho e da mercadorização generalizada. A extrema-direita, com o seu discurso inflamado contra o chamado "wokismo", procura capturar o desagrado popular. Mas fá-lo não para romper com este sistema perverso - pelo contrário, pretende intensificá-lo. Ambiciona um capitalismo mais autoritário, mais cínico, mais desigual. Oferece à crise da liberdade uma caricatura de ordem, e ao vazio da política, uma estética de violência e identidade.

quarta-feira, julho 30, 2025

NOTAS SOBRE O CAOS (3)

"A arte de viver é, dizia Quintana, a arte de conviver. Simplesmente …" , disse ele. Simplesmente.

Mas o que é hoje conviver? É gritar ao lado de alguém que ouve música sem auscultadores no metro? É atravessar a rua sem ser atropelado por um zombie digital? É tentar manter uma conversa com quem sonda o telemóvel entre cada frase?
Conviver é agora um espetáculo de mal-entendidos sincronizados, cada um afogado no seu feed, perdido entre memes, fúrias instantâneas e vídeos de gatos que nos explicam a vida. A arte de viver passou a ser a arte de sobreviver ao caos suave e pegajoso da distração permanente. Conviver com alguém, hoje, é competir com o telemóvel pela atenção, e perder sempre. Há quem diga que vivemos conectados. É falso. Vivemos capturados. Capturados por um dispositivo que nos promete o mundo inteiro e nos rouba o rosto de quem temos à frente. Simplesmente, disse Quintana. "Mas como é difícil, Mário. Como é impossível, agora."

terça-feira, julho 29, 2025

DEPOIS DE MATIAS, LEMBRO SARAMAGO

"Há quem tema o 'wokismo' por confundir dignidade com doutrina e respeito com censura. O problema talvez não esteja no outro, mas na própria sombra."

José Saramago, algures em Buenos Aires, deixou dito: “A ética de que eu falo é uma pequena coisa laica, para uso na relação com outros. Passa pela coisa tão simples como o respeito, nada mais. Portanto, se mais tarde, pelas circunstâncias, a revolução por fim for necessária, então sim. Mas deixemos a revolução para mais tarde e comecemos pelas pequenas coisas que podemos fazer sem revoluções. Essas coisas pequenas podem ter consequências fortes e intensas como as revoluções, que não duram.”

Há nesta afirmação uma singular sensatez, um equilíbrio raro entre lucidez e humildade, entre a grande política e a modesta ética do quotidiano. Saramago restitui à palavra “ética” a sua densidade mais concreta: a do uso, do gesto, da convivência. Não se trata de uma ética dos ilustres tratados ou das filosofias perfeitas, mas de uma “pequena coisa laica”, livre de transcendência, apropriada à natureza do ser humano e das suas relações.

A radicalidade da sua sugestão não está na eloquência das revoluções futuras, mas na exigência mínima e imperiosa do respeito pelo outro - um respeito que se pratica antes de se anunciar e que se vive antes de se proclamar. A sua ética é, sem rodeios, anterior à política, pois assenta no solo mínimo da confiança e da dignidade entre seres humanos.

A RETÓRICA DA SIMPLIFICAÇÃO EM RITA MATIAS

Acabo de ler o texto de Rita Matias, “Como o wokismo colonizou o discurso político”, em “WOKE FIZEMOS?”. Tomando algumas notas, permito-me - com um olhar crítico - fazer algumas observações.

Ponto 1 – Trata-se de uma abordagem que procura reduzir a complexidade a uma caricatura. Não distingue entre diferentes correntes progressistas, nem reconhece a diversidade interna do chamado “movimento woke”. O que procura é fantasiar um inimigo abstrato, equivalente e ubíquo, ou seja, arquitetar uma estratégia retórica típica do combate cultural.

Ponto 2 – Matias alega que o wokismo colonizou a palavra política, inviabilizando o debate livre. Ignora, ou tenta silenciar, as causas e justificações históricas que deram origem às lutas contra o racismo estrutural, a desigualdade de género, a exclusão colonial e pós-colonial. Trata essas perturbações como uma doença, escamoteando a problemática das causas profundas das desigualdades.

Ponto 3 – O wokismo, para a autora, não passa de uma inversão dos valores civilizacionais ocidentais. O “antirracismo” e o “feminismo interseccional” são, para ela, não lutas por justiça, mas ferramentas de opressão ideológica. Trata-se de uma estratégia que procura camuflar relações de poder efetivas, criando a fantasia de que os privilegiados, de hoje ou de outro tempo, estariam agora a ser discriminados. Daí a reivindicação silenciosa do estatuto de vítima por parte dos setores conservadores da sociedade.

domingo, julho 27, 2025

O INCONSCIENTE POLÍTICO, NÓS E O TEATRO DO MUNDO (3)

O pano de fundo sobrevive, mas algo se aviva. A ideologia não apenas molda o palco, ela promete sobretudo o prazer em habitá-lo. Não é só convicção, é principalmente uso e fruição. Um gozo perverso, como diria Žižek, inspirado em Lacan. Um modo de satisfação que se alimenta da exclusão, que ignora o sofrimento do Outro e encontra prazer precisamente aí, e em si mesma.

A ideologia não nos encaminha pela razão, pois nos concede algo em compensação. Talvez uma excitação difusa, uma certeza que deleita, um objeto de gozo que legitima admitir, rejeitar ou até punir. Por isso se acredita com exaltação, mesmo contra tudo e todos. Não se trata apenas de ideias, mas de um prazer inconsciente em possuí-las, defendê-las e, se necessário, impô-las. A ideologia opera como uma gestão libidinal, ou seja, organiza desejos, alimenta fantasmas, fomenta bodes expiatórios e oferece narrativas redentoras.

Não falamos aqui de perversão no sentido sexual, mas de um modo de gozar que se desobriga da empatia. O Outro, seja o migrante, o comuna, o degenerado ou o politicamente correto, torna-se o reservatório do mal, aquele cuja marginalização promete conforto. É esse o gozo mesquinho que a ideologia oferece, ou, por outras palavras, o bem-estar de excluir, o conforto de obedecer ou, ainda, a segurança de repetir.

A razão, por si só, não desfaz este laço. O inconsciente político habita precisamente aí, ou seja, nas formas de prazer que sustentam a crença, nos pequenos gozos que sobrevivem ao argumento. A ideologia goza, e o seu gozo convida-nos, afinal, a gozar com ela. Não nos aprisiona apenas pela crença ou coerência lógica, mas sim porque oferece o rebuçado do prazer que mascara o sofrimento do outro.

sábado, julho 26, 2025

O INCONSCIENTE POLÍTICO, NÓS E O TEATRO DO MUNDO (2)

A cena continua. O pano de fundo resiste, mas o olhar já se aguça. Se antes nos perguntávamos sobre o teatro do mundo e o papel inconsciente que nele desempenhamos, agora tornamo-nos mais atentos ao que sustenta o próprio palco, ou seja, o que dá forma, espessura e coerência à nossa experiência. Essa força chama-se ideologia. Mas é preciso retirá-la do lugar comum em que tantas vezes se confina.

A ideologia não é apenas uma coleção de ideias falsas, nem um discurso manipulador que se impõe de fora. Ela é o próprio tecido onde os sentidos se entrelaçam e se tornam familiares. Como escreve Terry Eagleton, a ideologia é uma “trama de significações” que costura o mundo tal como o vivemos, ou seja, um “tecido de sentido” que não se vê, mas se ressente.

Esse tecido não é feito apenas de palavras. É feito de hábitos, afetos, gestos, instituições, imagens, lugares comuns, histórias herdadas. Está nos livros escolares e nos anúncios de perfume. Nos elogios à meritocracia e no medo de parecer fraco. Está no “bom senso”, mas também naquilo que sentimos “no corpo”.

O INCONSCIENTE POLÍTICO, NÓS E O TEATRO DO MUNDO (1)

(Nota – Este será o primeiro de uma série de escritos editados em sequência, cada um procurando desanuviar uma abertura estreita sobre o real.)

A vida que habitamos não se apresenta apenas; a vida que invocamos, essa sim, representa-se. O que chamamos “realidade” é já, muitas vezes, um teatro encenado, onde o desejo se acasala com o medo, o gesto com o gozo, e a opinião com a obediência.

Partindo do incisivo “fazer frente” de Slavoj Žižek – esse pensador que põe de fronte o riso e o abismo –, esta série de pequenos textos desbravará os subtérreos do quotidiano, onde a ideologia se amaneira como hábito e o inconsciente se exprime como se fôssemos, verdadeiramente, nós.

Textos curtos, possivelmente não leves. Tentativas sucintas, sim, mas não neutras. Assim sendo, o convite é simplesmente este: descer ao palco da vida comum e tentar ver o que se passa nos bastidores. Porque o que está em cena é mais do que parece. Pensar tornar-se-á, talvez, cada vez mais um ato de resistência. Veremos, então. 

segunda-feira, julho 21, 2025

NOTAS SOBRE O CAOS (2)

O espetáculo tem vindo a ocupar o lugar da política. O ódio aprendeu a emocionar-se. No entanto, há ainda quem escute os murmúrios no ruído e persista em pensar contra a corrente, com a lucidez e o fulgor dos que não desistem do impossível. 

sábado, julho 19, 2025

NOTAS SOBRE O CAOS (1)

A ideia de humanidade não se revela no ruído excessivo das identidades, onde o diálogo se cala e a cultura se dispersa no caos.


quinta-feira, julho 17, 2025

DESANIMADO COM A RAZÃO, ENSAIO A IDEIA

O pensamento, quando forçado pela violência do vazio, inclina-se à entrega ao desânimo, ou ao devaneio de uma construção que o defenda. Neste entremeio, a passagem do estado bruto da inquietação à formulação de um trio de perguntas, “Qual é a medida de um homem? Que objetivos pode propor-se? Que esperanças lhe são permitidas?”, exprime com precisão essa especulação da consciência: dar uma geometria ao caos ou fantasiar a partir do destroço. Não se trata apenas de racionalizar o mal-estar, mas de reinscrever a existência num campo de possibilidades. A filosofia, enquanto ânimo de aclaração e de rumo, surge aqui como causa primordial, ou seja, como um enérgico gesto de resistência, quiçá, contra coisa nenhuma.

quarta-feira, julho 16, 2025

PENSAR SEM “EU”

Meditar não é apenas sossegar a razão, é, sobretudo, desativar o ego. Esse ego impaciente que se supõe o âmago da realidade. Absoluto, necessitado de reconhecimento, arreigado ao medo da perda e à sua ânsia de ter. Se a ignorância é, como tantas tradições espirituais e filosóficas sustentam, uma raiz do sofrimento humano, então a meditação torna-se um caminho de reflexão que busca clarificar essa ignorância, não com a crédula facilidade da informação, mas sim com o brilho trabalhoso da lucidez.

O ego sempre se nutriu de ilusão, acreditando na imediata separação entre o "eu" e o "outro", entre o "interior" e o "exterior", entre o "meu" e o "teu". Nesse jogo de dualidades, o medo emerge como um aliado fiel - daí o receio de perder, o pânico de sofrer, o fantasma de não ser suficiente. A ignorância, neste painel, não é apenas ausência de saber, mas um modelo de cegueira atuante, recusando-se a ver que o “eu” é uma obra, uma imaginária criação útil, mas finita e frequentemente repressiva.

É através desta condição que a adesão ao material se torna prenúncio - algo que não se compreende no absoluto, mas que traz vantagens com os haveres, com os quais se tenta controlar a segurança. O mundo assim se vai tornando uma dimensão do ego, um espelho que se obriga a confirmar a sua relevância, a sua diferença e o seu poder.

terça-feira, julho 15, 2025

CONTRA O PASPALHO DO WOKE

Acabei de ler o texto de Patrícia Fernandes no livro “WOKE FIZEMOS?”. Suportei um fruto teórico e representativo de um sufocante conservadorismo intelectivo. Confrontei-me com um "wokismo" disforme, reduzido à arte e ao cuidado das universidades norte-americanas que, ignorando as complexidades efetivas dos conflitos sociais, se tornou um artificioso embuste. Em vez de se dirigir a relacionar as ideias de forma lógica, coerente e crítica das evoluções culturais, optou por satirizá-las como quem questiona uma tempestade sem agitação temporal. Confunde-se disputa com doutrinação, crítica com ameaça, mudança com declínio. A universidade é tratada como foco de perversão intelectual, quando na verdade é, ou deve ser, um palco de disputas legítimas pelo sentido humano e do comum. Este tipo de texto, incomodado com a dialética dos tempos, não pensa o presente; logo, resta a renegação. Assim, não examina, espelha em caricatura. É um abrigo através do statu quo mascarado de fulgor crítico, onde tudo o que não cabe na matriz tradicional é mostrado como desvario. Mas o mundo renova-se, e o pensamento se quer mostrar-se vivo não pode ficar pela lamúria retrógrada. Muito menos pela caturrice reacionária.

domingo, julho 13, 2025

A IGNORÂNCIA, UMA CAVERNA DOS NOSSOS DIAS

A ignorância já não é falha, tornou-se uma cultura da habilidade política dos tempos de hoje. Não saber, ou fingir não saber, serve a quem detém ou procura poder. Como nos alerta Manuel Sans Segarra, a ignorância é um produto de construções que, sem ruído, nos alienam da razão comum.

Entender o manejo económico, o vocabulário jurídico ou o teatro do juízo político é hoje um requinte e uma intimação. Por isso, o que não se explica não é erro, mas, quiçá, um método. E quem habita, perturbado, o tempo de hoje não se queixa, pois, dos danos, não enxerga as causas. Assim, tudo persiste misterioso, embora de modo apropriado e indolente.

A cultura política não rompe do acaso; requer plantio, pensamento e diversidade. Mas o que nos sobra é unicamente ruído. A escola destaca competições, a comunicação estonteia e o debate engraça-se num teatro de agitáveis opiniões. A ignorância encena-se, silenciando o saber que interessa.

Assim sendo, a ignorância facilmente se acomoda, debilitando a democracia ao convertê-la num ritual sem alma - cenário, aliás, ideal para quem não quer ser julgado. Pensar é resistir, saber mais para impedir o projeto da indiferença que nos quer apáticos e inativos. Combater a ignorância torna-se um gesto político essencial e, hoje em especial, talvez o mais urgente e profícuo valor da Liberdade. 

sexta-feira, julho 11, 2025

CURA OU CURIOSIDADE

Navegar entre a cura terapêutica e o ato de dizer mal, o humano apressado já optou, e mostra-se radioso, arraigando que não quer olhar a verdade no espelho, pois adora distrair-se com a vida, de outrem se possível. Tales de Mileto procurou alertar a peripécia, mas não deve ter tido tempo e circunstância, porque a arraia-miúda, sempre ocupada com as habilidades do vizinho, não tinham tempo livre de se verem ao espelho. A intriga, e o ato de mexericar, sendo piedoso, não só cansa muito como absorve muitas horas. Não é só fácil, também cansa… 

domingo, julho 06, 2025

DO LADO DE DENTRO DA LIBERDADE

Vivemos tempos receosos. Tempos em que a liberdade se tornou tema de conversas domesticadas, domesticadas por um moralismo institucional que a reduz a uma simples retórica funcional. Os grandes poderes, cansados, repetitivos, e enfadados de si próprios, continuam a resistir, em nome do bem, do dever, da ordem. Mas esquecem-se da liberdade.

Não falo daquela liberdade que apregoam. Falo da outra, da que ocultam. Daquela que mantêm acantonada, silenciada, sob a forma de uma moral cuidadosamente calibrada. Uma moral que se veste de virtude, mas que não liberta.

Sejamos claros: o problema não está na moral. Está no uso que dela se faz, como expediente, como instrumento. Quando o dever é imposto, quando o juízo é substituído pela obediência, quando o certo e o errado são ditados por quem detém o poder, não estamos perante uma exigência ética, mas diante de uma sujeição disfarçada.

A moral dominante não emancipa: disciplina. E uma liberdade obediente, por mais bem-intencionada que pareça, é uma liberdade que se trai a si mesma. A liberdade verdadeira, a que resiste, a que nos transforma, não é aquela que o poder nos concede. É a que conquistamos ao reagir à sua sujeição. Uma liberdade exigente, enraizada na nossa história e, sobretudo, na nossa responsabilidade.

sábado, julho 05, 2025

O RETROVISOR DO MORALISMO

Há escritos que expelem, pela palavra, as ideias com que se enjoam. Cavam, com a sachola do passado, os escombros de um passado poetizado, fabulizando que ali se encontra a verdade, a ordem e o lugar modelar. O capítulo 5 do livro em questão (Workismo e sexualidade: identidade, polaridade e conjugalidade) é precisamente um desses burlescos escritos. Não se trata de um tino reflexivo, mas sim de uma exercitação clericalista, simulada de uma humana reanálise cultural. E o que mais assombra não é tanto o sentimento melancólico do preceito, mas o seu propósito de se transformar, de novo, em obrigação.

Sob a aparência de uma cantiga sobre identidade e conjugalidade, o que se exibe é um claro conservadorismo que busca reacomodar, como se fossem eternas, hierarquias de género que a dignidade humana já não consente. Confere-se ao homem e à mulher atribuições invariáveis, naturais e estruturais, como se a história, a luta feminista, a investigação científica e o pensamento crítico não tivessem existido. É um texto que inspira piedade ao recusar reconhecer que as atribuições de género não são intimidações da natureza, mas construções históricas, sociais, económicas e simbólicas.

O conceito de "polaridade sexual", fundamental no texto, ressoa, talvez, à ciência do século XIX, seduzida pelas vozes eloquentes das pregações do moralismo conservador. A diferença entre o homem e a mulher é metamorfoseada num contraste utilitário: o homem gere, a mulher recolhe; o homem abriga, a mulher toma conta; o homem determina, a mulher advinha. Esta dualidade reducionista não só empobrece a prova humana, como ratifica desigualdades e abusos estruturais. Não há liberdade possível quando os corpos nascem com uma sequência descrita.

terça-feira, julho 01, 2025

ENTRE SILÊNCIOS

O silêncio também fala. Transmite no olhar que pousa, no sorriso que acontece, na presença que basta. Como o recém-nascido que ama antes de o saber dizer, nós também tocamos a alma de um outro quando escutamos com o coração. Partilhar o dia, o tempo, o ser, é fazer da vida um encontro. E, no fundo, estimar é isso, revelar-se mesmo quando tudo se silencia. 

sábado, junho 28, 2025

O LOBO CAPITALISTA MANIPULA A DIALÉTICA DA INCLUSÃO

Vivemos uma época deploravelmente original, ou seja, quanto mais as empresas falam de igualdade, diversidade e causas sociais, mais crescem os seus proveitos e reconcentram a sua figura no utópico fim do comum. Não, não nos deixemos embalar por cartazes coloridos e suas obscenas campanhas que, sem desonra, exaltam a presunção, a inclusão ou o reforço do poder. A doutrina, porém, preserva-se fria e imperturbável, como sempre tem animado o capitalismo, tudo metamorfoseado em produto, sem esquecer, vejam bem, as nossas sublimidades mais íntimas.

É essa a provocação feita por estudiosos que ousam estudar e falar, quiçá no deserto, deste atual “capitalismo woke”. Todavia, longe de ser um erro de percurso ou uma moda estranha, o fenómeno não é mais do que a evolução consonante do próprio capitalismo, depois de décadas de adaptação aos ventos culturais e políticos do tempo desbravado. Contudo, o que mudou não foi o plano, mas sim as roupas que ele traja.

Durante o século XX, o trabalhador deixou de ser apenas um mero corpo que produz, para se tornar também um sujeito que sente, se identifica, protesta e se impõe como condição. Presenciámos, então, a empresa incluir-se numa sociedade que não vende apenas produtos, mas que também inscreve valores, ética e antevisões. Logo, nesse decurso, o próprio capitalismo teve de reconfigurar-se: já não bastava explorar, tornou-se necessário aliciar, logo, seduzir. Assim sendo, já não basta apenas vender, é preciso impressionar e emocionar. É aí que o arrazoado woke entra em cena, não como resistência, mas como utensílio da sua arte dramática.

domingo, junho 22, 2025

A ARQUITETURA EMOCIONAL DA DOMINAÇÃO CULTURAL

Este texto, que sinteticamente apresento, inscreve-se numa orientação teórica que rasga com a separação tradicional entre a razão, a emoção e a ética numa breve exposição, reanimando a ideia de que não há maneira de falar sem afeto, nem afeto sem fala. Longe de ser um mero utensílio de comunicação racional de ideias, o fraseado é apresentado como uma prática social e histórica que abraça sentidos, sujeitos e afetos e, portanto, logo intervém, e de modo enérgico, na concertação das subjetividades e das paixões sociais.

Neste tempo de irrefutável dominação capitalista, este modo de encarar torna-se particularmente relevante, dado que revela que os afetos são convocados, encaminhados e até mesmo provocados de modo dedutivo, em concertação com interesses dominantes. A linguagem não apenas conduz ideologias, forjando concordâncias emocionais, ajustando sensibilidades e fantasiando imaginários afetivos que sustentam, ou não, a conveniência social vigente. Isso representa que os discursos dominantes não apenas convencem, mas afetam através de densos vínculos que adotam a mercantilização da vida, o consumo como forma de identidade e a obediência tola à ideia arrogante de produtividade.

A SEMENTE E O GRITO

Ninguém vem ao mundo com direitos bordados na pele. Eles não caem do céu, nem brilham ao acaso. São colhidos com dor, lavrados na terra da memória por mãos cansadas de lutar. Cada direito é a semente de uma perda que não se calou, uma lágrima que se ergueu em palavra. Os deveres sustentam o mundo como raízes, mas há direitos ainda por desabrochar, esperando o batismo de um nome certo e justo.


quarta-feira, junho 18, 2025

A SUBJETIVIDADE EM CONFUSA INQUIETAÇÃO (2)

Continuando o tema do texto anterior, importa reafirmar que vivemos sob o domínio de uma lógica capitalista que, mais do que à sua articulação com a economia e modos de produção, adentra no mais íntimo do sujeito e da sua subjetividade. A ideologia, para além das ideias políticas ou arrazoados de poder explícito, age enquanto habilidade silenciosa no que à colonização interior do humano diz respeito. Libertando o encorpado das ideias e relações económicas e sociais, a presença capitalista mostra-se como neutra, inevitável e natural, embutindo no campo cultural um sedimento de identificações cujo valor central situa-se no fetiche da mercadoria.

Nesse processo, os elementos culturais oferecidos como referenciais identificatórios já não têm por base laços comunitários, éticos ou históricos, mas sim a promessa de uma certa figura social nos objetos de consumo. A obra subjetiva passa, então, a realizar-se em torno de ausências encobertas por presenças ilusórias, dissonância essa que provoca trapaceira tristeza. Um alienado sofrimento sutil, embora persistente, que decorre de uma discordância entre o que se deseja e o que é apresentado como desejável. Trata-se de uma inquietação contínua que não encontra descanso, porque a compra nunca satisfaz plenamente o desejo que ela mesma produz.

Esse mal-estar estimula o sujeito na busca por suavização imediata, ainda que passageira. E é precisamente essa urgência que as doutrinas capitalistas estudam, exibindo saídas imediatas para angústias que, na verdade, são estruturais. O ruído ideológico, nesse sentido, atua como uma invocação sedutora: consome-se para pertencer, consome-se para ser, consome-se para não sentir a dor do vazio. A adesão ao consumo, portanto, não é um ato puramente racional, mas uma resposta emocional, quase compulsiva, ao sofrimento psíquico que a própria lógica capitalista ocasiona.

terça-feira, junho 17, 2025

A SUBJETIVIDADE EM CONFUSA INQUIETAÇÃO

A subjetividade humana, longe de ser um núcleo soberano e autêntico, encontra-se cada vez mais colonizada por formas de poder simbólico que operam através da ideologia. No contexto da sociedade capitalista, tal colonização revela-se não apenas como um fenômeno exterior, imposto de fora para dentro, mas como uma internalização silenciosa, persistente e estrutural, que molda o sujeito desde o interior de seus próprios afetos, desejos e formas de pensar.

A ideologia, aqui, não pode mais ser compreendida como uma mera falsificação da realidade, como nas abordagens clássicas da crítica marxista. É preciso pensá-la como uma engrenagem que articula saber, desejo e gozo. Nesse sentido, a intersecção entre o materialismo histórico e a lógica do inconsciente torna-se não apenas fecunda, mas necessária. O sujeito do inconsciente, tal como formulado pela psicanálise "Freud lacaniana", já não se reduz a um agente racional que se alinha ou se opõe às estruturas materiais. Ele é atravessado por fantasmas, pulsões e identificações imaginárias que estão, elas próprias, contaminadas pela lógica da produção capitalista.

A racionalidade aqui invocada não é cartesiana. É a racionalidade do inconsciente, isto é, uma lógica que, embora não obedeça aos princípios da razão instrumental, possui uma estrutura, uma repetição, uma causalidade própria. Assim como a ideologia opera, não apenas no campo da consciência, mas sobretudo no da inconsciência, a produção subjetiva está enredada em imagens e narrativas que sustentam o capital como forma de vida. Como já denunciava Guy Debord, o espetáculo não é apenas o mundo visível, mas a própria forma como o mundo se torna visível.

O CONFORTO DA APATIA

No seu texto “GIRO DO HORIZONTE – ISRAEL”, Pedro de Pezarat Correia, em “A Viagem dos Argonautas”, assim começa; “Israel é uma fortaleza militar, pilar do poderio dos Estados Unidos da América (EUA) numa das áreas geoestratégicas mais sensíveis da Terra, a bacia do Mediterrâneo euro-afro-asiático”, e assim termina; “Nós, europeus, todos, temos pesos nas consciências pelas perseguições a que, durante séculos, condenámos os judeus. Que atingiu as raias do inimaginável na Alemanha nazi e nos países por ela ocupados. Agora estamos a procurar sanar as nossas culpas e aliviar as nossas consciências, solidarizando-nos com os judeus à custa dos palestinianos. Só que não foram os palestinianos os agentes das perseguições seculares aos judeus. FOMOS NÓS". Acrescentaria eu, que num gesto irrefletido de contrição, imaginamos mitigar os nossos pecados prosseguindo indiferentes ao sofrimento de quem, hoje, paga a fatura do nosso esquecimento histórico, pois a nossa solidariedade é um conforto “por baixo preço”, sempre que não exige verdadeiramente nada mudar.

domingo, junho 15, 2025

TRAPOS DE VERDADE

O extremismo de direita do nosso tempo manobra através de um palavreado engenhosamente envenenado, socorrendo-se de vocábulos historicamente articulados à democracia, à liberdade e à justiça, despejando-os dos seus interiores originais, de modo a esculpi-los num horizonte de ideias e princípios autocráticos. O que observamos, neste campo palrador, é o uso e abuso acasmurrado de eloquentes alienados que, deslocados da sua genuína semântica, perdem a ancoração histórica e experiencial que os tornava significantes, colocando-os a ondular ao sabor das agitações populistas e dos seus comoventes alvoroços.

Essa transação não é meramente verbosa, pois constitui o íntimo de uma ideologia, no sentido de travar uma luta pela fixação dos significados no campo simbólico. Assim, imagens como liberdade, povo, soberania ou verdade deixam de ser meios de libertação que a todos procuram servir, tornando-se ideias de animosidade, discriminação e desconfiança desmedida. Logo, em nome da liberdade, recusam-se os direitos humanos; em nome do povo, sustenta-se o ódio às minorias; em nome da verdade, dispersa-se a falsidade.

sábado, junho 14, 2025

O FANTASMA QUE RESPIRA POR NÓS

Se o dinheiro é a alma do nosso tempo, então vivemos sob o império de um fantasma que consome tudo e não sente mais nada. Logo, não estranho o tamanho sufoco, pois o ar que respiro foi penhorado. A cultura vulgarizada, afinal, apenas adora cifrões e renuncia, sem piedade, a quaisquer rumos mais humanos. O capital, o seu bicho, é aquele seu deus que alinha doutrinas e sustenta o delírio provindo da fingida e patológica crença. Eu, o anormal blasfemo, sofro merecidamente de castigo com os pulmões entulhados de náusea. O capital, por sua vez, de alma febril, vai dançando sobre as ruínas do humano.

Talvez por isso o ar se revele repetidamente denso, imundo de ambição e desespero. O capital é isso, um sopro vital do presente deste mundo que respira morte em atuações suaves. Todavia, a minha náusea vai escapando apenas como sintoma de relutante lucidez. A civilização que ergue a sua alma em números não consegue afundar o meu coração nos escombros. Vou, todavia, embora impaciente, respirando o pó da empatia desaparecida.

quarta-feira, junho 11, 2025

PENSAR AINDA É PRECISO

A NECESSIDADE DE PENSAR O IMPENSÁVEL”, texto de Boaventura de Sousa Santos (BSS), chama-nos a atenção para a presente cultura da mediocridade, não apenas como consequência do modelo capitalista contemporâneo, mas, sobretudo, como um dos seus alicerces mais eficientes. BSS mostra de forma convincente que, no sistema educacional, o pensamento crítico tem sido progressivamente substituído por conteúdos utilitários e facilmente assimiláveis, em geral digeridos nas redes sociais sob o disfarce imbecil de informação.

A escola e a universidade parecem deixar de ser espaços de questionamento para se tornarem fábricas obstinadas de obediência. Os estudantes deixam de ser incentivados a duvidar, passando a repetir, deixam de pensar para simplesmente seguir orientações reguladas. Essa lógica, marcada pela fetichização da objetividade e pelo culto da eficiência, transforma o saber em mercadoria e o aluno num cliente passivo.

Em vez de formar cidadãos críticos, forma-se mão de obra submissa e desprovida de consciência política. Como afirmaria Paulo Freire, educar é um ato político: ou se forma para a liberdade ou para a sujeição. Nos tempos que correm, promovidos pelo capitalismo globalizado, tudo indica que nos deixamos, parvamente, distrair pela segunda via. A educação não pode cair na pobreza, cingindo-se ao espelho do capitalismo.

terça-feira, junho 10, 2025

UM IMPULSO DIALÉTICO DO MEU “FILOSOFAR”

Sinto-me afetado por uma perceção severamente pessimista de uma razão que acompanha este evoluir civilizacional. Pressinto, pois, que uma vontade cega domina o mundo farolizado por uma racionalidade sem humanidade. Tudo me aparece como um hábil subterfúgio sem doutrina e disciplina filosófica.

Referenciar, para mim, não implica endossar sancionando toda uma filosofia. Opera, pois, de constituintes que tornam possível aclarar as aporias do ruído moderno, sobretudo aqueles que legitimam e transfiguram em sujeição. O gesto crítico não procura figuras de opressão ou humilhação, mas sim o valor instrumental que alimenta e incentiva a cultura de massas.

A teoria crítica não pode exaurir-se no silêncio do dogma nem se acomodar em seus próprios pressupostos. O campo crítico exige disponibilidade autocrítica, no sentido de atualizar continuamente a própria teoria que o anima. Não há retornos nostálgicos, mas futuros vivos que, em sínteses dialéticas permanentes, mantêm a razão em estado de “recomposição”.

A cultura política não deve ser entendida apenas como filiação, mas sim como inscrição transitória num campo de tensões. Ou seja, uma atitude crítica viva que se incentiva de contrastes e contradições tendo como presente o progresso da humanidade. Diria que a filosofia, neste campo, não é um sistema fechado de verdades, mas um movimento perpetuamente em confronto constante com os seus próprios limites. 

domingo, junho 08, 2025

O SUJEITO E A ARMADILHA DA LIBERDADE

Somos catequizados a pensarmo-nos como livres. Desde cedo, aprendemos a nos ver como propulsores de nossas escolhas, senhores da nossa vontade, arquitetos do nosso destino. Mas essa ideia de liberdade, tão sedutora quanto confortável, disfarça um enredo mais profundo que opera silenciosamente sob a superfície da consciência, ou seja, a conspiração da ideologia.

A ideologia não é apenas informação política manipulada, nem um conjunto de ideias que se escolhe ou rejeita. Ela é o campo simbólico onde o sujeito se constitui. É o que nos chama, nos nomeia, nos oferece um lugar no mundo. E é ao responder a esse apelo que nos tornamos sujeitos, sujeitos intimados a responder, como diria Althusser. O paradoxo é evidente: só nos tornamos sujeitos ao nos submetermos. É nessa curvatura, entre liberdade e sujeição, que a ideologia age com mais impulso.

Mas essa sujeição não se dá apenas no plano da consciência. Como sublinha Leila Longo, há uma ordem inconsciente que nos força a ordenar. Desejamos o que, talvez, nem saibamos, e ainda assim perseguimos o que nunca se estabiliza. Nosso desejo é deslizante, insatisfeito, sempre orientado para um “outro” que nunca se entrega por completo. E é justamente esse desejo, instável, insubmisso, inexplicável, que a ideologia captura e se ajusta em práticas materiais, em atos que acreditamos nossos, mas que respondem a lógicas alheias.

domingo, maio 25, 2025

A ESTÉTICA DA MANIPULAÇÃO

O que “parece verdade” torna-se mais perigoso do que a própria mentira. Clipes curtos, citações mutiladas e palavras de impacto sem contexto arrastam a emoção, ofuscam a razão e mascaram o próprio disfarce. Contra a nova arrogância antidemocrática, pede-se pensamento crítico e memória histórica. Vamos a isso…

sábado, maio 24, 2025

A INVERDADE POLÍTICA FRAGMENTADA

Vive-se um tempo em que se está na moda de usar pedaços de verdade para esconder indesejáveis mentiras. Técnicas retóricas que são usadas com habilidade para distorcer a informação, manipulando-a com meias-verdades e omissões estratégicas. O objetivo é claro, ou seja, enganar e influenciar os resultados a favor de certos interesses.

Essas estratégias usam disfarces bem pensados. A verdade, apresentada de forma fragmentada, serve para dar um ar de legitimidade a argumentos muitas vezes falsos ou enviesados. Mesmo quando os dados são reais, são retirados do seu contexto para evitar o desconforto que poderiam causar.

As generalizações enganosas são frequentes e baseiam-se em casos isolados, apresentados como se fossem representativos do todo. Assim, em vez de mentir abertamente, molda-se a perceção da realidade, guiando o pensamento do público numa direção que lhes é conveniente.

Esses retalhos de verdade funcionam como selos de autenticidade. Mas escondem, na verdade, a complexidade de situações que incomodam ou desafiam certas narrativas. Por serem difíceis de desmontar, já que exigem atenção, tempo e argumentação cuidadosa, estas verdades parciais tornam-se armas eficazes na manipulação ideológica e cultural.

Este é, pois, um cenário que devemos saber reconhecer. É uma ameaça silenciosa à democracia e aos seus valores fundamentais. O futuro está em jogo…

quarta-feira, maio 21, 2025

CAMINHOS PARA RESISTIR AO NEOFASCISMO

Nos últimos anos, temos assistido ao crescimento de movimentos neofascistas em várias partes do mundo. Trata-se de um fenômeno complexo e multifacetado, com várias causas interligadas, que têm permitido que essas ideologias ganhem força, especialmente em tempos de crise.

A crise económica global, que teve o seu auge em 2008 e que se prolongou com os efeitos da pandemia de COVID-19, deixou muitos países numa situação de profunda desigualdade social. O desemprego e a precariedade aumentaram, e as classes mais baixas passaram a sentir-se excluídas do sistema. Essa frustração alimenta o ressentimento e a busca por soluções fáceis, como as oferecidas pelos movimentos neofascistas, que prometem recuperar uma suposta "ordem" e restabelecer a "dignidade" de um passado idealizado.

A globalização e as grandes ondas migratórias geraram, por sua vez, um sentimento de insegurança em muitas comunidades. As pessoas têm receio de perder as suas identidades culturais, especialmente quando percebem que as suas tradições estão sendo desafiadas por outras culturas. Esse medo é muitas vezes exacerbado pelos discursos populistas, que culpabilizam os imigrantes pela crise social e económica, exaltando sentimentos xenófobos e nacionalistas.

A crescente polarização política tem gerado, por sua vez, um ambiente de desconfiança em relação às instituições tradicionais. Muitos sentem que os partidos políticos, tanto à esquerda quanto à direita, já não representam os seus interesses. Nesse vazio, os movimentos neofascistas oferecem uma alternativa, apresentando-se como forças contra o sistema político estabelecido e utilizando uma retórica antissistema para atrair eleitores desiludidos.

segunda-feira, maio 19, 2025

O TRUMPISMO EM PORTUGAL

O trumpismo não se apresenta como uma doutrina política com princípios coerentes. Trata-se de um modo de atuar, onde a comunicação se torna um engenho provocador e emocional. Em vez de argumentos racionais e fundados, a retórica é coloquial, direta e descomprometida com a verdade factual. A pós-verdade ganha espaço, e a narrativa, mais poderosa que a realidade, estabelece o tom do debate público. Nesse terreno, a verdade não é mais um princípio absoluto, é antes lamentavelmente manipulada para servir a um propósito emocional e polarizante.

Neste cenário, os inimigos simbólicos tornam-se protagonistas da narrativa. A democracia, em seu funcionamento pluralista, é gradualmente enfraquecida e o 25 de Abril, símbolo maior da liberdade e da conquista democrática, é progressivamente rebaixado e descartado sem qualquer pudor. A provocação, então, não é apenas uma tática, mas um registo político, onde o choque é valorizado e o conflito se torna incessável. O poder, por sua vez, não se constrói sobre instituições ou sobre processos democráticos, mas sobre a figura do líder, que se apresenta como o libertador de um povo supostamente oprimido pelas ditas elites.

O populismo nacionalista, tal como o trumpismo, alimenta-se da desilusão social e do ressentimento. Ele usa o descontentamento das massas para minar a política democrática e afastar o cidadão do debate pluralista. Ao escavar as desigualdades e fantasiar inseguranças económicas, cria-se um clima de instabilidade onde a representação política parece falhar, dando espaço para um discurso simplista de "nós contra eles". O populismo explora, assim, o mal-estar identitário, apontando como vilões aqueles que são, ou aparentam ser, diferentes, sejam imigrantes, minorias ou as memórias democráticas que incomodam uma visão mais reacionária do país, como o próprio 25 de Abril.

Simplificando as questões e criando uma dicotomia entre o povo "autêntico" e as elites corruptas, o populismo encontra terreno fértil. A polarização é sua maior aliada. O “nós contra eles” transforma-se numa narrativa mobilizadora, onde qualquer nuance ou complexidade desaparece em nome de uma falsa pureza nacional. Os imitadores do trumpismo sabem que, no mundo contemporâneo, a atenção mediática é poder. E para garantir que dominam o espaço político, nada melhor do que alimentar a polémica constante. Criam-se disputas épicas e dramáticas, onde a verdade é substituída pela “verdade revelada”, e a narrativa política é desenhada não para refletir a realidade, mas para manipular emoções e dividir posições. O choque e a provocação servem como uma forma de aprisionar a atenção e manter o conflito turbulento.

A INVASÃO POPULISTA

O "trumpismo" é mais do que um estilo ou uma ideologia, é uma forma de fazer política que atua no terreno das emoções, da imagem e do conflito. A sua entrada aparatosa e excêntrica na cena global desafia não só as práticas da democracia, mas também os nossos próprios critérios de análise política. É o espetáculo do poder em registo de pós-verdade, onde a realidade importa menos do que a narrativa que a molda. A invasão tornou-se ontem mais do que evidente. E o já confirmado “nós contra eles” vai, assim, construindo a sua fértil mitologia populista. Por isso, o 25 de Abril é para eles uma simbologia incómoda. 

sexta-feira, maio 16, 2025

A INSÓNIA DO HUMANO

Vivemos um tempo em que a indiferença humana não conhece cansaço — repete-se, reproduz-se, instala-se como costume. Onde falta o gesto atento, esculpido pela diferença, pela escuta e pela diversidade do saber, cresce a sombra da incivilidade: rápida, rude, rasa.

Pensar o outro com sensibilidade é um caminho para a verdade do humano.
É aí que o conhecer se expande, não como posse, mas como partilha. A liberdade de fazer pontes entre o que se sente e o que se pensa afina a escuta entre subjetividades, favorece encontros, sustém a dúvida como lugar fértil da colaboração.

Há um retrocesso subtil, ou talvez nem tanto, que se insinua nas formas do desprezo, nos gestos automatizados pelo abuso de uma cultura dominante que já não se interroga. A insensatez social não é obra do acaso, é fruto e semente de narrativas que se esquivam à responsabilidade ética do quotidiano.

Abrir-se ao outro é um gesto inicial. É reinvenção das conversas, das presenças, dos modos de reconhecer e ser reconhecido. O ato criativo, nesse espaço, é rutura - sim - mas também cuidado. Inquieta, remove, desperta a consciência no agir.

Criar e educar - eis duas formas de atenção persistente. Dois modos de interpretar, escutar, dar forma à expressão humana que deseja compreender-se. Através desse movimento, o juízo desperta, o saber se renova e o mundo torna-se novamente habitável.

Mas se a educação for só abstração, explicação, hierarquia, então adormece. E com ela, adormece também a verdade, embalada pela repetição anestesiante da indiferença. A ética da solicitude recusa esse sono. Ela vela. E ao velar, afirma: os direitos da vida e da dignidade não são opção, são origem. 

quinta-feira, maio 15, 2025

CRIAR FORA DA CAIXA

Ao ler Rick Rubin, no livro O Ato Criativo: Um Modo de Ser, encontrei um texto chamado “Regras” que me chamou a atenção. É um texto simples na forma, mas com ideias bem provocadoras que, confesso, me deixou intrigado e com uma curiosidade difícil de explicar. Rubin bebe muito de práticas espirituais, e fala da arte e da criatividade de uma forma muito ligada ao que vem de dentro, ao instinto, deixando de lado a rigidez dos métodos tradicionais. Para ele, as descobertas criativas mais verdadeiras acontecem quando deixamos de seguir regras fixas.

E o mais curioso são as razões que ele dá. A ideia central tem a ver com as regras invisíveis, aquelas que nem nos damos conta de que seguimos. São limites que não estão escritos em lado nenhum, mas que fomos absorvendo ao longo da vida. É um pouco aquilo que Bourdieu chamava de habitus: hábitos e formas de agir automáticas, quase inconscientes. E o problema é que essas regras escondidas acabam por nos limitar, mesmo sem percebermos. A criatividade perde força quando nos deixamos guiar por caminhos já definidos.

A verdade é que o nosso pensamento tem história, pois aprendemos coisas, vivemos experiências e absorvemos cultura desde pequenos. Muitas dessas ideias sobre o que é “certo” ou “errado” foram-nos ensinadas em casa, na escola, ou até de forma informal. Com o tempo, esquecemos onde aprendemos certas coisas, mas continuamos a agir com base nelas. Os valores que herdamos da sociedade, dos media ou da moral dominante tornam-se parte de nós e isso influencia muito mais do que imaginamos. Não são maus por si, mas o problema é quando os seguimos sem questionar, como se fossem naturais ou obrigatórios.

terça-feira, maio 13, 2025

AMIZADE, ESSE TEMPO DE LIBERDADE E COMPREENSÃO

A amizade é sempre uma experiência humana profunda. É o lugar onde se torna indubitável a interseção entre o eu e o outro, entre a subjetividade individual e a alteridade irredutível. Onde a verdade existe, a amizade não se constitui por afinidades triviais ou simpatias casuais. Ela emerge como exercício ético, como prática existencial enraizada na atenção, na escuta e no acolhimento interior e afetuoso.

O ponto de partida é o sujeito, enquanto ser criador, capaz de se exceder no pensamento, na expressão e na ação. A pessoa, enquanto centro de experiência e consciência, não é um ser fechado sobre si. O seu movimento criador implica uma abertura do seu próprio ser, a si mesmo, ao mundo e ao outro, uma abertura que só se realiza inteiramente através de afinidades sinceras. A amizade verdadeira não se dá sem essa tensão entre interioridade e transcendência. Só quem se conhece e se cuida de si mesmo pode oferecer uma presença não invasiva, não manipuladora, mas libertadora.

Neste horizonte, a empatia deve ser pensada para além do sentimentalismo. Não se trata de projetar sobre o outro as nossas emoções, mas de aceder, na medida do possível, ao modo como ele habita o seu mundo. A empatia é, nesse sentido, um gesto de descentramento, um esforço hermenêutico de compreensão que respeita a opacidade do outro. É nesse gesto que o outro se revela como fim em si mesmo, e não como meio para a nossa afirmação emocional, moral ou presunçosa.

domingo, maio 11, 2025

A ARTE DE TORNAR-SE

A imaginação assopra como um vento interior. Estimula o pensamento. Aclara caminhos. Pensar é sonhar de olhos abertos. É recolher sentidos no silêncio. É fantasiar lendas com as sobras dos dias. É bordar mundo com fios soltos. Sem essa inspiração, o pensamento sujeita-se aos moldes. Acomoda-se ao já feito. Criar é, por sua vez, o gesto vital que nos mantém em movimento. Empatia e devaneio cruzam-se como gestos que se tocam no ar. A empatia escuta o outro. O devaneio atravessa o invisível. Juntas, fazem da representação um ato vivo. Não apenas compreendendo, mas acolhendo. Dar lugar. Reintegrar presenças que tremem por dentro. Interpretar é tornar-se. É dizer com delicadeza, “aqui estás”. Somos obra inacabada. Não nascemos prontos. Vamo-nos fazendo. Tocados pelo que nos espelha. Pelo que nos ressoa. Pelo que nos desconcerta. Há identificações que nos devolvem a imagem. Outras que nos falam a linguagem secreta da alma. E há ainda aquelas, mais raras, que nos removem e nos refazem. É no encontro com a diferença que mais crescemos. A literatura é casa para todas essas formas de ser. Espelho. Murmúrio. Abalo. Nela descobrimos outras vidas. E por elas, estendemos a nossa, pensando, lendo e interpretando. Tudo isso é, no fundo, uma arte de viver. E de continuar a reconsiderar-se, vivendo a Arte de Tornar-se. 

sábado, maio 10, 2025

A ÚLTIMA LIBERDADE

Vou hoje pensando, a experiência de vida vai ajudando, que a liberdade de pensamento é algo bem mais complicado do que ao longo do tempo imaginei. Essa liberdade depende, estou certo, da saúde da nossa mente. Da cabeça que persistentemente duvidamos, desconfiamos, colocamos à prova. Não se trata apenas de desbloquear intenções, resolver conflitos, interpretar impulsos. A liberdade verdadeira, essa que sempre sonhei como criativa e expansiva, exige mais.

Sempre me interroguei sobre o que seria um pensamento livre, pessoal, verdadeiramente independente. Não aquele que apenas reage, mas o que emerge com sentido próprio, alargando o imaginário, abrindo o campo simbólico. Uma cabeça inspirada no afeto do apreço e do conforto, eis o que sempre busquei. Um estado interno capaz de dar energia e confiança à criatividade da personalidade, que sinto como a finalidade, primeira e última, da minha vida pessoal.

Assim, fui-me afastando, sempre que pude, de um mundo silenciosamente patológico, mergulhado em relações doentias, adormecidas por múltiplos cinismos e pelas opiniões geralmente aceites. Sempre procurei “separar águas”, encontrar caminhos outros, mais íntegros, mais humanamente valiosos.

sexta-feira, maio 09, 2025

ENTRE A SOMBRA E A VOZ

Sem saber, inventamos. Como quem apalpa no escuro, tropeçamos em revelações, e por vezes, descobrimos em nós aquilo que nos escapa. Há, quiçá, uma voz desusada que nos habita. O inconsciente murmura por entre gestos e palavras, e é ele, muitas vezes, que sobe ao palco em nosso nome. Ali, expõe-se com veemência, como se encenasse uma verdade que nem sabíamos conter.

Não sabemos repousar. Há em nós uma urgência de explorar o instante, esse lugar onde o tempo se dobra sobre si mesmo. E nesse ímpeto, dramatizamos. O palco torna-se espelho, e de tanto nos voltarmos para dentro, vamo-nos reconhecendo nas máscaras que julgávamos alheias. A consciência dispersa-se, fragmenta-se na circunstância, mas é desse fragmento que nasce a centelha noética, esse fulgor íntimo do ritual da invenção. Sentimo-nos criadores de mundos por vir, artífices de culturas que o espírito sonha e as mãos moldam, sim, entre a matéria e a alegoria.

Pela palavra, esse sopro modelador, damos impulso ao sonho criativo. Transportamos ideias que ainda não foram ditas, mas que já há muito nos habitam em silêncio. São sínteses nascidas do imaginário, formas novas que a razão sozinha não ousaria conceber. As memórias, polidas pela imaginação, brilham como se nunca tivessem sido tocadas. E os sonhos, com sua audácia sem testemunho, recriam realidades que o presente ainda não ousou viver. Assim, enriquecemos, com o que pensamos, com o que inventamos, com aquilo que, sem saber, verdadeiramente fomos e somos.

quarta-feira, maio 07, 2025

AO JOÃO MANUEL NEVES


És um homem reconhecido pelo que merecidamente te distingue. Em suma, reportar-me-ia sobretudo às tuas incomparáveis qualidades humanas, apreciando e reconhecendo a tua história pessoal, profissional e política. No que me diz respeito, acentuo especialmente a tua elevação ao dialogar, o teu modo singular de ouvir e a forma como te aproximas com empatia das ideias que escutas — aprovando-as ou não. A educação está sempre presente, e o valor democrático constantemente respeitado. Tens a rara capacidade de valorizar a diversidade, promovendo a convivência de ideias distintas sem abdicar dos teus princípios. Essa maturidade cívica é, sem dúvida, uma das tuas maiores forças como candidato e como cidadão. Conta comigo.

 

ENTRE O PENSAR E O AGIR...

A formação da identidade não se dá de forma simples nem linear. A identificação, enquanto eixo estruturante, é bom dizê-lo, dispersa-se nas diversas leituras psicanalíticas e psicológicas, perdendo nitidez na multiplicidade das suas inferências. A articulação entre o pensar e o agir assume um carácter singular, arrastando-se por entre zonas de proximidade e diferença, onde se tecem representações que se tocam, mas não se confundem. Os conceitos de identificação, identidade, positividade e negatividade cruzam-se apressadamente, alimentando o diálogo tenso entre o Eu e o Supereu.

A identidade não é um dado inato, mas revela-se como uma construção relacional. As identificações sustentam o desejo de estabilidade, de concordância, de pertença. Outras, porém, nascem em territórios de ambivalência: são igualmente constitutivas, mas dão corpo ao desacordo, à oposição, à instabilidade. É neste entrelaçar de forças que emerge a célebre dialética entre o Eu e o Outro, largamente explorada por filósofos e pensadores.

Há quem veja a identidade como moldada pelas formações inconscientes. Outros a entendem como ficção, efeito de identificações imaginárias e simbólicas. E há ainda quem a encare como uma tarefa contínua, marcada por aprendizagens, crises e reconfigurações. Deste modo, diferentes níveis de identidade se sobrepõem e entrelaçam, nem sempre de forma pacífica ou coerente. Entre o que o Eu deseja, imita e projeta, e o que o Supereu censura, limita e impõe, instala-se uma oscilação constante. A busca de coesão choca-se com o peso das normas e o arbítrio das regras herdadas.

sábado, maio 03, 2025

A ARTE CRIATIVA DE EXISTIR SIMPLESMENTE

Existir é ser, é viver, é estar. É afastar-se da corrida incessante e da rivalidade estereotipada que nos define. É ousar abraçar a simplicidade e, a partir dela, criar uma arte de experimentar a vida, redescobrindo o essencial enquanto resistimos ao desatino e à superficialidade do mundo.

A simplicidade, contudo, não tem um caminho fácil. Ela não segue a rota da competição, nem cede ao egoísmo das aparências. Ela dispensa o espelho, esse reflexo vazio que a vaidade alimenta, e recusa o mundo que se encanta com a superficialidade. Em tempos em que a sociedade valoriza as aparências e se inquieta com a naturalidade, a simplicidade se impõe como resistência à futilidade do que é efêmero.

É necessário lembrar constantemente o vazio que a vaidade nos impõe e o quanto ela nos afasta da busca genuína pelo que é verdadeiramente essencial. Sem as amarras da vaidade, a simplicidade se torna uma força resistente ao sistema competitivo que domina nosso tempo. Ela rejeita o abuso da competição e a presunção vazia que nos distancia da verdade.

Ao fazer essa transição do Ego para o essencial, a simplicidade revela-se como uma chave para a decifração da armadilha da superficialidade. Entre a vaidade e o essencial, a simplicidade nos guia para o terreno da ética, desafiando o egoísmo e as ilusões que a sociedade moderna perpetua. Em um mundo de espelhos e aparências, ela nos lembra das verdades que, mesmo incômodas, não nos abandonam.

Por mais que nos esforcemos em racionalizar, a simplicidade não pode ser dissociada dos campos ético e estético. Portanto, é imperativo afastarmo-nos da artificialidade e abraçarmos uma vida mais autêntica, imersa no que é verdadeiramente essencial. O "Simplesmente", que no título chama atenção, não é apenas uma palavra, mas uma convicção da simplicidade na sua forma mais pura e profunda, que nos desafia a existir sem as camadas do supérfluo, buscando o que é essencial e verdadeiro na nossa experiência de vida.

domingo, abril 27, 2025

A ODIOSA VIOLÊNCIA VERBAL EM DEMOCRACIA

Estamos em período de eleições e uma verdade desponta: a gritante incompatibilidade com a cultura democrática. O jargão adultera-se, servindo-se da truculência da palavra agressiva e da galvanização acalorada. O riso hipócrita tenta disfarçar a falsidade e suavizar a violência das palavras. A desqualificação, por sua vez, enlaça o rival; a desumanização é clara na ressignificação, e a intolerância esforça-se para dissimular o enfurecimento.

As palavras, mais do que pedradas ou petulâncias, alavancam expulsões, desmentem qualidades e, sobretudo, inflamam aversões e rancores. O sentido alegórico torna-se negativo, convertendo-se assim em algo teimoso, persistente e contínuo. A violência verbal mostra-se, no entanto, insuficiente e, como tal, salta para o palco político agredindo honras, dignidades e identidades. Principalmente, desqualificando aqueles que pensam de forma diferente. Discutir e argumentar não serve, interessa sim tornar o outro um inimigo em que a conciliação e o entendimento é irreal.

A competição democrática em nada assim contribui, pois a ideia da pluralidade, do debate livre e do compromisso com a convivência política contrariada, como é óbvio, danifica a meta finalidade. O que parece importar, diga-se, é caminhar teimosamente o itinerário da insensibilidade, através da intimidação verbal, minando os seus princípios e, consequentemente, favorecendo a assimetria do antagonismo.

sábado, abril 19, 2025

OS PARTIDOS E O AGITADO CENÁRIO DIGITAL

Nesta minha idade já avançada, obrigam-me não só a comprometer, mas também a equacionar o risco que os partidos, igualmente mais desgastados, sejam abatidos por agitações populistas mais astutas e adaptadas ao novo panorama digital. A cidadania dos tempos atuais, goste-se ou não, encontra-se mais dispersa e movimentada, o que ameaça os partidos, que precisam urgentemente se acertar e se regenerar.

A política vive hoje mudanças bruscas e desafiadoras, induzidas pela agitação digital e pelos TICs que a cercam. Torna-se, assim, um cenário corrente mais descentralizado e menos vinculado aos alicerces tradicionais que moderavam a comunicação e a mediação política. Daí, as mudanças políticas se tornam outras, diferenciadas e discrepantes das tradicionais.

Reconheço que não é fácil entender a exigência desse movimento digital e, muito menos, deslocarmo-nos da rotina tradicional de modo a entender a relevância dessa metamorfose comunicável. A cidadania por aqui passa e em consequência das redes sociais, do seu poder difuso e descentrado, as pessoas cada vez mais se desviam, nas suas manifestações e mobilizações políticas, dos partidos e da comunicação tradicional.

quarta-feira, abril 16, 2025

O JOGO DAS IDENTIDADES E O ACORDO DA HARMONIA SOCIAL

Ao ler A Armadilha Identitária, de Yascha Mounk, fui-me concentrando no profícuo e artificioso engenho verbal, enquanto serventia do arquétipo para caçar, sobretudo, o inconsciente de gente descuidada e apoderada pelo seu dente canino. Trata-se de pessoas que pensam e forjam identidades de mentiras distintas, acima da paridade individual, dos seus direitos e respeitabilidade humana.

Como sentencio com evidência, um dos grandes contratempos da chamada “armadilha identitária”, como o autor a batiza, é que ela anemie a harmonia social, sobrestime as identidades desconjuntadas e as converta no foco do debate público e político, obstaculizando a inclusividade e conflituando, envenenando a divergência entre elas. O necessitado essencialismo, ao encurtar a complexidade humana, faz-se indesejável, ao sentenciar as pessoas pelas suas pertenças culturais e não como criaturas próximas e semelhantes.

Enfatizar o jogo verbal e social de soma zero — o que um grupo ganha, o outro perde — gera um clima de rivalidade que, em nada, ajuda o diálogo cooperativo necessário a uma aproximação que se torne socialmente mais fecundante do que nos deixarmos arrastar pela tacanha antipatia entre ambas forjada. Há, então, que investir na razão e no universalismo, aos seus princípios, recorrendo à dignidade humana e aos direitos fundamentais, tentando superar, assim, as suas fragmentações sociais e culturais, sem ter em conta as suas justificadas fidelidades.

Como podemos argumentar contra esse estratagema identitário, segundo Mounk? Sinteticamente, impõem-se quatro pilares indispensáveis. O primeiro, ao valorizar, destacando os direitos universais e a dignidade humana, afirma que todos têm direitos iguais, independentemente de raças, géneros ou outros atributos. Em segundo lugar, dar destaque à ideia que se procura e se ambiciona, ou seja, uma sociedade inclusiva e unificada, através de princípios comuns, assim como, e paralelamente, a consolidação da democracia. Em terceiro momento, reconhecer a complexidade da identidade humana, admitindo a individualidade das pessoas e os seus direitos à liberdade. Por último, servir-se da razão e do diálogo, tendo presente a relevância de soluções racionais e justas para as naturais e legítimas dificuldades, evitando a queda na dita armadilha de ver e pressagiar o mundo.

domingo, abril 13, 2025

A AUTENTICIDADE EM TEMPO DE CONFORMIDADE

Essa forma de se supor, sem argumento ou consciência legítima, é uma resposta à exigência social como forma de se acomodar a uma normalidade fixada, ou melhor, a uma regularidade que nos distancia de um autoconhecimento mais rigoroso e profundo. A verdade da autenticidade, de modo contrário, requer uma consciência transparente da própria finitude assim como um compromisso com possibilidades existenciais mais enraizadas. Ser autêntico não é simplesmente seguir um ritual, mas sim confrontar a dúvida, a hesitação e, sem apreensão, caminhar com a sua própria verdade, sem disfarces ou escapatórias. A procura pela perfeição, enquanto busca pela autenticidade, desafia-nos a resistir às rotinas instintivas e insubmissas à verdade que nos acompanha. Não se trata de um apuro acordado ou modo repisado, mas de uma progressividade constante do "eu" à medida que nos revemos mais conscientes e nos sentimos igualmente mais harmonizados connosco mesmos. Não se trata de uma vontade obsessiva de atingir a perfeição abstrata ou idealizada, mas sim um esforço de alcançar uma vida mais autêntica e plena, tudo feito com a íntegra consciência e responsabilidade.

Caminhar no encalço de um propósito de afinamento e apuramento é, neste sentido, um humano exercício de liberdade. A verdadeira liberdade não está em seguir um caminho predefinido ou cumprir um conjunto de preceitos exteriores, mas sim em poder escolher livremente aprendendo a assumir as consequências dessas opções. É bom que se lembre que a autenticidade exige essa liberdade, uma liberdade que não se restringe à ausência de restrições externas, mas que se expressa na responsabilidade de assumir e viver de acordo com as próprias decisões. Assim, a busca pela perfeição não é uma fuga de quem somos, mas um reencontro com o nosso verdadeiro ser.

Em jeito de conclusão, no decidir por essa vida mais sincera, desaprovemos o finalismo que nos aprisiona à repetição sem reflexão. Em vez disso, abracemos o dinamismo existencial que nos permita confrontar a realidade da nossa própria finitude em busca de uma vida mais saudável e humana, não apenas em termos materiais, mas sim procurando o valor humano decorrente da digna verdade interior. Essas deslocações põem em atividade destacar, de um modo mais evidente, o confronto entre o fado espontâneo e a vivacidade reconhecida, em favor do conceito de perfeccionismo, enquanto vontade de atingir o perfeccional como causa evolutiva e existencial. Para a perfeição do Ser há que saber resistir à rotina mecanizada em busca da inevitável luz da nossa verdade. Saibamos dar importância de fazer da filosofia uma prática diária, uma filosofia que transforme o homem e o oriente na busca por uma vida mais autêntica e significativa.